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O Sínodo da Amazônia11. Este texto é uma versão editada especialmente para a Revista Sur a partir de original gentilmente cedido pelo autor.

Marcelo Barros

A revelação divina que chega com atraso

Sutherland

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RESUMO

É uma boa notícia que o Sínodo dos bispos católicos de todo o mundo, convocado pelo Papa Francisco para outubro em Roma tenha sido preparado por ampla consulta a comunidades da Amazônia e a organizações civis que trabalham com elas. A novidade desse Sínodo é o apelo para que toda a Igreja no lugar de se colocar como mestra, se ponha como ouvinte e escute a voz da Amazônia. A partir disso, ela descubra como enfrentar os desafios e perspectivas para a sua missão, em uma visão nova e oposta à colonização da qual ela foi cúmplice.

Palavras-Chave

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Sem dúvida, para os povos amazônicos, é uma boa notícia que o Papa Francisco tenha convocado um sínodo dos bispos católico-romanos de todo o mundo para refletir sobre os apelos que a Amazônia faz à Igreja Universal (compreendida como o conjunto de Igrejas cristãs do mundo inteiro). Como afirmou Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário no Brasil (CIMI), “O Sínodo sobre a Amazônia praticamente começou em janeiro de 2018, em Puerto Maldonado (Peru), no encontro do Papa com os povos amazônidas”.22. Roque Paloschi, “O Sínodo da Amazônia: Grito à Consciência, Memória da Missão, Opção pela Vida,” Vida Pastoral ano 60, no. 327 (maio-junho 2019): 17.

De fato, o Sínodo dos Bispos é uma instituição que retoma antigo costume das Igrejas e sinaliza a vocação que a Igreja tem de ser sinal e instrumento de unidade para a toda a humanidade. (O termo sínodo vem do grego e significa “caminhar juntos”). Na Igreja Católica, foi depois do Concílio Vaticano II que o Papa Paulo VI, em 1967, recriou e atualizou a instituição do Sínodo, encontro que reúne bispos de todo o mundo para, de tempos em tempos, refletir com o Papa sobre assuntos que dizem respeito à Igreja Universal ou a problemas humanos e pastorais de determinada região (cânon 342 do Código de Direito Canônico). É o caso deste Sínodo Especial para a Amazônia, convocado pelo Papa para outubro de 2019, conforme o cânon 345 do mesmo código. Esse sínodo tem como tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”.

No dia 17 de junho de 2019, tornou-se público o documento que servirá de base para o diálogo e os trabalhos do Sínodo (Instrumentum laboris). Elaborado na metodologia latino-americana da Teologia da Libertação, o documento tem três partes, correspondentes ao Ver, Discernir (julgar) e Agir. Na primeira, o documento retrata a realidade do território e dos seus povos a partir dos relatos e testemunhos das comunidades. Por isso, a proposta é escutar a voz da Amazônia à luz da fé. Na segunda, busca-se responder ao clamor da terra e dos povos por uma Ecologia Integral. Finalmente, na terceira parte, Igreja profética na Amazônia, desafios e esperanças, tenta-se discernir caminhos novos para a missão profética das Igrejas na Amazônia.

É consolador saber que esse documento e os assuntos que serão tratados no Sínodo foram formulados a partir de consulta que envolveu as comunidades amazônicas, grupos (católicos ou não) e acolheu posicionamentos de estudiosos/as e pessoas que acompanham a realidade amazônica nos diversos países que cobrem a região.

Infelizmente, ainda há − e não são poucos − bispos, padres e grupos católicos que não reconhecem a Ecologia Integral, a situação social dos povos e a política como assuntos que dizem diretamente respeito à missão da Igreja. Parecem esquecer ou ignorar que Jesus definiu a sua missão como sendo a de curar os doentes, libertar os prisioneiros e anunciar aos empobrecidos a boa notícia da libertação.

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Desafios antigos

Há mais de 50 anos, o Papa João XXIII e o Concílio Vaticano II nos ensinaram a assumir “os sinais dos tempos” como elemento a partir do qual aprendemos a discernir a palavra de Deus e o que Ele pede de nós. Na América Latina, olhar a realidade social e política para descobrir nela os desafios para a missão foi o próprio tema geral da 2ª Conferência Geral do Episcopado Católico em Medellín (1968). A partir daí, tornou-se a proposta teológica e espiritual das comunidades cristãs, inseridas no meio dos pobres. Nas últimas décadas, a Teologia da Libertação tem tomado formas diversas e novas, assumindo os caminhos próprios das teologias afro, indígenas, feministas, gays e outras reflexões autônomas que se situam na mesma linha libertadora. No entanto, para o magistério romano e os bispos reunidos em um sínodo em Roma, é a primeira vez que, depois do Concílio Vaticano II (1962-1965) e, para a América Latina, depois de Medellín (1968), a realidade social e política é assumida realmente como “categoria teológica”.

Por isso, podemos afirmar que essa escuta da realidade e o reconhecimento do lugar teológico das diversas tradições espirituais dos povos originários são como uma revelação divina que chegou atrasada. Embora já sejam tão antigas, só agora a hierarquia católica está verdadeiramente reconhecendo que ali há uma revelação divina e está disposta a acolher.

Na Exortação Apostólica Episcopalis Communio (2018), o Papa Francisco já havia insistido que “o Sínodo deve ser instrumento privilegiado de escuta do povo de Deus” (EC 6). O que certamente é a maior novidade dessa preparação para o Sínodo tem sido realmente levar a sério até o último ponto essa postura. Embora sempre os sínodos sejam antecedidos de questionários para os bispos e dioceses, nenhum sínodo anterior a esse cuidou tanto de escutar a voz da realidade através dos testemunhos das bases e dos/as missionários/as e estudiosos/as que ali trabalham. Esse documento de trabalho preparatório fala em Igreja como ouvinte e destaca a importância do processo de escuta sinodal que já deixou frutos na região (articulação dos diversos países a serviço da região amazônica, atenção para os desastres ecológicos e a ação nefasta das mineradoras e do desflorestamento) e o documento deixa claro que esse processo sinodal de escuta deve continuar mesmo depois do evento do Sínodo em Roma (n. 3).

Todos nós sabemos das reações contrárias que o Papa Francisco enfrenta no Vaticano. Sabemos que até mesmo o fato de dedicar uma sessão do Sínodo à Amazônia está sendo contestado por alguns, inclusive cardeais.33. Sandro Magister, “Herético y Apóstata. El Cardenal Brandmuller Excomulga al Sínodo para la Amazonia.” Revista IHU, 27 de junho de 2019, acesso em 12 de agosto de 2019, http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590382-heretico-y-apostata-el-cardenal-brandmueller-excomulga-al-sinodo-para-la-amazonia. Além disso, o Sínodo é órgão consultivo, sem nenhum poder deliberativo e é coordenado por cardeais e bispos, dos quais a maioria nem conhece bem a região. Por isso, para muitos irmãos e irmãs missionários e inseridos nas bases, esse processo sinodal de escuta que o Sínodo já suscitou e agora foi oficializado no documento de trabalho garante que o Sínodo vá além de seus próprios limites e se torne, como alguns chamaram, uma amazonização da Igreja ao se inserir na realidade do território e dos povos e uma aliança da humanidade pela Vida.

Nesse sentido, parece que o processo sinodal já conseguiu, através do diálogo, formar em uma parte da Igreja um consenso básico que consiste no apoio às comunidades indígenas, ribeirinhas e diversos segmentos amazônicos, à luta pacífica, mas clara contra as madeireiras e mineradoras e grandes empresas pesqueiras, assim como a busca de uma missão eclesial baseada na escuta, no diálogo e no respeito às culturas e espiritualidades dos diversos povos e comunidades. O documento de trabalho do Sínodo chega a reconhecer a Amazônia como “repleta de vida e sabedoria” (n. 5).

03

Nas entrelinhas, uma nova “missão”

Parte dos bispos e do clero mesmo na região amazônica rejeita e se mantém distante de todo esse processo como se o ignorasse. Mesmo assim, em cidades e arquidioceses nas quais o arcebispo e parte do clero não participam de nada que diga respeito a esse Sínodo e à consulta, o processo está ocorrendo nas bases e tem sido fecundo.

Evidentemente, a construção do consenso e mais ainda a preparação do Documento Final a ser entregue ao Papa no final do Sínodo exigem que “caminhemos juntos”. Para isso, é normal que se ceda um pouco aqui e ali para concentrar forças nos pontos que parecem mais essenciais.

Certamente uma vitória desse documento e do processo que ele expressa é uma leitura mais sistêmica da realidade e a denúncia de um sistema que ameaça a vida na Amazônia. Também é uma conquista ver em um documento emanado do Vaticano o reconhecimento claro de que até hoje a Amazônia enfrenta a invasão de “novas potências colonizadoras” (n. 7), a confissão de que “a Igreja foi (ou tem sido) cúmplice dos colonizadores, sufocando a voz profética do Evangelho” (n. 38). Antes, Papas como João Paulo II pediam perdão pelos erros de “alguns filhos da Igreja”, mas nunca reconheciam que a Igreja, em si mesma e como Igreja, tinha pecado.

Por trás desse documento há uma Missiologia diferente daquela que, embora reconheça a missão da Igreja em relação à justiça e a paz, sublinha a missão como pregação do Evangelho aos descrentes. Nesse documento de trabalho, embora nem sempre a linguagem consiga ser totalmente clara, consegue-se expressar que a missão só pode ser vivida em “diálogo com as sabedorias ancestrais dos povos amazônicos” (n. 29) e “deve ser um diálogo a serviço da vida e do futuro do planeta” (n. 35). Portanto, de modo algum é diálogo como mera estratégia pedagógica para assim fundamentar melhor a doutrinação ou a conversão religiosa de fieis.

É outra concepção de missão. Mesmo quando a linguagem parece visar à Igreja, supõe uma Igreja em saída, cuja missão se vê como sendo a Ecologia integral e a defesa da vida no planeta.

É também importante perceber que o documento valoriza as espiritualidades autóctones dos povos originários e a religião popular das comunidades mesmo católicas da Amazônia, não apenas por questão de respeito aos direitos dos povos de terem sua cultura religiosa, não apenas por um diálogo tático e pedagógico, mas porque espiritualmente há um reconhecimento de que essas espiritualidades são “caminhos que procuram desvendar o mistério insondável de Deus” (n. 39), são expressões do Espírito Divino presente e atuante nos povos (n. 28) e assim como o território e a realidade social e política, também as espiritualidades tradicionais dos povos são para nós lugar teológico a partir do qual os povos podem se reerguer, recuperam sua saúde (n. 87) e podem ser elementos de transformação da realidade e da missão (n. 93-94).

04

Algumas conclusões provisórias

Em um mundo no qual se celebram fóruns sociais, caminhadas e manifestações de multidões nas praças, os ritos de Igreja precisam voltar a ser expressivos e proféticos. Na década de 1990 em São Félix do Araguaia, um grupo de teatro fez uma peça cujo título era muito sugestivo: Segure o tacho que o fogo vem de baixo. É preciso ter claro isso: não será um Sínodo em Roma que poderá transformar a realidade da Amazônia.

Esperamos profundamente que o Sínodo para a Amazônia aceite a proposta de descentralizar as estruturas de nossa Igreja e não continue a pensá-la a partir do esquema clássico de dioceses, paróquias e capelas do interior. É preciso acreditar em uma Igreja de comunhão e eliminar a divisão entre clero e leigo. É claro que isso pede uma transformação profunda de espírito e de compreensão da missão, mas seja como for, podemos propor. Trata-se de um processo.

Agradecemos a Deus termos um Papa, pastores e agentes de pastoral que “seguram o tacho”, isso é, dão força e apoiam a caminhada das bases, mas o decisivo será sempre a realidade local e a inserção das Igrejas locais.

Isso que aqui está sendo proposto é o primeiro passo de um processo que se realizará à medida que ocorrer o diálogo e a inserção com as culturas e a alma dos povos amazônicos. Esse é um processo lento e dialético no qual, assim como Deus, assim como cada um/uma de nós, também as nossas celebrações se revelam inseridas e mostram com clareza de que lado estão. Aí sim se realizará de novo entre nós o que canta o salmo: “Da boca dos pequeninos e mesmo dos recém-nascidos, tu procuras um louvor capaz de reduzir ao silêncio os teus adversários e inimigos” (Salmo 8, 2).

Marcelo Barros - Brasil

Marcelo Barros é monge beneditino, teólogo, biblista e escritor. Assessora comunidades eclesiais de base e movimentos sociais. É membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT) e autor de 60 livros publicados no Brasil, na Itália, Bélgica e outros países.

Recebido em maio de 2019.

Original em português.