Entrevista

Iêda leal: “Nossos corpos são alvos”

Luiz Franco

Aprendizados da luta antirracista para a defesa dos direitos humanos

Neil Horne

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 Entrevista com Iêda Leal
 Por Luiz Franco

Desde o violento período colonial, defender direitos humanos no Brasil tem sido questão de sobrevivência para muitas pessoas, principalmente as negras e indígenas. Apesar de transformações sociais e políticas históricas, o país, que findou seu sistema escravocrata apenas em 1888, ainda possui um grande grau de desigualdade racial.

Hoje o país assume uma “democracia liberal representativa”11. Rafael Oliveira, “Democracia Não Democrática: Como a População Negra É Sub-representada na Política,” Boletim Economia e Política 49, no. 49 (mai/2016). que pretende outorgar direitos básicos aos seus cidadãos. Contudo, essa representação ainda é predominantemente branca, masculina e pertencente às elites econômicas do país. Conforme observa a ativista e educadora Mônica Oliveira, “A própria democracia em que vivemos, e pela qual temos lutado de forma tão ferrenha, especialmente na atual conjuntura, nunca foi plena para a população negra brasileira”.22. Monica Oliveira, “Sem Igualdade Racial Não Há Democracia.” FASE, 16 de novembro de 2016, acesso em 10 de fevereiro de 2020, https://fase.org.br/pt/informe-se/artigos/sem-igualdade-racial-nao-ha-democracia/.

A discussão sobre o que é ser uma defensora ou um defensor de direitos humanos hoje põe em perspectiva, entre outras questões, a urgência do combate às desigualdades e discriminações existentes. É importante mencionar, assim, que a categoria33. “Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos),” Organização das Nações Unidas – ONU, (s.d.), acesso em 11 de fevereiro de 2020, https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Defenders/Declaration/declarationPortuguese.pdf. está cercada de desafios quando aplicada a pessoas negras que defendem os direitos humanos no Brasil, as quais lutam constantemente contra o racismo institucional e estrutural, contra a desigualdade social e pelo fim do genocídio negro.

Segundo Sueli Carneiro, “[a]o longo dos últimos 25 anos, são muitas e ricas as ações de combate ao racismo que vimos desenvolvendo”.44. Sueli Carneiro, “Movimento Negro no Brasil: Novos e Velhos Desafios,” CADERNO CRH no. 36, (jan./jun. 2002): 209. Mesmo assim, ainda persistem entraves para a conquista de direitos da população negra no país. A partir das reivindicações dos movimentos negros, outras associações e grupos começaram a incorporar, em suas pautas, a questão racial, abrindo janelas de oportunidade para formação de novas redes que permitissem o combate ao racismo nas suas múltiplas facetas.

Com isso, movimentos negros no Brasil têm historicamente buscado construir e defender representação política e direitos para essa população. É o caso do Movimento Negro Unificado (MNU), uma das articulações protagonistas da resistência negra brasileira.55. Historicamente, o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), que depois viria a se tornar o MNU, nasceu de um protesto feito nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em 1978. Flavia Rios, “O Protesto Negro No Brasil Contemporâneo (1978-2010),” Lua Nova no. 85 (2012): 41-79.

Para uma melhor compreensão da atuação do movimento negro no Brasil, do atual cenário e dos desafios da luta de pessoas negras defensoras de direitos humanos, Iêda Leal, Coordenadora Nacional do Movimento Negro Unificado e Secretária de Combate ao Racismo da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), retoma a sua trajetória como ativista na entrevista a seguir.

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Luiz Franco • Você se considera uma defensora de direitos humanos?

Iêda Leal • Sim, me considero! A minha formação em Educação (Pedagogia) e a militância no movimento social negro me possibilitaram ampliar a atuação na defesa dos direitos humanos.

LF • A partir da sua experiência, como você analisa a atuação das pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil, especialmente as pessoas negras, ao longo das últimas décadas?

IL • Sempre foi um desafio, e pude trabalhar ao lado de pessoas que acreditavam na construção de um mundo melhor. A atuação das pessoas que têm como princípio norteador a valorização do ser humano acima dos bens materiais, neste país, é muito complicada, pois vivemos num cenário cujas relações humanas estão ancoradas na exploração desenfreada da população negra e mais empobrecida.

Nesse sentido, a tarefa de resgate dos tratados internacionais e nacionais – por exemplo, a Constituição Federal, as Constituições Estaduais e legislações pertinentes à defesa da vida e o Ministério Público – passa a ser recorrente no dia a dia. Assim como organizar saberes para enfrentamento da realidade e para a defesa da vida, contrariando a maioria que não acredita que o melhor e o mais correto é garantir a vida, sempre!

Nessas últimas décadas, nós, negras e negros, estivemos presentes nas estatísticas mais cruéis por não termos nossos direitos respeitados, enfrentando impossibilidades de sobreviver no país que construímos. Essa proximidade com o caos nos possibilitou uma reorganização para ocupar espaços de poder e nos direcionou para uma ação mais engajada de apontar nossos direitos e lutarmos de maneira mais orquestrada contra o racismo.

As defensoras e os defensores negros que atuam colaborativamente são necessários e têm desempenhado um papel fundamental para a reflexão da participação efetiva da população negra nos debates e facilitam uma ação acertada contra todo tipo de discriminação.

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LF • Como você enxerga a luta das defensoras e defensores de direitos humanos negros contra o racismo estrutural do país?

IL • É uma luta dura demais! Imagine lutar contra a estrutura que sustenta a nossa sociedade. A cada momento de organização da comunidade aparecem dispositivos para destruir as possibilidades, mas já aprendemos e compreendemos estes mecanismos e permanecemos juntos e bem atentos para estudar o inimigo e vencê-lo.

Não podemos desistir. O racismo estrutural brasileiro desestimula a luta. Temos que compreendê-lo para poder ter a certeza das nossas intervenções, do envolvimento com todos os poderes, na economia, na saúde, na educação, no esporte e lazer, na segurança e em qualquer espaço em que pudermos intervir. Temos que ficar alerta o tempo todo e tentar minar essa perpetuação do racismo na estrutura do nosso país.

LF • Quais são os maiores desafios em trabalhar com as pautas do movimento negro e, paralelamente, como tem sido a transição entre pautas e lutas nos últimos anos para defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil?

IL • Vivemos numa sociedade absolutamente racista. O racismo está dentro das estruturas, então, a meu ver, promover o debate é fundamental, e passa a ser o maior desafio, que é o de juntar as pautas do movimento negro nessa perspectiva da defesa coletiva e de inclusão nos espaços de poder e de decisão da sociedade, incidindo em discussões em todos os lugares que podemos alcançar.

O mais desafiador é fazer com que essa pauta seja respeitada e que de fato seja debatida, mas não apenas para o movimento negro, e sim para toda a sociedade, o que é um desafio constante.

Tivemos um período muito complicado na nossa história recente que foi a perseguição política das lideranças do movimento social, sindical e estudantil. E essa perseguição tirou a vida de várias pessoas. Nos últimos anos, temos nos envolvido na defesa das garantias da vida, fazendo enxergar que negar educação, saúde, moradia, alimentos, esporte, cultura e lazer é tirar vidas, sim!

Também há o agravamento de as relações raciais serem baseadas na eliminação do corpo negro da sociedade. Somos o alvo fácil da polícia, que atira antes de perguntar o nome e invade casas atirando sem respeitar as moradias da população negra pelo país. Além de prisões arbitrárias e processos engavetados sem solução, sem defesa, apenas condenações.

Trazer essa discussão à tona faz com que a sociedade enxergue que existem defensoras e defensores da população negra, que lutamos para que todos tenham seus direitos absolutamente respeitados.

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LF • Como o MNU enxerga a atuação em rede, por exemplo, em conjunto com a Coalizão Negra por Direitos?

IL • Há exatos 42 anos o MNU percebeu isso, então toda forma de organização, em sintonia com nossa luta, é justa e importante. Serve para ampliar os nossos direitos e para trabalhar em rede na defesa dos direitos humanos, e, em especial, os direitos da população negra. O MNU conseguiu dar exemplo no passado, mas agora precisa fazer esse diálogo com todas as iniciativas que surgem para dar sequência no combate ao racismo. A gente faz parte desse movimento da coalizão por direitos e é muito bom, porque a atuação tem que ser local, estadual, nacional e internacional. Acho que esse é o caminho. Juntar forças para lutar contra o racismo.

LF • Qual é sua análise da atuação das mulheres negras dentro do movimento negro?

IL • É tão fundamental a nossa atuação coletiva enquanto mulheres negras que em 2015, na Marcha das Mulheres Negras, nós colocamos mais de 50 mil mulheres marchando em Brasília.66. “E-book Marcha das Mulheres Negras,” Geledés, 27 de setembro de 2016, acesso em 5 de junho de 2020, https://www.geledes.org.br/e-book-marcha-das-mulheres-negras/. A reorganização do movimento negro passa pela organização e orientação das mulheres negras, e isso é bom.

Não estamos nos esquecendo dos homens negros, não estamos esquecendo de cuidar dos mais velhos. Pelo contrário, inauguramos uma forma muito coletiva de abraçar, organizar e reorganizar o movimento negro para a luta. As mulheres deram o exemplo ao seguirem o caminho do bem viver. O bem viver, para nós, é isso: a coletividade, o respeito e a convicção quando fazemos as intervenções de forma mais coletiva. Entender que somos parte de um legado de memórias de luta e resistência.

LF • Quais práticas de autocuidado que você adota como forma de seguir atuando em um contexto marcado por dificuldades e desafios?

IL • Na verdade, a gente esquece um pouco disso, pois somos engolidas pela rotina; o tempo todo estamos engajadas lutando contra racistas, machistas, contra a LGBTQfobia, correndo atrás dos nossos direitos. A gente se envolve tanto que, às vezes, esquecemos desse autocuidado.

Quem chamou a minha atenção para essa questão de nos proteger mais, de saber entrar e saber sair dos locais, da nossa proteção individual, e também de se preparar fisicamente para se defender de qualquer tipo de violência foi a Angela Davis. Durante o Encontro do Movimento Negro, em São Paulo,77. “Angela Davis Visita Sede de Geledés e Conversa com Coalizão Negra por Direitos,” Geledés, 22 de outubro de 2019, acesso em 5 de junho de 2020, https://www.geledes.org.br/angela-davis-visita-sede-de-geledes-e-conversa-com-coalizao-negra-por-direitos/. ela falou sobre a importância das mulheres negras se organizarem para a autodefesa, do ponto de vista físico e intelectual.

Por isso, devemos estar sempre preparadas para o ataque. Foi importante lembrar da proteção dos nossos corpos e mentes. Confesso que tenho me organizado mais, mas é necessário ampliar esse diálogo com todo o movimento negro de mulheres para reforçarmos os cuidados de forma coletiva. É necessário entender que nossos corpos andando pelo país são alvos, precisamos ter esse pensamento para que possamos garantir as nossas vidas. Vidas negras importam!

   
Fotos do acervo pessoal da Iêda Leal.

Entrevista conduzida por Luiz Franco em 27 de janeiro de 2020.

Luiz Franco - Brasil

Luiz Franco é graduando no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC. Ativista dos direitos humanos, fez estágio na Conectas Direitos Humanos e atualmente no Instituto Ethos. Foi Diretor de Relações Institucionais da Federação Nacional do Estudantes do Campo de Públicas - FENECAP e Coordenador Geral do Centro Acadêmico de Políticas Públicas - CAPOL - UFABC.

Recebido em fevereiro de 2020.

Original em português.