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Minorias democráticas em democracias do século XXI

Pedro Abramovay e Heloisa Griggs

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RESUMO

Em todo o mundo, há um crescente e entusiasmado debate em torno da reestruturação das relações entre os cidadãos e os Poderes Legislativo e Executivo, como resultado da defasagem entre as instituições democráticas do século 19 e as sociedades do século 21. Há um considerável potencial para a transformação e ampliação da participação democrática através de novas ferramentas e abordagens. No entanto, isto não se dá sem risco, uma vez que as maiorias democráticas podem abusar do seu poder e oprimir as minorias democráticas. O debate sobre a necessidade de repensar o judiciário e outros mecanismos de proteção dos direitos das minorias democráticas é muito menos avançado. Muitas organizações de direitos humanos e indivíduos estão pensando efetivamente sobre como devem ser os novos freios e controles para promover os direitos das minorias democráticas nas sociedades do século 21. Mas ainda há uma resistência substancial no campo de direitos humanos impedindo que as atuais estruturas e abordagens visando à proteção dos direitos humanos sejam revistas. Embora haja uma apreensão compreensível em relação à possibilidade de enfraquecimento das estruturas de direitos humanos existentes caso mudemos a maneira como pensamos, nos referimos e defendemos os direitos humanos, tais mudanças e experiências serão fundamentais para o avanço dos direitos das minorias democráticas nas democracias do século 21.

Palavras-Chave

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Quando centenas de milhares de pessoas saíram às ruas ano passado no Brasil, um dos refrões mais comuns era “queremos ser ouvidos”. Para além do Brasil, os protestos recentes em todo o mundo demandaram capacidade de resposta do governo e o fim da “política como de costume”, revelando imensa frustração e impaciência com a opacidade e impermeabilidade do próprio sistema político (KRASTEV, 2014, p. 21). O uso das mídias sociais foi essencial para o planejamento e rápida expansão desses protestos, permitindo que indivíduos se juntassem a outros indivíduos para pressionar diretamente por mudanças. Além desses protestos ampliados que agora podem ser organizados simultaneamente em muitas cidades, há uma ampla gama de ferramentas, conforme analisado a seguir, que permite que os indivíduos acompanhem, questionem e interajam com os governos de maneiras que eram inconcebíveis há pouco tempo.

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1.  Instituições democráticas do século 19 e sociedades do século 21

A grande inovação das democracias modernas não foi a criação de instituições para representar as maiorias, o que a democracia antiga já havia tentado muito antes, mas sim projetar instituições capazes de permitir a incorporação das minorias ao debate público. Os fundadores dos Estados Unidos se preocupavam com a possibilidade de que a maioria pudesse abusar de seus poderes para oprimir a minoria, embora a regra da maioria fosse necessária para representar a vontade popular. Alexis de Tocqueville ficou impressionado com a capacidade que a democracia norte-americana tinha de trazer à tona a tirania da maioria. Democracias modernas reconheceram os direitos humanos fundamentais, como na Declaração de Direitos dos EUA, e estabeleceram sistemas judiciários independentes para atuar como um controle sobre o Executivo e o Legislativo.

Logicamente, essas instituições do século 19 foram projetadas para proteger o poder dos proprietários de terras do sexo masculino e de ascendência europeia. Mas o modelo dessas instituições criou uma estrutura e um discurso em torno da proteção das minorias que facilitaram os expressivos progressos dos direitos durante o século 20. Assim, um aspecto central das democracias modernas é sua capacidade de combinar o sufrágio universal com freios e controles para proteger os direitos humanos.

Tanto os mecanismos de representação da maioria quanto aqueles feitos para integrarem as perspectivas das minorias democráticas foram projetados para sociedades completamente diferentes daquelas em que vivemos hoje. Quando essas instituições democráticas modernas foram concebidas, as sociedades eram moldadas pela Revolução Industrial, com estruturas hierárquicas e sistemas relativamente estáticos para representar ambos os grupos majoritário e minoritário.

Nossas sociedades do século 21 mudaram drasticamente, apresentando hoje uma enorme capacidade para a troca de informação e comunicação entre os cidadãos. Os indivíduos têm um número maior de identidades e participação em grupos diferentes. A rápida evolução tecnológica tem contribuído para o declínio das estruturas tradicionais de poder. As estruturas de poder concebidas no século 19 estão cada vez mais fracas e restritas em uma ampla variedade de aspectos incluindo política, economia, guerra, religião, cultura, filantropia e o poder de indivíduos (NAÍM, 2013).

Os Poderes Executivo e Legislativo das nossas democracias foram concebidos em um momento em que parecia factível pensar que a principal interação entre indivíduos e governos se daria em torno de eleger ou reeleger membros do governo de tempos em tempos. Mas com o ritmo acelerado em que nós agora produzimos, recebemos e interagimos com as informações, as pessoas podem e querem fazer muito mais do que avaliar o andamento do governo de tempos em tempos. Essa desconexão significativa entre as instituições democráticas do século 19 e as sociedades do século 21 é algo com que os governos de todo o mundo ainda não souberam lidar.

Como resultado dessa lacuna cada vez mais gritante entre as instituições democráticas do século 19 e as sociedades do século 21, há um crescente consenso em muitas partes do mundo sobre a necessidade de se repensar as relações dos cidadãos com os Poderes Legislativo e Executivo. Há um potencial significativo para transformar e ampliar a participação democrática por meio de novas ferramentas e abordagens. Mas ainda não há clareza sobre quais seriam essas mudanças (nem sequer uma agenda de reformas institucionais que cause essas mudanças).

Condições para pilotar os novos modelos de participação democrática capazes de catalisar o debate global sobre a natureza das instituições democráticas e das relações Estado-sociedade variam substancialmente, e a América Latina é particularmente bem posicionada. As democracias novas, mas relativamente estáveis, da região experimentaram reduções históricas da pobreza na última década, o que aumentou a expectativa dos cidadãos em grande parte da região e em outras economias emergentes em todo o mundo (FUKUYAMA, 2013). Mais da metade da população da América Latina tem menos de 30 anos de idade e estes jovens são a primeira geração a crescer sob governos democráticos. Embora a democracia tenha se enraizado e avançado ainda mais do que em muitas partes do Sul Global, a cultura e as instituições democráticas são relativamente jovens e ainda maleáveis em comparação com as democracias mais estáticas dos Estados Unidos e de grande parte da Europa. Com o crescimento econômico da região acompanhado por aumento de influência global, a América Latina está agora em posição de determinar o seu próprio futuro, em vez de ser moldada principalmente por atores e eventos externos.

Os protestos de grande dimensão ??no Brasil e em outros lugares significam que atores importantes nos governos podem estar mais inclinados a reconsiderar a concepção dos processos institucionais. O desafio agora é transformar a recente explosão de engajamento dos cidadãos em participação deles mesmos na definição de novas políticas, processos e instituições. Com maior foco nas mudanças de comportamento, cultura política e processos institucionais, as tecnologias de informação e comunicação podem oferecer novos canais para o envolvimento dos cidadãos com o governo e fortalecer a capacidade de resposta deste último. Este é um momento oportuno para a experimentação de reformas para tornar as democracias mais eficazes e abertas à participação dos cidadãos.

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2.  Minorias democráticas em democracias do século 21

Ampliar a participação democrática na América Latina ou em outras partes do mundo envolve riscos, uma vez que as maiorias democráticas podem abusar do seu poder e oprimir as minorias democráticas. Minorias democráticas podem incluir grupos raciais, étnicos, nacionais, de gênero, de sexualidade, grupos religiosos ou outros com pouco poder ou representação em relação a outros grupos da sociedade. Minorias democráticas não são uma categoria fixa e podem ser compostas por diferentes grupos de pessoas, dependendo do assunto em questão, e mudar ao longo do tempo, como foi o caso dos esforços em torno da reforma das políticas de drogas. Em alguns casos, tais como os direitos das mulheres, os grupos podem até constituir maiorias em termos de números absolutos em uma sociedade, mas continuam a ser minorias democráticas, como resultado de sua falta de influência em relação a outros grupos em uma democracia.

Há um crescente debate público e entusiasmo em torno da reestruturação das relações entre os cidadãos e os Poderes Legislativo e Executivo, como resultado da defasagem entre as instituições democráticas do século 19 e as sociedades do século 21 (ITO, 2003). Por outro lado, o debate sobre a necessidade de se repensar o judiciário e outros mecanismos contramajoritários de proteção dos direitos das minorias democráticas é muito menos avançado. Uma série de organizações de direitos humanos e indivíduos estão começando a pensar sobre como devem ser os novos freios e controles para promover os direitos das minorias democráticas nas sociedades do século 21. Mas, apesar do desempenho muitas vezes fraco das instituições responsáveis ??pela garantia dos direitos das minorias democráticas, a maior parte do campo de direitos humanos não deseja rever as normas de direitos humanos e os mecanismos existentes.

Como resultado de esforços significativos para enfraquecer ou reverter os avanços dos direitos humanos em muitas partes do mundo atual, muitos no campo de direitos humanos temem que mudanças substanciais nas abordagens, linguagem e estruturas possam enfraquecer ou minar as estruturas de direitos humanos existentes. Por exemplo, durante o processo de reforma da Comissão Interamericana de Direitos Humanos entre 2011 e 2013, os membros da Organização dos Estados Americanos levantaram uma série de antigos desafios e questões relevantes para serem discutidos. No entanto, as propostas durante o processo de reforma por parte de alguns Estados-membros eram vistas como esforços para enfraquecer e limitar a autonomia da Comissão Interamericana, o que colocou muitos dos defensores da Comissão Interamericana na defensiva e limitou a possibilidade de um debate franco e construtivo sobre esses desafios.

No entanto, precisamente por causa das consideráveis mudanças em curso nas democracias da atualidade e no equilíbrio global de poder, nós precisamos experimentar novas estratégias e mecanismos para promover os direitos das minorias democráticas. Como campo, frequentemente nos concentramos em corrigir os erros já ocorridos e acabamos nos voltando mais para o passado que para o futuro. Nossa resposta à pergunta que a SUR 20 faz sobre se os direitos humanos ainda seriam uma linguagem eficaz para a produção de mudança social é um retumbante sim, se estivermos dispostos a levar à frente modificações substanciais nas estruturas de direitos humanos e nas abordagens existentes. Essa conversa, bem como a experimentação de novas abordagens e instituições para promover os direitos das minorias democráticas, pode parecer desalinhada em relação à grande parte do que entendemos como normas e processos centrais aos direitos humanos, mas ela será essencial para a manutenção da relevância e da influência do campo.

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3.  Experiências com novas abordagens para o avanço dos direitos das minorias democráticas

Atualizar os freios e os controles das instituições democráticas do século 19 para torná-las relevantes para as sociedades do século 21 pode envolver pequenos ajustes ou uma revisão mais substancial do papel e do trabalho desses órgãos. De maneira concreta, a quais tipos de experimentação com novos mecanismos e estratégias de promoção dos direitos das minorias democráticas estamos nos referindo?

3.1  Judiciários nacionais

No contexto nacional, os sistemas judiciários são as principais instituições contramajoritárias responsáveis pela proteção dos direitos das minorias democráticas. Partindo da premissa de que a preservação da independência judiciária e da sua capacidade de impor freios aos Poderes Executivo e Legislativo exige que este seja isolado da opinião pública e de sua influência, o Poder Judiciário muitas vezes se manteve mais reservado e menos transparente do que outras áreas do governo. Por exemplo, uma recente avaliação da implementação da lei de acesso à informação por todos os três ramos do governo no Brasil constatou que o Judiciário era o que estava mais atrasado na implementação (MONITORAMENTO…, 2014, p. 56). Em vez de capacitar o Poder Judiciário para a promoção dos direitos das minorias democráticas, os esforços para isolá-lo da opinião e do escrutínio públicos tendem a torná-lo menos ágil, acessível e com um menor nível de prestação de contas.

Ao mesmo tempo, apesar da intenção de que o projeto constitucional atue principalmente como um freio à vontade popular, ao que tudo indica o Judiciário é, muitas vezes, fortemente influenciado pela opinião pública. Nos Estados Unidos, há pelo menos 70 anos, a opinião pública tem influenciado o Supremo Tribunal e os dois se alinharam ao longo do tempo, mesmo quando a Suprema Corte se adianta em relação ao público em algumas questões ou se atrasa em outras (FRIEDMAN, 2009, pp. 14-15). Os representantes públicos e aqueles eleitos têm exercido pressão sobre o Supremo Tribunal Federal em diversos momentos, e juízes da Suprema Corte têm reconhecido a dependência da Suprema Corte da opinião pública (FRIEDMAN, 2009, pp. 370-371).

O debate sobre a interação entre a Suprema Corte e a opinião pública e sua frequente confirmação acontece em muitos lugares ao redor do mundo. Por exemplo, um debate semelhante sobre a relação entre o Supremo Tribunal e a opinião pública está em andamento no Brasil, com argumentos que apoiam o Supremo Tribunal Federal a deliberar com base em informações fornecidas pela opinião pública, destacando a importância desta relação para a legitimidade do Supremo Tribunal em uma democracia (FALCÃO, 2012).

As ferramentas de informação e comunicação do século 21 aceleraram rapidamente as maneiras por meio das quais a opinião pública pode influenciar o Judiciário. Ao invés de continuarmos fingindo que podemos e devemos isolar o Judiciário da opinião pública, devemos reconhecer essa relação e explorar seu significado, se o que buscamos é a promoção dos direitos das minorias democráticas. Experimentar formas de alterar a interação entre o público e o Judiciário pode ser mais fácil nas democracias do Sul Global, onde os judiciários ainda são novos e talvez um pouco menos avessos à mudança.

Por exemplo, há um debate em curso em vários países sobre a possibilidade de televisionar os procedimentos da Suprema Corte. Nos Estados Unidos, houve importantes debates públicos sobre este tema, com argumentos apoiando os benefícios em termos de maior transparência e interação entre o público e o Supremo Tribunal e propostas legislativas para incentivar ou exigir o televisionamento dos procedimentos da Suprema Corte (YOUR REALITY…, 2010; CHEMERINSKY, 2014). No entanto, o argumento de que a transmissão televisiva do Supremo Tribunal seria uma ameaça à independência judicial parece ter prosperado até agora, apesar do relevante apoio público no sentido de televisionar o processo do Supremo Tribunal (MAURO, 2010).

Por outro lado, no Brasil, o Judiciário criou a “TV Justiça”, em 2002. Após a polêmica inicial sobre a possibilidade de transmitir ao vivo os procedimentos judiciais, com a preocupação de que este processo pudesse influenciar as decisões da Justiça, todas as audiências na Suprema Corte passaram a ser transmitidas dessa forma. A “TV Justiça” se propôs a melhorar a comunicação e a compreensão do público em geral, e tem havido um aumento importante no interesse público e nos debates sobre as decisões da Suprema Corte nos últimos anos. Há discussões e experimentos importantes sobre os procedimentos de televisionamento judiciais em curso em todo o mundo e, certamente, esta inovação não acontecerá exclusivamente no Sul Global, mas este é um exemplo interessante de como pode ser mais fácil para o Poder Judiciário tentar diferentes abordagens nas democracias mais recentes.

Ao discutir sobre a transmissão televisiva das atividades da Suprema Corte, estamos tão somente debatendo abertamente o alinhamento do Judiciário à tecnologia do século 20, e não às ferramentas de comunicação muito mais interativas disponíveis hoje em dia, mas isso já nos dá uma ideia do quão resistente a mudanças o Judiciário tem sido. A questão em torno da transmissão televisiva das atividades da Suprema Corte é um pequeno exemplo de como faz cada vez mais sentido reconhecer a influência da opinião pública sobre o Poder Judiciário e considerar este fator em nossas estratégias para a promoção dos direitos das minorias democráticas. Certamente, há muitas novas formas de ajustar e modificar a maneira como o Poder Judiciário opera. Algumas delas incorporarão as possibilidades de participação pública e apoiarão a promoção dos direitos humanos.

3.2  Mecanismos internacionais de direitos humanos

No contexto internacional, há oportunidades substanciais de mudança para os mecanismos internacionais de direitos humanos de forma a torná-los mais receptivos aos desafios de direitos humanos do século 21 e mais eficientes na promoção dos direitos das minorias nesse contexto. No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que é o sistema regional que acompanhamos mais de perto, a Comissão Interamericana está bem posicionada para experimentar novas formas de interagir com os governos e com a sociedade civil e enfrentar os atuais desafios aos direitos humanos.

Embora a Comissão Interamericana tivesse funções adjudicatórias e políticas mais amplas, ela frequentemente centrou sua atenção no recebimento, análise e emissão de recomendações sobre petições individuais. Com relação a estas últimas, há importantes mudanças possíveis nos procedimentos atuais sendo debatidas, como os casos de consolidação envolvendo questões factuais ou jurídicas substancialmente similares, ou, de maneira mais controversa, priorizando casos (OROZCO, 2014). Tais modificações podem ajudar a Comissão Interamericana a reduzir o substancial atraso de seus trabalhos, o que tem afetado consideravelmente sua capacidade de cumprir seu papel fundamental.

No entanto, a possibilidade de que a Comissão Interamericana desenvolva e expanda seu papel nas políticas públicas é a oportunidade mais interessante no sentido de aumentar seu impacto e sua capacidade de promover os direitos das minorias democráticas na América Latina e no Caribe hoje em dia. Naturalmente, a Comissão Interamericana teve um impacto substancial sobre questões de política na região através de seus papéis não contenciosos no passado, como na famosa e amplamente reconhecida visita à Argentina em 1979 (SIKKINK, 2011, p. 65-66). No entanto, as abordagens mais eficazes para que a Comissão Interamericana possa influenciar os resultados de direitos humanos no contexto das atuais democracias imperfeitas, mas em evolução, certamente serão muito diferentes das adotadas em um período em que muitos dos governos do hemisfério eram ditaduras.

O crescente engajamento da Comissão Interamericana com diferentes partes dos governos nacionais, apoiando líderes governamentais e instituições interessadas em promover os direitos das minorias democráticas, pode ajudar a promoção destes direitos de uma maneira que as petições individuais não são capazes, levando a mudanças políticas mais amplas e estruturais. Enquanto as petições são primordialmente uma forma de interagir com os governos de forma oponente (exceto, talvez, no caso de soluções amistosas), o envolvimento em políticas públicas da Comissão Interamericana com os governos através da colaboração em matérias de direitos humanos de interesse mútuo, inclusive através de visitas, assistência técnica e projetos conjuntos, poderia ajudar a reforçar a aplicação das normas de direitos humanos em nível nacional e local.

Isso não quer dizer que não haverá desafios para uma abordagem mais colaborativa ao engajamento com os governos do hemisfério e, presumivelmente, preocupação por parte de alguns atores no domínio dos direitos humanos sobre a capacidade da Comissão Interamericana de manter a sua independência. No entanto, da mesma forma que as organizações de direitos humanos estão cada vez mais envolvidas com os governos em torno da construção de agendas de políticas de direitos humanos, mantendo-se críticas e independentes, a Comissão Interamericana também se beneficia enormemente desta abordagem para as suas relações com os governos no hemisfério.

Mudanças significativas exigirão complexas reformas nas políticas públicas e não apenas reparações de curto prazo. A Comissão Interamericana já tem experiência substancial na realização de reformas políticas importantes, como no caso Maria da Penha, em que a Comissão Interamericana concluiu que a violação dos direitos de Maria da Penha fazia parte de um padrão de discriminação que envolvia tolerar a violência doméstica contra as mulheres no Brasil (INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS, Maria da Penha v. Brazil, 2001). A decisão da Comissão Interamericana, combinada ao expressivo advocacy da sociedade civil e ao engajamento com o governo, contribuiu para a promulgação da “Lei Maria da Penha” (Lei 11.340/2006) e a adoção de outras políticas públicas para enfrentar a omissão e a tolerância ligadas à violência doméstica contra as mulheres. Com base em experiências passadas que influenciaram as políticas de direitos humanos no hemisfério, a Comissão Interamericana deve ser cumprimentada por sua atual deliberação e seu debate sobre como ampliar e fortalecer essa função de política pública. Felizmente, o campo regional de direitos humanos poderá apoiar a Comissão Interamericana na revisão destes aspectos das suas funções.

Tanto no contexto nacional quanto internacional, discutimos as maiores e as menores mudanças na maneira pela qual os organismos contramajoritários abordam seu trabalho, mas não as novas estruturas ou os mecanismos que acabaram de ser criados. É nossa esperança que essas conversas sobre como começar a mudar as instituições existentes possam levar a reflexões sobre instituições ou processos totalmente novos, mas é reconhecidamente difícil antecipar como estes seriam constituídos. O aspecto mais importante neste momento é a vontade de rever os mecanismos e as abordagens existentes para ver aonde isso poderia nos levar, em vez de permitir que o campo de direitos humanos seja amarrado e limitado pelas atuais estruturas.

3.3  Influenciar a opinião pública e trabalhar com governos

Novas abordagens para a promoção dos direitos das minorias democráticas que possam ajudar a criar diferentes freios e controles envolverão esforços substanciais para que conquistem e se comuniquem com a opinião pública a respeito de questões de direitos humanos. Como descrito anteriormente, a noção de que os tribunais, tradicionalmente encarregados de defender os direitos das minorias democráticas, possam permanecer completamente isolados da opinião pública provavelmente já não é verdade há muito tempo, ainda mais se considerarmos o ritmo e o volume dos debates públicos possibilitados pelas tecnologias de informação e comunicação. Além disso, apesar do seu papel absolutamente fundamental, existem muitas outras limitações à promoção pelo Judiciário dos direitos das minorias democráticas, e o engajamento com os Poderes Executivo e Legislativo é essencial.

Reconhecer que as instituições contramajoritárias têm sido e provavelmente serão cada vez mais influenciadas pela opinião pública tem implicações importantes na maneira pela qual buscamos promover os direitos das minorias democráticas. De maneira expressiva, isso sugere que não devemos esperar que os sistemas judiciários e os mecanismos de direitos humanos sozinhos sejam capazes de salvaguardar os direitos desses grupos. Em vez disso, devemos proativamente empreender maiores esforços para moldar a opinião pública, utilizando ferramentas e canais em rápida expansão para a participação democrática. Buscar influenciar a opinião pública não significa que as organizações de direitos humanos terão de ceder a ela ou que o caminho a seguir em relação a uma dada questão sempre envolverá a tentativa de conquistar a opinião da maioria.

Novas estratégias exigirão também o trabalho em estreita colaboração com o governo de modo a reconhecer sua complexidade e as múltiplas perspectivas, muitas vezes concorrentes, dentro do governo que podem ser empenhadas de forma eficaz para o avanço dos direitos humanos. Em muitos países, o movimento de direitos humanos surgiu durante períodos difíceis de ditadura política ou de conflitos, quando ocorreram graves violações e o contexto dos direitos humanos era marcado por extremos e absolutismos. Embora o conflito e os líderes autocráticos ainda se mantenham em algumas partes do mundo, as democracias imperfeitas e muitas vezes confusas exigem um engajamento muito mais multifacetado.

Muitos exemplos de novas estratégias e abordagens estão em andamento. A reforma da política de drogas é um exemplo de situação em que, apesar das extensas e antigas violações de direitos humanos resultantes da guerra às drogas, nem as instituições democráticas majoritárias ou as contramajoritárias eram capazes ou estavam dispostas a enfrentar este desafio premente de direitos humanos. O paradigma do combate às drogas tornou-se onipresente e até mesmo a discussão de alternativas ao atual regime tornou-se impossível por um longo tempo. Os líderes políticos tentaram superar uns aos outros em termos de quem poderia ser mais duro em relação às drogas, aumentando as penas para delitos relacionados a elas e alocando grandes somas de dinheiro para a guerra contra os entorpecentes. Embora as organizações de direitos humanos e algumas instituições contramajoritárias na América Latina viessem há tempos abordando as consequências da guerra às drogas sob a forma de abusos por parte das forças militares e policiais, de falha no devido encaminhamento das denúncias e de altos índices de encarceramento, a mudança da política de drogas era geralmente vista como um tema periférico, um tabu.

Mas o movimento de reforma da política de drogas ganhou enorme impulso no Hemisfério Ocidental nos últimos anos, tendo sido construído com base em outros canais que não os tradicionais e envolvendo alianças improváveis. Houve esforços consideráveis ??para envolver ex-líderes políticos na Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia envolvendo três ex-presidentes do Brasil, da Colômbia e do México, os quais desempenharam um importante papel, bem como para envolver atuais líderes políticos que se encontrem abertos a discutir ou explorar opções de reforma no Uruguai, na Colômbia, na Guatemala e em outros países. Houve campanhas criativas para influenciar a opinião pública sobre a política de drogas, como no período que antecedeu à legalização da maconha no Uruguai. Um número crescente de organizações de direitos humanos está incorporando a reforma da política de drogas em suas agendas políticas e organismos de direitos humanos, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Comissão da Cidade do México para os Direitos Humanos, as quais estão se concentrando na reforma da política de drogas pela primeira vez. Como a questão evoluiu das margens para o centro, debates públicos de fato sobre alternativas ao atual regime de proibição de drogas tornaram-se possíveis.

Há também a inovação em curso sobre questões há tempos consideradas como partes da agenda de direitos humanos, como a justiça criminal. Muitas organizações estão realizando campanhas interessantes para tentar convencer a opinião pública a respeito das questões desafiadoras de direitos humanos. Por exemplo, a campanha “No a la Baja”, no Uruguai, é destinada a impedir a redução da maioridade criminal em um referendo constitucional no final de 2014 (COMISIÓN NACIONAL NO A LA BAJA, 2014).

Conforme crescem a influência e o potencial para o aumento da participação pública, faz cada vez mais sentido experimentar novas maneiras de influenciar a opinião pública sobre questões de direitos humanos que anteriormente eram defendidas nos tribunais. Organizações estratégicas de direitos humanos estão cada vez mais focadas na construção e expansão de bases de apoio para o seu trabalho, buscando colaborar com novos setores que não tenham se identificado com estruturas de direitos humanos no passado. A abordagem do movimento de direitos humanos quanto ao trabalho junto aos governos na promoção destes direitos na América Latina já sofreu mudanças substanciais, atingindo níveis significativos de colaboração na concepção e implementação de políticas, mantendo a independência e uma perspectiva crítica.

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4.  Condutores da mudança

Esta é uma agenda ambiciosa no sentido de mudar a forma de pensar e promover os direitos humanos nas democracias do século 21, e uma pergunta-chave é: quem conduzirá essas mudanças? A resposta toca em uma das questões centrais colocadas pela SUR 20: quem as organizações de direitos humanos representam?

Organizações de direitos humanos inovadoras e resilientes em todo o mundo e, especialmente, no Sul Global estarão no centro dessas mudanças e experimentações. As novas ferramentas de comunicação e os protestos em massa dos últimos anos geraram uma impressão de que os indivíduos são agora capazes de interagir com os governos e realizar mudanças de maneira direta. Mas um grande número de observadores, incluindo Ivan Krastev e Pierre Rosanvallon, alertam para as limitações e as armadilhas de democracias onde o indivíduo desconfiado está no centro, sem laços organizacionais e excessivamente centrado nos descuidos e limitações do governo, em vez de focar na construção da democracia. As pessoas podem questionar, monitorar e limitar os governos, mas elas não são capazes de construir agendas e propor caminhos construtivos para o futuro. Organizações robustas da sociedade civil têm um papel vital a desempenhar nesta função democrática mais proativa.

Movimentos de protesto mal organizados e estruturados em diversos países geraram considerável energia e atenção, mas caíram por terra e foram incapazes de promover agendas de reforma. Na verdade, uma crítica cada vez mais comum a essa nova onda de protestos é que esta parece ser principalmente uma explosão de indignação moral, sem liderança ou metas estratégicas (KRASTEV, 2014, p. 13).

Durante os recentes protestos de massa, muitas organizações de direitos humanos e outros campos da sociedade civil organizada, incluindo fundações, ficaram de fora do grosso da ação e, por vezes, faltou-lhes clareza sobre como poderiam se envolver com tais explosões de engajamento dos cidadãos que rejeitam todas as organizações formais. As relações e a colaboração entre os frequentemente fluidos movimentos de protesto e a sociedade civil organizada não são fáceis ou simples. Mas elas serão essenciais para a construção de agendas de reforma com amplas bases de apoio e para a sua promoção.

Neste contexto, as organizações de direitos humanos e outras partes da sociedade civil organizada podem desempenhar um papel crucial agindo como um centro para o empoderamento de minorias democráticas e construção e manutenção de sua influência ao longo do tempo. As organizações são mais capazes de desenvolver propostas e diálogo com os governos do que os indivíduos. Elas têm condições de interagir com o governo de maneiras complexas, reconhecendo a pluralidade e a heterogeneidade de governo, bem como a necessidade de se envolver com esses atores que estão dentro do governo pressionando por mudanças, ao mesmo tempo mantendo-se críticas. Em vez de representar ou agir em nome de minorias democráticas, esses centros servirão como canais para promover os direitos das minorias democráticas, permanecendo abertos ao constante diálogo com esses grupos minoritários democráticos, com diferentes partes do governo, mídia e com a opinião pública em geral.

Esta função central e a interação regular com o governo, permitindo o acompanhamento e a participação constantes, e não apenas através de eleições de tempos em tempos, é de vital importância em uma democracia moderna. Servir como um canal para diversas bases de apoio e se envolver com diferentes setores do governo é provavelmente algo que envolverá mudanças na forma como as organizações entendem e defendem os direitos humanos, e várias organizações de direitos humanos já estão fazendo experiências com essas novas abordagens. Conforme a promoção de direitos humanos assume novas formas e canais, atores-chave na promoção dos direitos das minorias democráticas podem muito bem incluir organizações que não se consideram prioritariamente organizações de direitos humanos.

É provável que essa mudança e a inovação no campo de direitos humanos assumam muitas e diferentes formas em todo o mundo e certamente haverá muitos erros e experiências fracassadas ao longo do caminho. Considerando que a SUR 20 pergunta justamente sobre os desafios de se trabalhar com direitos humanos internacionalmente a partir do Sul, há pelo menos uma maneira de fazê-lo com vantagens significativas. As instituições democráticas e a cultura no Sul Global, embora muitas vezes frágeis, ainda são flexíveis e abertas à mudança de uma maneira que as democracias mais estabelecidas no Norte Global não são. Isto é especialmente verdadeiro na América Latina e gera condições para a experimentação de novas abordagens e ideias que poderiam não ser possíveis no Norte Global.

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5.  Conclusão

O pluralismo e a experimentação não são conceitos que identificamos imediatamente com o campo de direitos humanos, com seu foco histórico na universalidade e na jurisprudência. O desenvolvimento e a rápida expansão dos direitos humanos nas últimas décadas têm sido dramáticos e impressionantes, com a adoção de um grande número de acordos internacionais de direitos humanos e a incorporação dos direitos humanos em constituições e leis nacionais. A falta de implementação e os retrocessos em algumas áreas nos últimos anos levaram a uma expressiva frustração e a argumentos que defendem que o regime global de direitos humanos está à beira do declínio (HOPGOOD, 2013). Mas, da mesma forma que o movimento de direitos humanos surgiu e se expandiu de maneiras imprevistas, ele agora pode e deve mudar e adaptar-se aos desafios dos direitos humanos e do contexto de sociedades do século 21. Haverá erros ao longo do caminho e ajustar-se à ideia de que a nossa forma de falar, pensar e defender os direitos humanos pode começar se tornar muito diferente mundo afora pode não ser fácil.

Se a universalidade definiu os direitos humanos no século 20, o pluralismo pode muito bem defini-los no século 21. O pluralismo vai incluir a diversidade em termos de atores e líderes de direitos humanos e sua origem no globo. Incluirá também uma heterogeneidade no tipo de direitos que queremos e como eles se parecem na prática. Por exemplo, Joey Fishkin exorta-nos a repensar a nossa abordagem à igualdade de oportunidades, deixando de lado o foco na equalização literal e concentrando-se no pluralismo de oportunidades, soltando os gargalos que limitam o acesso às oportunidades (FISHKIN, 2014). Finalmente, ela incluirá a experimentação e a inovação na forma como buscamos promover os direitos das minorias democráticas em todo o mundo.

As instituições concebidas para proteger as minorias democráticas há 200 anos não são mais capazes de cumprir esse papel hoje. Há a oportunidade de construirmos novos freios e controles que levem em conta tanto as novas ferramentas e os desafios das sociedades contemporâneas para o aprofundamento da inclusão das minorias democráticas no debate público e na proteção mais eficaz dos seus direitos. O movimento de direitos humanos tem um papel fundamental no apoio à construção desses novos freios e controles através do envolvimento mais profundo com a opinião pública e as diferentes partes do governo.

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Referências

Bibliografia e outras fontes

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Jurisprudência

INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. 2001. Maria da Penha v. Brazil, Report Number 54/01 of 16 Apr., Case Number 12.051, OEA/Ser.L/V/II.111 Doc. 20 rev. at 704.

Pedro Abramovay

Pedro Abramovay é Diretor do Programa Latino-Americano e Diretor Regional da América Latina e Caribe da Open Society Foundations. Anteriormente, Abramovay ocupou uma série de postos-chave dentro do Ministério da Justiça do Brasil, incluindo o de Secretário de Justiça entre 2010 e 2011. No governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Abramovay ajudou a elaborar peças legislativas importantes e liderou uma campanha que resultou na remoção de cerca de meio milhão de armas de circulação. Trabalhou na reforma do sistema penitenciário do Brasil e criou um processo de elaboração de leis sobre a liberdade na Internet por meio de um blog. Abramovay também foi diretor de campanha da Avaaz e professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Abramovay estudou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília.

Original em inglês. Traduzido por Adriana Gomes Guimarães.

Recebido em junho de 2014.

Heloisa Griggs

Heloisa Helena Griggs é assessora senior do Programa para a América Latina da Open Society Foundations, onde administra a concessão de doações e o advocacy dos programas de direitos humanos e segurança cidadã na América Latina. Antes de ingressar na Open Society Foundations, Griggs era advogada associada do escritório Simpson Thacher & Bartlett LLP, em São Paulo. De 2007 a 2010, atuou como assessora do senador Richard J. Durbin, no Comitê Judiciário do Senado dos EUA, assessorando o senador Durbin sobre direitos humanos, justiça criminal e imigração. Anteriormente, Griggs trabalhou para organizações não governamentais de direitos humanos em Washington, no Timor-Leste e em Angola. Griggs concluiu seu bacharelado em história e estudos internacionais em Yale e é formada em direito pela Yale Law School.

Original em inglês. Traduzido por Adriana Gomes Guimarães.

Recebido em junho de 2014.