Experiências do Advocacy Forum na prevenção da tortura no Nepal
Este artigo reconstrói a trajetória do Advocacy Forum no combate à tortura no Nepal como um exemplo da capacidade da linguagem dos direitos humanos para produzir mudança social. Como o artigo demonstra, a estratégia do Advocacy Forum, denominada “Estratégia de Intervenção Integrada” (IIS, da sigla em inglês) e desenvolvida durante os períodos de conflito e pós-conflito, tem sido eficaz na redução da prática de tortura no Nepal. A abordagem da organização é holística, baseada em uma intervenção em três níveis – local, nacional e internacional. Ademais, além de promover a mudança legislativa e apresentar pedidos de habeas corpus e de indenização em casos de tortura, a estratégia do Advocacy Forum inclui a transformação das atitudes e práticas, bem como reformas institucionais, a fim de promover mudanças de fato. O Advocacy Forum, como defende o artigo, acredita que a estratégia desenvolvida pela organização também pode ser aplicada em outros contextos, devido à sua natureza holística e à sua eficácia.
Saber se os direitos humanos são uma linguagem eficaz para a produção de mudança social é uma questão decisiva e contemporânea. Este artigo utiliza a experiência do Advocacy Forum (AF) no combate à tortura no Nepal como exemplo da capacidade da linguagem dos direitos humanos para produzir mudança social. A experiência do AF também proporciona evidências significativas de que, para manter essa capacidade, o movimento de direitos humanos deve buscar obstinadamente formas holísticas de realização dos direitos humanos, tais como se envolver de modo construtivo com os diferentes atores e lutar pela mudança das atitudes e práticas, bem como pelas reformas institucionais.
O Advocacy Forum (AF), criado por um grupo de advogados em 2001, tem, desde então, lutado pela prevenção da tortura e de outras violações dos direitos humanos no Nepal. Ao considerar o problema da prática rotineira e generalizada de tortura em centros de detenção provisória, o AF começou a fazer visitas sistemáticas aos centros de detenção do governo e a monitorar e documentar a condição dos detentos. Os resultados das visitas às prisões foram apresentados e discutidos com os diferentes atores do sistema de justiça criminal para buscar formas de acabar com a prática de tortura nas prisões e proporcionar justiça e reparação às vítimas. Ademais, esses resultados foram relatados a diversas organizações e entidades de direitos humanos nacionais e internacionais, visando a obter apoio ao trabalho de prevenção da tortura no Nepal e conscientizar as pessoas acerca da dimensão do problema.
O Nepal viveu uma década em conflito armado, entre 1996 e 2006, iniciado pelo partido de extrema esquerda conhecido como Partido Comunista do Nepal (PCN). Nesse período, o Nepal testemunhou execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, tortura, abuso sexual, sequestro, extorsão etc. perpetrados por ambos os lados do conflito. As duas partes em conflito (o governo e os maoístas) utilizaram a tortura para diversos fins. O conflito atingiu seu pico em 2001, quando o governo declarou estado de emergência, rotulou os maoístas de terroristas e apresentou o Regulamento das Atividades Subversivas e Terroristas (TADO, da sigla em inglês). O regulamento concedeu amplos poderes às forças de segurança para manter supostos membros de grupos rebeldes em prisão preventiva por até 6 meses sem controle judicial.1 Foi então que o AF iniciou seu trabalho. Embora AF trabalha particularmente com o monitoramento e a documentação de 5 categorias de violação – tortura, execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, violência sexual, uso de crianças nas forças armadas -, este artigo trata especificamente das experiências do AF ao lidar com os casos de tortura.
Em meio a um contexto no qual prisões e detenções arbitrárias eram consideradas normais, decretou-se estado de emergência e tornou-se quase impossível o acesso aos centros de detenção do governo. Em geral, os centros de detenção provisória no Nepal eram mantidos isolados do mundo exterior. Determinado a prevenir a tortura, os maus-tratos e a detenção ilegal e a pôr em prática os direitos constitucionais dos detentos, o AF foi capaz de negociar, por meio de vias jurídicas, o acesso aos centros de detenção da polícia.
No Nepal, a tortura tem sido utilizada como ferramenta de investigação criminal para coagir os presos a confessar o crime, para aniquilar a personalidade dos indivíduos e sujeitar vítimas à autoridade policial, entre outros propósitos. Historicamente, também tem sido utilizada como forma de punição. Apesar de ter assinado compromissos internacionais para a proibição absoluta da tortura em seu território, por meio da ratificação de instrumentos internacionais como a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (CAT, da sigla em inglês) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), a implementação nacional dessa promessa tem sido incipiente ou insatisfatória no Nepal. As leis nacionais não são compatíveis com as proibições internacionais relativas à tortura. Essa discrepância torna-se ainda mais grave devido à inexistência de mecanismos de monitoramento independentes no âmbito da prisão preventiva e pela quase total ausência de investigações imparciais das denúncias de tortura. Além disso, o sistema jurídico vigente no Nepal é inadequado para proporcionar justiça e reparação às vítimas e responsabilização dos perpetradores de tortura e de outras violações dos direitos humanos (Advocacy Forum; Redress, 2001). Embora a Constituição Interina do Nepal de 20072 defina a tortura como crime e a Suprema Corte do Nepal (NEPAL, Ghimire & Dahal v. the Government of Nepal, 2007) tenha definido parâmetros para que se crie uma legislação que criminalize a tortura, não foi aprovada qualquer lei que reconheça especificamente a tortura como um ato criminoso e proporcione o aparato legislativo necessário para levar os responsáveis à justiça. Essa cultura de impunidade e a falta de um sistema de responsabilização afetam gravemente o Estado de Direito, o respeito aos direitos humanos e a paz a longo prazo, além do desenvolvimento e dos esforços para fortalecer a democracia.
Diante desse cenário, o AF têm se empenhado o máximo para reduzir e prevenir a prática de tortura, as detenções ilegais e os maus-tratos em locais de detenção por meio do desenvolvimento de uma estratégia inovadora denominada “Estratégia de Intervenção Integrada” (IIS, da sigla em inglês), que se fundamenta na ação holística ao abordar as diversas lacunas e inadequações que contribuem aberta ou sutilmente para a institucionalização da tortura. Este artigo discute a experiência do AF no combate à tortura no Nepal, descrevendo a evolução da referida estratégia, os desafios enfrentados pelo AF e como as medidas legais e de advocacy podem ser coordenadas e estrategicamente utilizadas para alcançar resultados concretos e positivos na redução da prática de tortura nas prisões.
Como mencionado, a experiência do AF no combate à tortura durante o conflito e na era pós-conflito levou ao desenvolvimento gradual de uma estratégia, que foi denominada “Estratégia de Intervenção Integrada”.
Essa estratégia é composta por uma estrutura pragmática erigida sobre e reforçada pelas lições aprendidas durante as intervenções rotineiras para prevenir a tortura. Ela inclui todos os meios possíveis para sensibilizar e colaborar com os aliados atuais e potenciais, bem como estratégias para cooptar e neutralizar as partes opositoras, por meio de advocacy com base em dados empíricos. Isto inclui especificamente documentação e advocacy, ações judiciais para intervenção médica, questionamento perante o judiciário da detenção ilegal e coleta de dados empíricos para uma ampla reforma em política pública.
A estratégia constitui uma síntese dos paradigmas conceituais já previamente definidos e das melhores práticas empregadas internacionalmente para prevenir a tortura, por um lado, e da experiência pessoal direta dos advogados do AF em sua interação diária com sobreviventes da tortura e em seu envolvimento com o sistema de justiça criminal do Nepal. A experiência do AF mostrou que influenciar os atores do sistema judiciário, por meio do advocacy fundamentado em dados empíricos, e a participação diária e responsável no sistema judiciário constituem a base para a mudança duradoura. Mudanças legislativas sem aplicação prática proporcionam pouco conforto às vítimas de injustiças no âmbito do sistema de justiça criminal do Nepal, daí a necessidade de uma abordagem integrada que traga a necessária mudança das atitudes e práticas, bem como reformas institucionais.
A estratégia é implementada em três níveis – local, nacional e internacional. Basicamente, sua implementação é orientada por quatro princípios: 1) indivisibilidade (todas as intervenções estratégicas devem ser harmonizadas e aplicadas simultaneamente); 2) prevenção (a prevenção da tortura é a chave para todas as intervenções estratégicas); 3) imediatismo (resposta rápida e ação proativa); 4) legitimidade (as intervenções são realizadas de acordo com os parâmetros das leis nacionais e internacionais vigentes, mantendo a consistência e precisão das informações coletadas).
Como a tortura e os maus-tratos geralmente ocorrem em locais de detenção inacessíveis a qualquer forma de controle público, o monitoramento dos centros de detenção faz parte de qualquer estratégia destinada a proteger as pessoas que se encontram privadas de sua liberdade. Esse monitoramento deve ser mais rigoroso do que visitas ocasionais aos locais de detenção por parte de órgãos independentes, resultando em relatórios e recomendações. As visitas devem ser regulares e sem aviso prévio. Com base na própria ideia de que essas visitas são um dos modos mais eficazes de prevenir a tortura, o AF tem visitado diariamente os centros de detenção nas regiões em que atua. Atualmente, o AF visita 57 centros de detenção em 20 regiões diferentes em todo o país, embora o alcance da organização tenha sido limitado durante a era do conflito. Os advogados do AF visitam centros de custódia diariamente para observar a situação dos detentos, entrevistá-los e documentar seus casos. Além disso, o AF desenvolveu um questionário detalhado para registrar informações relevantes sobre a detenção de uma pessoa, para apoiar e defender o caso do indivíduo, bem como para contestar todas as práticas ilegais por parte das autoridades. No entanto, como os advogados do AF enfrentam sérias limitações (como a falta de lugar separado e confidencial para a entrevista, o indeferimento de acesso a algumas celas, o monitoramento de apenas 1/3 das prisões), os dados atuais da organização só podem proporcionar uma visualização superficial da extensão total da prática de tortura e maus-tratos em locais de detenção no Nepal. Os dados, no entanto, oferecem evidências claras e consistentes quanto à sua existência.
Além disso, o AF, reconhecendo a importância e as consequências positivas das redes de advocacy transnacionais no combate à impunidade, tem buscado continuamente o estabelecimento de parcerias de trabalho efetivas com a comunidade nacional e internacional de direitos humanos. Como detalhado adiante, o AF tem contribuído para maior interação com os mecanismos de tratado e convencionais da ONU em questões envolvendo o Nepal, o que ajudou a reduzir as práticas de tortura em centros de detenção.
A interferência política nas práticas de policiamento por parte de indivíduos e grupos poderosos indica que os membros socialmente, politicamente e economicamente mais fracos da sociedade são os mais vulneráveis a abusos, inclusive à tortura e aos maus-tratos. Como apresentado adiante, um modo pelo qual o AF tem lutado contra isso é pressionando a ONU em suas operações de manutenção da paz,3 bem como os EUA em suas atividades de treinamento, a levar em consideração o histórico de supostos torturadores.
Além disso, corroborando a experiência do AF de que, a não ser quando representados por um robusto serviço de assistência jurídica, com frequência, os tribunais, o Ministério Público e a polícia não conseguem garantir adequadamente que os direitos dos detentos sejam respeitados, a organização presta assistência jurídica a todas as vítimas de tortura que desejam exigir indenização por meio dos tribunais. Ela também ajuda as vítimas a encaminhar pedidos de exame médico e de documentos de caráter médico-legal, ou a apresentar habeas corpus se a detenção for ilegal. Ao oferecer assistência jurídica gratuita, desde a acusação até a sentença, para os detentos e as vítimas de tortura incapazes de pagar um advogado, devido à pobreza, analfabetismo e outras desvantagens, o AF nota que vítimas lutam com mais ardor por seus direitos.
As experiências anteriores do AF mostraram que os profissionais da saúde também participam da tortura, seja por ação ou omissão, com falsificação de relatórios médicos ou deixando de proporcionar tratamento adequado ou parecer médico. Como os tribunais nepaleses atribuem maior peso às evidências médicas, é crucial munir-se de exame médico e documentação médica em acusações de tortura ou maus-tratos.
Embora a tortura seja cada vez mais praticada sem deixar sinais ou com sinais que desaparecem em poucos dias, sem deixar vestígios permanentes, os médicos experientes podem, não obstante, avaliar depoimentos, relatos de sintomas pós-traumáticos e sequelas físicas e mentais para tirar conclusões a partir dessas informações. É fundamental que os profissionais da saúde sejam capazes de documentar e avaliar lesões de modo rápido e imparcial. Em alguns casos, os médicos são incapazes de fazer isso por medo, ameaças e intimidação por parte de autoridades policiais. Em outros casos, os médicos podem ter interesse pessoal em esconder provas de tortura e maus-tratos. Os médicos que realizam exames em detentos são efetivamente subordinados à polícia e sujeitos à influência exercida pela polícia, especialmente dentro do estabelecimento. Muitas vezes, a polícia encontra-se presente durante exames médicos ou necroscópicos.
Para abordar o problema das provas médicas e da documentação médico-legal adequada, o AF tem contribuído para desenvolver expertise em nível nacional na promoção de treinamento para os profissionais médico-legais. O AF tem oferecido regularmente atividades de formação para médicos, em nível nacional e regional, de acordo com o Protocolo de Istambul de 1999 (UNITED NATIONS, 2004), que traz diretrizes médicas e legais detalhadas para a avaliação de denúncias individuais de tortura e maus-tratos, bem como para o relato de tais investigações ao Poder Judiciário e outros órgãos.
Além disso, o AF tem constatado a necessidade de engajar-se construtivamente com os diferentes atores do sistema de justiça criminal, como a polícia, o Ministério Público, os juízes e os advogados de defesa. A experiência do AF mostra que a prática de tortura sob custódia pode ser reduzida se os atores envolvidos, como os tribunais, os promotores e os advogados de defesa, começarem a verificar o tratamento dos detentos em centros de detenção. Capacitação, treinamento e apoio técnico aos diferentes atores são fundamentais para conscientizá-los. Ao organizar um fórum regular de diferentes atores, o AF oferece oportunidades para que eles discutam os desafios e encontrem maneiras de enfrentá-los coletivamente.
Além disso, o AF acredita que iniciativas sustentadas de advocacy em torno de leis e regulamentos fundamentais relativos à tortura podem resultar em mudanças tangíveis da lei e das práticas. As leis e políticas relevantes precisam ser revistas e a organização almeja defender com persistência as mudanças que garantam que a legislação esteja em conformidade com as normas internacionais dos direitos humanos. Para efeitos de advocacy e lobby, é de extrema importância trabalhar em conjunto com a mídia local.
O Advocacy Forum (AF) tem obtido resultados animadores na prevenção da tortura no Nepal com a implementação da estratégia descrita. No âmbito local, há indicadores claros de que as leis vigentes vêm sendo implementadas e são promissores os resultados obtidos em termos de cumprimento pelos atores envolvidos com o sistema de justiça criminal.
Os esforços do AF têm contribuído de modo significativo para reduzir a frequência de tortura e maus-tratos em centros de detenção do governo. Segundo o Advocacy Forum (2004), nos últimos 13 anos, a tortura foi reduzida de 44,5% (2001) para 16,7% (2013) nos centros de detenção do governo nas regiões onde o AF está presente (Gráfico 1). Em 13 anos, o AF visitou 34.421 detentos. Também houve claras melhorias em algumas áreas cruciais, como detenção ilegal (Gráfico 2) e exame físico e mental dos detentos (Gráfico 3), que contribuíram para uma redução gradual da tortura e dos maus-tratos.
Além disso, os atores envolvidos com o sistema de justiça criminal estão mais conscientes de suas obrigações legais, o que se reflete em seu trabalho diário. Durante as consultas, eles assumiram a linha de frente, presidiram os trabalhos e até apresentaram estudos que discutem ideias diferentes para prevenir a tortura. Eles também solicitaram aos advogados do AF materiais e outros produtos relativos às práticas internacionais de prevenção da tortura. Nossa pressão para incluir os direitos humanos, em geral, e a proibição da tortura, em particular, no currículo de formação dos diferentes atores do sistema de justiça criminal levou à inclusão, nos cursos de formação de juízes oferecidos pela Academia Nacional de Justiça, de tópicos como as normas internacionais contra a tortura e o papel dos juízes na prevenção da tortura. O resultado disso foi que os juízes não mais permitem audiências nos processos penais sem a presença de advogados de defesa e não estendem a prisão preventiva dos detentos se não forem juntados pareceres médicos, e assim por diante.
Um consenso geral acerca da necessidade de aprovar uma legislação abrangente que criminalize a tortura vem sendo construído e o governo anunciou um projeto de lei nesse sentido. O envolvimento com a mídia local e os esforços de sensibilização (inclusive a colocação de cartazes nas instalações das delegacias que detalham os direitos dos detentos) também geraram impactos positivos na conscientização dos policiais e cidadãos acerca dos direitos dos detentos. A polícia passou a se sentir pressionada e a perceber que não está acima da lei, os policiais podem ser responsabilizados pelo crime de tortura que cometerem.
Uma das notáveis transformações trazidas pelos esforços do AF no âmbito nacional é o questionamento bem-sucedido dos dispositivos legais inconstitucionais que concederam poderes judiciais a autoridades quasi judiciais, inclusive o Chief District Officer (CDO).* Em 22 de setembro de 2011, a Suprema Corte emitiu uma ordem, determinando a reavaliação do poder quasi judicial concedido ao CDO por diversas leis, inclusive a Lei de Segurança Pública de 1970, a Lei de Armas e Munições de 1962, e muitos outros atos legislativos que concederam ao CDO um imenso poder; sob tais leis, o CDO foi autorizado a julgar casos criminais. Contestando essa competência do CDO, o AF apresentou um mandado de segurança em 31 de dezembro de 2009. Em sua decisão, a Turma especial emitiu uma ordem para rever o dispositivo, com aplicação imediata. Nós havíamos contestado a competência do CDO para condenar pessoas sem um julgamento justo. Estávamos preocupados com o imenso poder atribuído a autoridades administrativas, como o CDO, que poderia sentenciar um condenado a até 7 anos de prisão, em certos casos, enquanto uma autoridade judicial se ocupa de casos de pequenos roubos puníveis com até 6 meses de prisão. Essa é uma clara violação do direito à igualdade do acusado. Além disso, os CDOs não possuem conhecimento teórico ou prático da lei, no entanto, atuavam como árbitros da justiça.
Depois de ouvir os argumentos do AF, a Corte Suprema constatou que outorgar poderes aos CDOs havia, de fato, violado o direito a um julgamento justo. A Corte, no entanto, absteve-se de declarar inconstitucionais tais dispositivos, como solicitado pelo AF, afirmando que isso criaria uma lacuna jurídica na ausência de outros órgãos para assumir a referida competência. Em suas diretrizes, a Suprema Corte ordenou ao governo a formação de um grupo de pesquisa composto por especialistas da área jurídica e administrativa para redigir emendas às leis vigentes que estabelecessem a referida competência, e que deveria apresentar seu relatório no prazo de 6 meses. Seguindo a ordem da Suprema Corte, o governo do Nepal deu início à sua tarefa. Formou um grupo de pesquisa no âmbito do Gabinete do Primeiro-Ministro e realizou reuniões de consulta para rever os poderes do CDO em 2012. Isso resultou na proposta do governo de alterar uma série de atos legislativos e de oferecer 3 meses de intensivo treinamento jurídico às autoridades administrativas, inclusive o CDO.
O AF também tomou a iniciativa de esboçar um modelo de leis anti-tortura, liderando uma coalizão de diversas organizações da sociedade civil. Esse projeto foi elaborado após uma série de revisões e consultas com as vítimas, bem como com especialistas nacionais e internacionais; o modelo de legislação foi publicado em 26 de junho de 2009, junto com um relatório sobre a tortura intitulado “Criminalizar a Tortura” (Advocacy Forum, 2009). Ademais, essa iniciativa tem desempenhado um papel importante para desencadear um debate sobre a necessidade urgente de adotar uma legislação anti-tortura e outra sobre os mecanismos de justiça de transição. A análise anual das informações coletadas em centros de detenção e sua apresentação proporcionam conhecimentos básicos sobre a questão da tortura no Nepal.
O envolvimento com os mecanismos de tratado e convencionais da ONU aumentou no Nepal. Mesmo após uma década de ratificação do primeiro Protocolo Facultativo ao PIDCP, não havia a mínima capacidade e know-how para apresentar denúncias perante o Conselho de Direitos Humanos. O AF tem, portanto, ajudado as vítimas que sobreviveram à tortura a apresentar denúncias individuais ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (Comitê DH/ONU).4 Além disso, o AF tem desempenhado um papel significativo na recente investigação confidencial do Comitê contra a Tortura da ONU (UNITED NATIONS, 2012); e apresenta denúncias regularmente ao Comitê contra a Tortura5 e ao Relator Especial da ONU contra a Tortura.6 Ademais, o AF tem sido bem-sucedido em seu lobby nas missões diplomáticas para a implementação da negação de visto – pela qual o país de acolhimento nega a concessão de visto aos autores de violações dos direitos humanos (inclusive tortura) que almejem participar de cursos de formação, conferências, reuniões ou fazer visitas pessoais (Advocacy Forum; Human Rights Watch, 2010, p. 10).
Da mesma forma, o AF tem conseguido repatriar agentes de segurança nepaleses envolvidos em violações de direitos humanos das Forças de Paz da ONU. Alavancada por tais intervenções internacionais, a iniciativa do AF tem conseguido estabelecer bases para e abrir novas possibilidades de redução da prática de tortura em centros de detenção.
O AF tem enfrentado inúmeras dificuldades e obstáculos em sua jornada contra a tortura no Nepal. Tanto os desafios práticos como os institucionais causaram seguidas interferências em sua atuação. Acima de tudo, o principal desafio que o AF enfrenta atualmente é a segurança de seus advogados/defensores. Com a transição política ainda intacta e a contínua deterioração da lei e da ordem, em meio à prevalência de um estado de impunidade, há um padrão cada vez mais predominante de ameaças aos advogados.
Regularmente sujeitos à intimidação, os advogados do AF vêm assumindo casos de tortura contra policiais e advogando contra a impunidade por meio da elaboração de dossiês de casos contra perpetradores individuais. O AF enfrentou casos de infiltração na organização e roubo de arquivos; caso de um membro da equipe que foi persuadido a denunciar a liderança da organização e fazer queixas de irregularidades na organização, para que o governo pudesse intimidá-la e assediá-la.
O AF acredita que o acesso dos detentos à assistência jurídica antes do julgamento é relevante para garantir julgamentos justos e prevenir violações dos direitos humanos na prisão, uma vez que a polícia pode coagir os detentos a assinar confissões manipuladas com o emprego de diversos métodos de tortura, bem como ameaças de represália. Além disso, o direito de consultar um advogado também é consagrado como direito fundamental na Constituição Interina. Porém, como os advogados do AF prestam assistência jurídica aos detentos já na fase anterior ao julgamento, eles estão mais vulneráveis a agressões físicas e intimidação. O AF recebe constantemente denúncias de que nossos advogados não têm acesso aos centros de detenção. Isso ocorre principalmente quando os casos de tortura e detenção ilegal são denunciados. Tentativas rotineiras por parte das autoridades policiais de negar o acesso dos advogados do AF aos centros de detenção ainda constituem um problema. Em outros casos, os advogados do AF e as vítimas que sobreviveram à tortura sofreram ameaças para não registrar Boletim de Ocorrência (First Information Report – FIR, em inglês), que requer investigação criminal nos casos de violações dos direitos humanos e nos mandados de segurança que as vítimas apresentam ao questionar a falta de investigação em seus casos. As vítimas também abandonam os casos por causa de intimidações e ameaças de represália.
Outro desafio que o AF vem enfrentando é a natureza estressante do trabalho realizado por sua equipe – tal como representar as vítimas nos tribunais, ouvir suas histórias assustadoras, estar constantemente envolvidos em advocacy e lobby e receber ameaças constantes de agentes do Estado e de outros grupos – e o impacto negativo que isso tem sobre sua saúde mental. O AF oferece aconselhamento psicológico regular aos advogados e outros funcionários.
A instabilidade política também tem sido um motivo de preocupação. Há uma crescente frustração tanto entre as vítimas como entre os defensores, pois a impunidade permanece desenfreada e inconteste em relação aos crimes, inclusive a tortura, cometidos durante o conflito no Nepal. Apesar das iniciativas conjuntas pelas vítimas e a sociedade civil, os mecanismos de justiça de transição propostos ainda não se materializaram.
E, ainda mais importante, o AF tem sido regularmente assediado pelo Conselho de Bem-Estar Social (SWC, da sigla em inglês), um órgão do governo responsável pela regulamentação das organizações não-governamentais. Esse conselho tem assediado o AF, seja pela não aprovação de seus projetos ou pela criação de obstáculos na renovação anual do estatuto jurídico da organização, que é um requisito legal obrigatório para todas as ONGs do Nepal.
Entretanto, o desafio mais sério enfrentado pelo AF é manter vivo seu trabalho sobre a tortura. Para realizar esse trabalho holístico, o AF precisa de recursos adequados e apoio contínuo, baseado em uma visão de longo prazo e de atuação estratégica. Caprichos dos financiadores têm impactado negativamente o trabalho do AF. Às vezes, uma perspectiva que priorize projetos específicos pode ser nociva em iniciativas como a de prevenção da tortura, por correr o risco de não ser capaz de manter vivo o apoio a este trabalho. Como nossos esforços se destinam a gerar mudanças sistêmicas, eles irão, necessariamente, levar anos para produzir resultados concretos.
A falta de compreensão da natureza política do trabalho com os direitos humanos e os riscos nele envolvidos por parte de alguns parceiros financiadores também acarreta problemas. Quando os parceiros financiadores mudam suas prioridades, muitas vezes, também forçam as ONGs a mudar sua prioridade.
Com frequência, os parceiros financiadores esquecem que seu financiamento destina-se a lidar com o déficit de direitos humanos no Nepal por meio da nossa atuação e que as ONGs são condutoras desta mudança. O não reconhecimento dos anos de experiência e do conhecimento do ativismo nesse campo, atribuindo muito peso a “especialistas” e “consultores”, pode minar o impacto sustentado do trabalho das ONGs. Os parceiros financiadores também têm de estar conscientes de que arrastar ativistas e movimentos para dentro da estrutura burocrática criada nos países desenvolvidos e tentar impô-la a organizações locais impacta negativamente a prevenção da tortura e de outras violações dos direitos humanos.
Quando o AF iniciou seus trabalhos, o país estava imerso no turbilhão do conflito, e a tortura por parte das forças de segurança era generalizada. Embora a Comissão Nacional de Direitos Humanos (NHRC, da sigla em inglês) tenha sido estabelecida em seguida, faltavam-lhe dentes, recursos e experiência para lidar com a frequência avassaladora de violações dos direitos humanos. Outras organizações da sociedade civil dedicavam-se a relatar as violações, mas a questão da tortura foi deixada em segundo plano. Em tal cenário, o AF assumiu a responsabilidade de monitorar os centros de detenção para prevenir a tortura. Ao superar o receio de serem tachados de rebeldes pelas forças de segurança por auxiliar supostos terroristas maoístas, os advogados do AF continuaram a contestar a detenção ilegal e a tortura mediante a apresentação de habeas corpus e de pedidos de indenização em casos de tortura.
A estratégia do AF, desenvolvida durante o conflito e no período pós-conflito, desempenhou um papel significativo na redução da prática da tortura. Ademais, a intervenção do AF em três âmbitos – local, nacional e internacional – expandiu o escopo de trabalho dos direitos humanos no Nepal. O AF acredita que a estratégia desenvolvida pela organização também pode ser aplicada em outros contextos, devido à natureza holística de suas intervenções e à sua eficácia.
* Nota de tradução: Chief District Officer (CDO) é um cargo do poder executivo, diretamente ligado ao ministério de “assuntos internos”, nomeado pelo governo. É o cargo administrativo mais alto de um determinado distrito.
1. TADO, Seção 9 estabelece que:
Se houver motivos razoáveis para crer que uma pessoa tenha que ser impedida de cometer quaisquer atos que possam resultar em atos terroristas e perturbadores, o oficial de segurança pode emitir uma ordem para deter tal pessoa em qualquer lugar, por um período não superior a 90 dias.
Se necessário deter qualquer pessoa por um período de tempo superior ao prazo previsto na subseção (1), o oficial de segurança poderá, com a aprovação do governo de Sua Majestade, Ministério de Assuntos Internos, deter essa pessoa por mais um período de tempo não superior a 90 dias.
2. O artigo 27 da Constituição Interina do Nepal estabelece que:
Direito contra a Tortura: (1) Nenhuma pessoa que se encontre detida durante a investigação, ou para julgamento ou por qualquer outra razão deve ser submetida à tortura física ou mental, nem será dado qualquer tratamento cruel, desumano ou degradante. (2) Qualquer ação prevista na cláusula (1) é punível por lei, e qualquer pessoa tratada dessa forma deverá ser indenizada conforme determinado por lei.
3. Quantitativamente, “Nepal é o sexto no ranking dos países que mais contribuem para as operações de paz da ONU no mundo”, de acordo com The Himalayan, 19 de março de 2013. Disponível em: http://www.thehimalayantimes.com/fullNews.php?headline=Nepal+Police+in+UN+Peace+Keeping+Operations&NewsID=369951. Último acesso em: 25 jun. 2014.
4. Disponível em: http://advocacyforum.org/hrc-cases/index.php . Última acesso em: jun. 2014.
5. Disponível em: http://advocacyforum.org/publications/un-submissions.php. Última acesso em: jun. 2014.
6. Ibid.
Bibliografia e outras fontes
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________. 2014. Promising Development – Persistent Problems: Trends and Patterns in Torture in Nepal During 2013. June 2014. Disponível em: http://advocacyforum.org/downloads/pdf/publications/torture/promising-development-persistent-problems.pdf.Último acesso em: jul. 2014.
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Advocacy Forum; Redress. 2001. Held to Account: Making the Law Work to Fight Impunity in Nepal. Disponível em: http://www.redress.org/downloads/Nepal%20Impunity%20Report%20-%20English.pdf . Último acesso em: 28 maio 2014.
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________. 2012. General Assembly. Report of the Committee Against Torture. UN Doc. A/67/44. Disponível em: http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=A%2f67%2f44&Lang=en . Último acesso em: 28 maio 2014.
Jurisprudência
NEPAL. 2007. Supreme Court. Ghimire & Dahal v. the Government of Nepal, 17 December.