Neste artigo, a autora revê os recentes desafios ao movimento de direitos humanos em Angola no pós-guerra. No âmbito nacional, apesar da aprovação em 2010 da nova Constituição de Angola, o governo continua a perseguir os defensores de direitos humanos. A autora relata, especialmente, restrições ao exercício do direito de reunião e manifestação em Angola. No âmbito internacional, organizações da sociedade civil angolana têm utilizado instrumentos internacionais para fazer pressão por maior respeito aos direitos humanos por parte do governo. Argumenta-se, ao fim, que, mesmo em um contexto hostil como o angolano, os direitos humanos são uma linguagem eficaz para produzir mudanças sociais, principalmente quando são utilizados como instrumento de pressão externa para que o governo os cumpra no âmbito interno, e quando há grandes movimentos sociais capacitados em direitos humanos. Apesar dos desafios que os defensores de direitos humanos enfrentam, a autora argumenta que a ideia de uma Angola mais justa e igual para todos mantêm viva a vontade de lutar pela mudança social.
Os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos angolanos são garantidos constitucionalmente. Há muitos instrumentos jurídicos de proteção dos direitos humanos em nível interno, assim como tratados internacionais incorporados na ordem jurídica nacional. Entretanto, a prática tem demonstrado que esses documentos, por si sós, não garantem o respeito a esses direitos. Vários fatores concorrem para isso.
Em primeiro lugar, prepondera ainda no país a ideia de que os direitos humanos são incompatíveis com as diferenças étnicas, culturais e religiosas. Além disso, a violação dos direitos é uma das formas que o poder político encontra para se impor, inibir a participação cidadã e, com isso, cimentar e perpetuar o poder como o principal entrave ao processo de democratização do país.
Pelo contexto de guerra vivido durante 30 anos no país, toda análise dos problemas sociais é feita sob dois prismas: o do partido no poder e o dos partidos na oposição. Os ativistas de direitos humanos e os promotores da luta pela igualdade em Angola são, assim, etiquetados como simpatizantes de algum partido político da oposição, sendo vistos, em regra, como “contrários” ao governo e a serviço de potências estrangeiras. Em outras palavras, houve em Angola a implantação de uma cultura político-partidária em detrimento da consciência cívica para a defesa dos direitos humanos. O problema dessa situação é que sempre haverá alguém para julgar tudo que se faz com a mesma ferocidade com que se confrontam os adversários políticos, mesmo que a intenção dos defensores dos direitos humanos seja apenas criticar algo que esteja errado e apontar o melhor caminho a ser seguido para a satisfação e proteção do interesse comum. Tornamo-nos polícias uns dos outros, e assim perde-se o foco do que realmente interessa, que é a luta pela democratização do país e, consequentemente, por mais respeito e tolerância em direitos humanos.
Mesmo nesse contexto hostil, contudo, os direitos humanos são uma linguagem eficaz para produzir mudanças sociais, principalmente quando são utilizados como instrumento de pressão externa para que o governo os cumpra no âmbito interno. Apresento a seguir os meus argumentos analisados sob a perspectiva de defensora de direitos humanos.
Angola aprovou a nova Constituição em 2010, a qual revogou a Lei Constitucional de 1992. A nova Carta Magna trouxe mudanças positivas na legislação, sobretudo no capítulo referente aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Por exemplo, houve um aumento de 35 artigos na Lei Constitucional para 59 artigos na Constituição atual. Vale dizer também que o atual texto constitucional está mais bem organizado no que concerne às gerações de direitos. Porém, essa é apenas uma observação técnica que não passa de mera disposição e integração decorativa, pois entre os direitos constitucionalmente consagrados e a sua materialização há um abismo que os separa.
O governo continua a perseguir os defensores de direitos humanos, assim como continuam a ocorrer raptos e assassinatos de ativistas e adversários políticos, ou seja, apesar dos avanços na lei, a prática ficou parada no tempo – sem contar as áreas em que houve um manifesto recuo. Por exemplo, atualmente é ainda quase impossível exercer o direito de reunião e manifestação, garantido constitucionalmente aos cidadãos,* embora este direito seja bem aceito pela polícia e pelos órgãos da administração do Estado se esses atos forem uma iniciativa do partido no poder ou de grupos a ele afeitos. É ainda prática corrente a detenção arbitrária de pessoas com ideias que se choquem com os interesses de membros do partido no poder. A polícia angolana tem a missão de manter a ordem, a segurança pública e garantir os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e cidadãs consagrados na Constituição, mas contrariamente a isso, este órgão do Estado continua, em muitos casos, a intimidar, usar força e armas de fogo contra cidadãos, efetuar detenções e prisões sem cumprir os procedimentos legais, praticar a tortura e tratamentos cruéis e degradantes contra os cidadãos que se manifestam de forma pacífica e sem armas. Estas práticas à margem da lei têm sido geralmente acompanhadas de detenções e de criminalização de jornalistas que fazem a cobertura.
Um exemplo recente dessa contradição entre legislação e prática teve início em 3 de setembro de 2011 (CLUB-K, 2011), quando um grupo de jovens saiu às ruas para se manifestar pacificamente contra a forma antidemocrática como tem sido conduzido o destino do país. Agentes da Polícia Nacional utilizaram a força de forma desproporcional e detiveram arbitrariamente 18 manifestantes. No dia 12 daquele mês, menos de dez dias depois de sua detenção, os jovens foram julgados sumariamente. Cinco dos organizadores da manifestação foram condenados a três meses de prisão e ao pagamento de fiança de US$ 1.400 pelos supostos crimes de desobediência, resistência e “ofensas corporais”. Além das violações de direitos envolvidas na repressão a esse protesto e no julgamento sumário dos jovens, as autoridades voltaram a coibir o direito de reunião e manifestação duas semanas depois, quando outros 80 jovens foram às ruas pedir a libertação dos condenados. Na ocasião, segundo os manifestantes, agentes dos serviços de inteligência do Estado se infiltraram no local da concentração, junto ao cemitério de Santa Ana, em Luanda. A marcha foi bloqueada por agentes da Polícia Nacional 20 minutos depois, a cerca de 800 metros do local de partida, nos arredores do mercado dos congoleses na mesma cidade, ali permanecendo por mais de três horas.
Outro exemplo ocorreu em 2013. Manifestantes organizaram um protesto no dia 19 de setembro contra o que chamaram, segundo reportagens, de regime autoritário do presidente José Eduardo dos Santos. Na ocasião, sete pessoas foram presas, e três jornalistas que faziam a cobertura da sua libertação foram agredidos e detidos pela polícia.
Policiais da Unidade de Intervenção Rápida angolana cercaram, no lado de fora de um tribunal em Luanda, os jornalistas Rafael Marques de Morais, editor do site de notícias independente Maka Angola, Coke Mukuta, freelance da emissora Voz da América, financiada pelo governo norte-americano, e Alexandre Neto. Segundo Rafael Marques de Morais (Morais, 2013), os policiais ordenaram que os jornalistas se deitassem no chão e, em seguida, gritaram ameaças enquanto os chutavam repetidamente. Marques de Morais disse que foi atingido na cabeça com um objeto não identificado. Alexandre Neto disse que os policiais os colocaram em um carro e os levaram para a esquadra de polícia, de onde foram libertados com um pedido de desculpas após cinco horas de detenção. Rafael Marques disse que a polícia devolveu o equipamento que havia sido confiscado, exceto a sua câmera, que valia cerca de US$ 2.000, por ter sido destruída. Apesar da agressão a que foram vítimas, os jornalistas não relataram ter sofrido lesões físicas graves. A brutalidade da polícia angolana teve a clara intenção de intimidá-los e impedir que fossem reportadas as ações levadas a cabo durante as manifestações.
Enquanto Angola ratificava em Nova York a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e o respectivo Protocolo Facultativo, no dia 24 de Setembro de 2013 a polícia torturava cidadãos angolanos que exerciam o seu direito de reunião e manifestação pacíficas consagrado na Constituição da República de Angola.
A eficácia dos direitos humanos em produzir mudanças sociais está intimamente relacionada à eficácia do sistema judiciário em efetivar esses direitos. Da mesma forma que não desistimos de recorrer à justiça, embora ela nem sempre seja justa, para a resolução dos conflitos sociais, enquanto defensora de direitos humanos em Angola, estou convicta de que a abordagem dos direitos humanos ainda constitui o melhor instrumento que temos para as mudanças sociais que se impõem, nomeadamente: maior liberdade de expressão, acesso à justiça e a direitos, maior liberdade de reunião e manifestação e muitos outros direitos garantidos constitucionalmente e em tratados internacionais dos quais Angola faz parte.
Em outras palavras, a linguagem dos direitos humanos é, sim, uma linguagem eficaz para gerar mudanças sociais, desde que saibamos utilizá-la em função de cada contexto. Para a sua materialização, há a necessidade de grandes movimentos sociais capacitados, por um lado, a fazer pedagogia no sentido da habituação do exercício dos direitos e, por outro, exercer pressão visando provocar mudanças comportamentais nos poderes instituídos, que normalmente são os grandes protagonistas na violação dos direitos humanos por não fazer valer a força da lei e do direito.
Uma das vias que organizações da sociedade civil angolana têm utilizado para fazer pressão por maior respeito aos direitos humanos por parte do governo é a internacional, por meio de relatórios periódicos ao mecanismo de Revisão Periódica da ONU e Comissão Africana e de denuncias à comunidade internacional.
Angola é atualmente uma das grandes potências econômicas da África e tem sido muitas vezes citada como exemplo para a paz e reconciliação nacional em outros países, questões que têm sido usadas pelo governo como elemento impulsionador de sua imagem no exterior. Como no contexto dos direitos humanos ainda há muito por fazer, tendo em vista as violações sistemáticas dentro do país, diversas organizações angolanas de defesa desses direitos intensificaram as suas ações de promoção e defesa dos direitos humanos além das fronteiras. As organizações mais eficazes neste trabalho não têm mais de quinze anos de existência, tendo surgido no período de guerra. A abordagem dos direitos humanos no contexto de guerra é menos eficaz, porém, não é a mesma em tempos de paz. Ainda assim, temos notado, embora timidamente, que alguma coisa tende a mudar no domínio dos direitos humanos uma vez que os cidadãos vêm ganhando maior consciência do quão importante é serem eles mesmos os grandes protagonistas na promoção e defesa dos seus direitos.
A estratégia das organizações da sociedade civil tem sido a de aparecer nos fóruns regionais e internacionais denunciando os casos de violação sistemática dos direitos humanos. Angola, por exemplo, é Estado Parte da Comissão Africana dos Direitos Humanos, desde a sua criação em 12 de Junho de 1989, mas só começou a enviar relatórios sobre boas práticas em matéria de direitos humanos a partir de 2007, data em que as organizações angolanas de defesa dos direitos humanos se tornaram membros observadores junto à Comissão e passaram a submeter relatórios sobre a situação dos direitos humanos no país. Isso serviu de elemento de pressão para que o governo também enviasse os seus relatórios sobre boas práticas em matéria de direitos humanos.
Hoje em Angola temos uma secretaria do Estado para os direitos humanos, o Ministério da Justiça passou a denominar-se Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, e foi instituída a provedoria da Justiça. Embora estas instituições ainda sejam bastante incipientes na promoção e defesa dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, a verdade é que elas surgiram graças à linguagem dos direitos humanos, que foi usada pela sociedade civil como ferramenta para gerar mudanças sociais por meio do seu trabalho de educação cívica, advocacia e lobby junto aos vários mecanismos internos e externos de direitos humanos, assim como o estabelecimento de parcerias com o governo para dar resposta aos vários casos de violação e de intolerância política que foram surgindo no país.
Com a assinatura do Memorando de Entendimento do Luena – Moxico em 2002, entre o governo e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), todos os angolanos queriam deixar para trás as atrocidades da guerra. No entanto, havia certa resistência por parte do partido no poder em concentrar-se na consolidação da democracia e no respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos. Em vez disso, preferia relatar os males da guerra e usava isso como justificativa para a não efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, assim como os direitos civis e políticos dos cidadãos. Em dada altura, o Presidente da República chegou mesmo a dizer em um de seus discursos que “os direitos humanos não enchem a barriga”, mas a sociedade civil entendia que era o momento de deixar as marcas da guerra para trás e seguir em frente rumo ao desenvolvimento e à democratização do país com a participação de todos.
Todo o trabalho levado a cabo pela sociedade civil, pelas igrejas e pela comunidade internacional levou o governo de Angola a repensar as suas posições, e alguns dos ganhos foram a candidatura para membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU), o convite aos vários relatores da ONU para visitar Angola para constatar a situação dos direitos humanos no país, assim como a revisão periódica à qual Angola está sujeita no âmbito do Conselho da ONU e da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, confirmando uma abertura para o cumprimento das responsabilidades assumidas com os mecanismos de direitos humanos regionais e internacionais. Por isso mesmo, não há dúvidas de que a linguagem dos direitos humanos é, sim, uma linguagem eficaz para gerar mudanças sociais. Estão criadas as condições materiais para o aprofundamento deste valioso “instrumento”; resta apenas aprofundarmos as condições subjetivas ou a perspicácia dos atores e movimentos sociais para que estes sejam verdadeiros agentes impulsionadores de mudanças sociais e de influência junto aos políticos e poderes legalmente instituídos, com vistas ao alcance do bem comum.
Bibliografia e outras fontes
CLUB-K. 2011. Repressão policial contra estudantes Universitários. Club-K.Net, 03 set. Disponível em: http://club-k.net/index.php?option=com_content&view=article&id=8673:cronologia-da-manifestacao-de-3-de-setembro-video&catid=11:foco-do-dia&Itemid=130. Último acesso em: 1 ago. 2014.
Morais, Rafael Marques de. 2013. Jornalistas Apresentam Queixa Contra Polícia. Maka Angola, 30 set. Disponível em: http://www.makaangola.org/index.php?option=com_content&view=article&id=9754:english-jornalistas-apresentam-queixa-contra-policia&catid=2:uncategorised&lang=pt. Último acesso em: 1 ago. 2014.