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A religião como política?

Sandra Mazo

Laicidade, gênero e o processo de paz na Colômbia

Craig Bellamy

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RESUMO

A abordagem de gênero foi um aspecto importante nos diálogos entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo (FARC-EP) e se refletiu no Acordo de Paz. No entanto, foi uma questão que os fundamentalistas religiosos e algumas Igrejas, especialmente as cristãs evangélicas, não aceitaram. Disfarçando a questão atrás da chamada “ideologia de gênero”, empreenderam uma “cruzada” contra a igualdade de gênero nos acordos de paz, evidenciada na campanha nefasta e mentirosa do NÃO aos acordos no plebiscito de 2016.
Neste sentido, este artigo provoca uma reflexão sobre a interferência que as Igrejas estão fazendo no político, na política e nas decisões do Estado, pois nada mais perigoso para um Estado Social e Democrático de Direito, multiétnico e multicultural, que a confusão entre política e religião e a violação da laicidade do Estado.

Palavras-Chave

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Para a organização laica Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) – Colômbia, criada no ano de 2000 por mulheres católicas feministas comprometidas com a justiça social e a mudança de paradigmas culturais e religiosos vigentes na sociedade, refletir sobre os direitos humanos das mulheres em uma sociedade democrática e em um Estado que se reconhece como laico é um exercício fundamental que faz parte da nossa missão. Nos últimos anos, o tema ocupou um lugar de interesse público na agenda nacional e, em especial, no marco da construção da paz, ao converter-se em uma questão decisiva da campanha e dos debates suscitados antes e depois do plebiscito de 2016. No plebiscito para a paz, foi submetida à consideração popular a seguinte pergunta: “Você apoia o Acordo Final para a Terminação do Conflito e a Construção de uma Paz Estável e Duradoura?”. Nessa consulta, terminou ganhando o NÃO, embora por margem estreita, mas para esse resultado foram determinantes as mentiras construídas em torno de uma suposta “ideologia de gênero”, de que o texto do acordo final era acusado e em que as Igrejas e líderes religiosos se empenharam como políticos em disputa renhida.11. Ver, por exemplo: Camilo Gonzalez Posso, “Los Problemas del Si en el Plebiscito.” Indepaz, 19 de outubro de 2016, acesso em 31 de julho de 2019, www.indepaz.org.co/los-problemas-del-plebiscito/; “‘Ideología de Género’: ¿Un Motín Político en las Elecciones de Latinoamérica?,” El Espectador, 13 de dezembro de 2018, acesso em 31 de julho de 2019, https://www.elespectador.com/noticias/nacional/ideologia-de-genero-un-motin-politico-en-las-elecciones-de-latinoamerica-articulo-828914; Olga L. González, “La Otra Subversión: La Emergencia del ‘Género’ en el Proceso de Paz en Colombia,” TraHs Números especiales n° 1 (2017), acesso em 31 de julho de 2019, https://www.unilim.fr/trahs/index.php?id=415; e “Obispo Desmiente ‘Ideología de Género’ en Acuerdos de Paz,” teleSUR, 17 de outubro de 2016, acesso em 31 de julho de 2019, https://www.telesurtv.net/news/Obispo-desmiente-ideologia-de-genero-en-acuerdos-de-paz-en-Colombia-20161017-0039.html.

Os debates gerados no contexto pós-plebiscito da Colômbia sem dúvida nos impõem desafios para continuar fortalecendo um posicionamento justo e coletivo em defesa da democracia, da construção de uma paz duradoura e estável, mas também da edificação de uma sociedade em que as mulheres sejam reconhecidas como sujeitos políticos.

Foram muitos anos expressando nossa profunda esperança de que esse contexto nos permita conseguir um Acordo de Paz que sirva para acabar com a barbárie de tantos anos e que abra caminho para uma democracia econômica, política e social, sem que isso implique o desconhecimento dos direitos das mulheres e das pessoas LGBTI, e muito menos que, nesse contexto de construção de paz, tais direitos sejam usados como desculpa para fazer retroceder ou demonizar o que com tanto esforço e lutas conseguimos alcançar como mulheres e cidadãs.

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O processo de paz e as tensões com setores religiosos e conservadores

O processo de diálogos entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP) e o Governo Nacional que se concluiu com a assinatura do Acordo Final,22. “Texto Completo del Acuerdo Final para la Terminación del Conflicto y la Construcción de una Paz Estable y Duradera,” OACP, 2017, acesso em 31 de julho de 2019, http://www.altocomisionadoparalapaz.gov.co/procesos-y-conversaciones/Paginas/Texto-completo-del-Acuerdo-Final-para-la-Terminacion-del-conflicto.aspx. o resultado do plebiscito e posteriormente a consulta anticorrupção,33. A Consulta Popular é um mecanismo constitucional de participação democrática, por meio do qual se submete ao povo um assunto de interesse nacional. Nesse caso, em 26 de agosto de 2018, submeteram-se ao escrutínio dos cidadãos sete assuntos relacionados com a luta anticorrupção, com o objetivo de obrigar o Legislativo a emitir leis para endurecer as sanções e as condições em que se deviam cumprir as penas, proibindo os sub-rogados penais e adequando os procedimentos para recuperar os recursos públicos objeto de latrocínio. A consulta obteve 11.645.000 votos e, portanto, não foi alcançado o umbral de 33% (faltaram 450 votos para que fosse vinculante) do censo eleitoral. Mas diante desse decidido apoio popular, todos os partidos políticos e até o próprio governo se apropriaram do tema e prometeram fazê-lo tramitar no Congresso. Um ano depois, nenhuma iniciativa nessa área foi aprovada e, ao contrário, houve uma cerrada oposição do partido do governo e do próprio Executivo, o qual, em declarações públicas, diz apoiá-las, mas nos fatos, as nega. entre outros acontecimentos da vida política e jurídica colombiana, suscitaram um sem fim de reações, evidenciando uma forte polarização e incertezas nas/os colombianas/os.

No marco das fortes tensões geradas a partir desse processo, como Católicas pelo Direito de Decidir, centraremos esta análise a partir dos acontecimentos pré e pós-plebiscito de 2016, sobretudo no papel desempenhado pelas Igrejas, em especial a Católica e as cristãs evangélicas, como atores políticos e sociais. Estas Igrejas influíram e interviram na opinião dos paroquianos na hora de tomar a decisão de votar, o que levou, embora com maioria precária, à vitória do NÃO. O plebiscito exigia que pelo menos um terço dos eleitores habilitados participassem das votações (12 milhões), o que de fato ocorreu. Optaram pelo NÃO 50,2%, enquanto 49,7% votaram SIM, em uma diferença de pouco mais de cinquenta mil votos. Mesmo com essa pequena diferença, o resultado pareceu mostrar que a Colômbia optou pela guerra. Apesar de a realidade ser outra, a pós-verdade cumpriu sua missão.44. María Fernanda González, “La «Posverdad» en el Plebiscito por la Paz en Colombia,” Nueva Sociedad no. 269 (mayo-junio de 2017), visitado el 31 de julio de 2019, https://nuso.org/articulo/la-posverdad-en-el-plebiscito-por-la-paz-en-colombia/.

Diante desse resultado, tornou-se questionável o papel que a hierarquia da Igreja Católica assumiu na campanha do Plebiscito pela Paz.55. Hermann Rodríguez, “La Iglesia Católica Frente al Plebiscito.” Jesuitas Colombia, 9 de setembro de 2016, acesso em 31 de julho de 2019, https://jesuitas.co/la-iglesia-catolica-frente-al-plebiscito-20848; e “‘Iglesia no Induce por el Sí o No en el Plebiscito’: Conferencia Episcopal,” El País, 18 de agosto de 2016, acesso em 31 de julho de 2019, https://www.elpais.com.co/proceso-de-paz/iglesia-no-induce-por-el-si-o-no-en-el-plebiscito-conferencia-episcopal.html. Entre os princípios da doutrina social da Igreja Católica está o de buscar a paz e alcançar uma ordem justa da sociedade, o que inclui a promoção de políticas sociais que promovam a igualdade, a justiça social e o respeito às pessoas. Contrariando essa doutrina, ficou evidente que a hierarquia da Igreja Católica, a partir das tensões suscitadas pela posição política que liderava o NÃO, assumiu uma posição de “neutralidade”, afastando-se de seu compromisso com a construção da paz na Colômbia, e decidiu colocar-se “à margem”, com uma suposta exortação aos paroquianos para que votassem fazendo uso de sua liberdade de consciência. Diante disso, cabe perguntar: por que a hierarquia da Igreja Católica tomou essa decisão em um momento tão decisivo para o país? E afinal, essa posição ajudou a quem?

Causa indignação o modo como muitas igrejas, especialmente as cristãs, e personagens caracterizados por liderar agendas contra os direitos das mulheres e a comunidade LGBTI empreenderam uma cruzada cheia de mentiras, despropósitos e calúnias para orientar a opinião de crentes e seguidores, em uma mistura de homofobia, misoginia e discriminação contra o que para eles é a demonizada “ideologia de gênero”66. Sonia Corrêa, “A ‘Política do Gênero’: Um Comentário Genealógico,” Cadernos Pagu nº. 53 (2018), acesso em 31 de julho de 2019, http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332018000200401&script=sci_arttext. no Acordo de Paz. Na realidade, trata-se, como bem diz o Acordo Final, de um enfoque de direitos humanos que se desenvolve de maneira transversal77. No Acordo se reconhece que “os direitos humanos são inerentes a todos os seres humanos por igual, o que significa que lhes pertencem pelo fato de sê-lo e em consequência seu reconhecimento não é uma concessão, são universais, indivisíveis e interdependentes e devem ser considerados de maneira justa e equitativa”. Documento final do Acordo, p. 193. e que tem por finalidade “contribuir para a proteção e garantia do gozo efetivo dos direitos de todas e todos”. Em essência, o que o acordo busca é eliminar as condições de iniquidade e desigualdade a que foram submetidas as mulheres e grupos considerados como minorias durante a história do país. É por isso que contempla em cada um dos pontos ações cujo objetivo é gerar condições de igualdade real.

Alguns atores religiosos fundamentalistas, mediante argumentos falsos e imprecisos, levaram seus seguidores a uma total confusão frente às razões e aos conteúdos reais do texto do Acordo. Esse tipo de manipulação potencializou a emergência de uma concepção conservadora de setores sociais que de alguma maneira parecia manter-se guardada.

Não obstante, dias depois da derrota plebiscitária, registrou-se um despertar coletivo em defesa do Acordo que incluiu mobilizações imensas e que deu alento ao governo para que tomasse o caminho do referendo do Acordo pela via legislativa.

Muitas pessoas que votaram pelo NÃO no plebiscito com o tempo reconheceram que seu voto foi influenciado por pastores, líderes religiosos e guias espirituais que utilizaram argumentos de moralidade sexual e família, quando a única coisa que se buscava no Acordo era terminar com um conflito de mais de 50 anos que assolava milhões de vítimas em nosso país.88. “Las Polémicas Revelaciones de Promotor del No sobre Estrategia en el Plebiscito,” El País, 6 de outubro de 2016, acesso em 31 de julho de 2019, https://www.elpais.com.co/proceso-de-paz/las-polemicas-revelaciones-de-promotor-del-no-sobre-estrategia-en-el-plebiscito.html; e Juan Manuel López, “La Política en Colombia es la Capacidad de Manipular Emocionalmente a las Masas.” Las 2 Orillas, 12 de setembro de 2018, acesso em 31 de julho de 2019, https://www.las2orillas.co/la-politica-en-colombia-es-la-capacidad-de-manipular-emocionalmente-las-masas/.

A CDD-Colômbia preocupa-se com a ingerência dessas Igrejas no político, na política e nas decisões do Estado, pois nada é mais perigoso para um Estado Social e Democrático de Direito, pluriétnico e multicultural do que essa confusão provocada entre política e religião. É incoerente e inconsequente que as Igrejas usem seu poder espiritual para mentir ao povo e para impor o ódio e a discriminação contra setores da população historicamente excluídos e fortemente vitimizados pelos atos de violência. Não há justificação para apresentar mentiras como verdades e interesses pessoais como valores morais universais.

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Constituição colombiana e laicidade

Diante dessa ingerência da religião no Estado, na política e nas decisões cidadãs é que ganha hoje muito mais vigência e sentido a defesa do Estado laico na Colômbia.

A Constituição da Colômbia, em seu artigo 19, garante a liberdade de cultos e a igualdade entre as diferentes confissões religiosas e Igrejas. Embora em seu preâmbulo invoque-se a proteção de Deus, essa referência tem um caráter geral e não se dirige a nenhuma Igreja em particular. Em nossa compreensão, refere-se a uma divindade abstrata ou geral, que não é fonte suprema de soberania ou de autoridade e não define nenhuma primazia entre os diferentes cultos.

A Constituição estabelece o caráter pluralista do Estado Social de Direito colombiano, do qual o pluralismo religioso é um dos componentes mais importantes. Igualmente, a Carta exclui qualquer forma de confessionalismo e consagra a plena liberdade religiosa e o tratamento igualitário de todas as confissões religiosas. Isso significa que no ordenamento constitucional colombiano há uma separação entre o Estado e as igrejas porque o Estado é laico. Com efeito, essa estrita neutralidade do Estado em matéria religiosa é a única forma de assegurar que os poderes públicos garantam o pluralismo e a coexistência igualitária e a autonomia das distintas confissões religiosas.

Desse modo, a defesa da laicidade é indispensável se queremos que nossa sociedade avance no reconhecimento e pleno gozo dos direitos, na qual as decisões das maiorias não impliquem a vulneração dos direitos das minorias, tendo como princípios iluminadores a diversidade, o multiculturalismo e a plurietnicidade. Esses princípios são os pilares do Estado Social e Democrático de Direito, os quais são postos em risco quando um credo ou credos particulares buscam impor-se ao conjunto da sociedade.

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Da separação Igreja – Estado à autonomia dos religiosos na política

Considerando a presença cultural das religiões na vida pessoal, política, social e econômica, o Estado laico se converte em um tema central do debate político atual. A presença da religião no espaço público é, assim, uma realidade que não podemos ocultar.Ao mesmo tempo em que é necessário garantir a convivência entre as diferentes heranças culturais, simbólicas, religiosas, filosóficas, éticas e morais em sociedades plurais, diversificadas e democráticas. Em consequência, a laicidade é um “processo em continuo movimento, que enfrenta cada dia novos desafios e tem de encontrar respostas adequadas para todos e todas, tendo em vista o interesse público”.99. Roberto J. Blancarte, El Estado Laico (coleção Para Entender) (Cidade do México: Nostra Ediciones, 2008).

A laicidade é, indubitavelmente, um conceito em permanente processo de significação que nos põe diante de desafios relacionados com liberdades e direitos. Supõe a autonomia do político frente ao religioso, a igualdade dos indivíduos e a não discriminação. Enquanto o Estado laico reclama autonomia frente às confissões religiosas, a laicidade demanda a total autonomia da política frente ao religioso. Em outras palavras, a laicidade supõe um importante avanço frente ao Estado laico, pois sua proposta é evitar toda ingerência do religioso na política, ao passo que o Estado laico só aponta para a separação Estado/igrejas, sem se preocupar com ingerência real que as confissões religiosas tenham na política.

A partir dessa visão, podemos então afirmar que o Estado laico é a expressão política da laicidade, que, como instrumento jurídico-político, está a serviço das liberdades em uma sociedade plural e diversa. Trata-se de um Estado que não está submetida a uma doutrina religiosa ou filosófica particular, mas que serve ao interesse público, que garante o bem comum e respeita e põe em prática integralmente os direitos humanos.

É importante também esclarecer que, quando falamos do Estado laico, não falamos de indiferença religiosa, nem de oposição ao religioso e às espiritualidades, nem de ausência de crenças religiosas. A laicidade tampouco se constrói em meio à negação das religiões, não é uma luta contra uma Igreja ou as Igrejas, mas uma oposição às ideias teocráticas de política (governo em nome de Deus), ao autoritarismo dos dogmas que tentam impor-se como verdades gerais para todos e todas.

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O Estado laico: entre a necessidade e a utopia

Diante do preocupante papel que algumas Igrejas e setores conservadores vêm desempenhando na esfera pública, é de extraordinária importância garantir Estados laicos em nossa região.

É paradoxal que aqueles que atacam o laicismo e o Estado laico com base em suas convicções religiosas particulares acabem por destruir as condições jurídicas e políticas que lhes possibilitaram precisamente o exercício de sua crença religiosa. O ativismo religioso em matéria política representa, em consequência, um verdadeiro risco para a democracia, para o Estado laico e para as liberdades fundamentais, inclusive para as liberdades de que gozam as mesmas igrejas, seus paroquianos e seus hierarcas. Propõe-se o regresso aos fundamentalismos e às exclusões mais odiosas e isso não passa de um retorno ao obscurantismo.

No caso específico colombiano, estes setores conservadores, valendo-se de argumentos equivocados, influíram na opinião de muitas pessoas crentes, as quais terminaram apoiando com seu voto o NÃO ao Acordo Final entre o governo da Colômbia e as FARC-EP.

Do mesmo modo, suscitam enorme preocupação as reações dos setores fundamentalistas e conservadores ao tema do gênero no Acordo de Paz:

  1. A categoria de análise social “enfoque de gênero” foi equiparada à expressão “ideologia de gênero”, que, além de ser usada com caráter pejorativo, tem sido esgrimida há tempos pelo Vaticano para desprezar e obstruir os avanços obtidos nos direitos das mulheres.
  2. A campanha para eliminar a “ideologia de gênero” também serve aos propósitos de dificultar a reparação histórica às mulheres e à população LGBTI vítimas do conflito armado e impor uma visão única e exclusivamente religiosa para regular todas as esferas da ordem social, impedindo que mulheres e outras populações desfrutem de seus direitos.
  3. A demanda por reconhecer e garantir mais amplamente a liberdade religiosa, uma das mais caras conquistas das sociedades modernas consignada expressamente na Constituição Política da Colômbia,1010. “Garante-se a liberdade de cultos. Toda pessoa tem direito a professar livremente sua religião e a difundi-la em forma individual ou coletiva. Todas as confissões religiosas e igrejas são igualmente livres perante a lei.” (“Artículo 19,” Constituição Política da Colômbia, 2016, acesso em 31 de julho de 2019, http://www.corteconstitucional.gov.co/inicio/Constitucion%20politica%20de%20Colombia.pdf). em vez de servir para reafirmar o Estado de Direito, é usada para obstruir os direitos das mulheres, dos setores sociais LGBTI, os direitos sexuais e os direitos reprodutivos de toda a população.
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Conclusão

A garantia tanto da liberdade de crença quanto da autonomia do Estado em relação às religiões está ameaçada pelo papel que algumas igrejas e movimentos religiosos desempenharam na Colômbia nos últimos anos, ao obstaculizar os processos de construção da paz, que também é hoje reivindicada como direito fundamental.

É necessário preservar a liberdade de consciência e a liberdade religiosa em sua conotação de direitos fundamentais. Mas o que é inaceitável são as práticas que constituem claramente abusos desses direitos, ao pretender impor ao conjunto da sociedade crenças que em todo caso só são vinculantes para quem faz parte dessas organizações religiosas. As Igrejas e os movimentos religiosos devem estar conscientes de que também são chamados a mudar realidades que em seu interior ajudaram a manter o patriarcado, a violência contra as mulheres, as abissais diferenças sociais, o abuso sexual contra meninas/os, a discriminação de setores populacionais e os fanatismos que se traduzem em múltiplas formas de violência.

Os direitos das mulheres não podem converter-se em moeda de troca para condicionar a paz, os acordos e a democracia. Ao contrário, deve-se insistir no respeito e cumprimento do Acordo, inclusive o enfoque de gênero como um gesto de justiça para que as mulheres, a população LGBTI e demais setores vítimas do conflito armado sejam ressarcidos em sua dignidade e se lhes garantam condições de igualdade e o restabelecimento de todos os seus direitos.

A organização, a unidade, a mobilização e a luta das mulheres pelos seus direitos mostram o caminho para a construção de sociedades inclusivas, diversificadas e orientadas para a realização da harmonia e do equilíbrio com os outros e com o ambiente natural.

Por fim, é importante reafirmar o total repúdio à interpretação errônea de algumas Igrejas e setores conservadores do “enfoque de gênero”, demonizado através da maldosa expressão “ideologia de gênero”, bem como à estigmatização dos sucessos alcançados historicamente pelas mulheres para a garantia de seus direitos como cidadãs no exercício real da democracia. O reconhecimento do enfoque diferencial e, especialmente, o de gênero é um dos mínimos inegociáveis, impostergáveis e uma das dívidas históricas que o Estado colombiano e as FARC-EP devem levar em conta para ressarcir as vítimas da histórica violência de que a Colômbia padeceu.

Para a CDD-Colômbia, é bem-vindo o debate provocado pelo enfoque de gênero incluído no Acordo de Paz. Estamos prontas para oferecer argumentos desde o ponto de vista dos direitos e do espírito laico da Constituição. É indispensável que a sociedade participe dessa reflexão de uma maneira argumentada, sem fanatismos nem fundamentalismos de nenhuma índole. É importante recordar que no respeito à pluralidade e à diversidade radica a possibilidade de construir-se uma PAZ sustentável e duradoura.

Sandra Mazo - Colômbia

Sandra Mazo é coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir (CDD-Colômbia), licenciada em Linguística e Literatura, mestre em Estudos Políticos e Relações Internacionais e defensora dos direitos humanos.

Recebido em junho de 2019.

Original em espanhol. Traduzido por Pedro Maia Soares.