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Sob ataque, mas contra-atacando

Débora Leão e Marianna Belalba Barreto

Defensoras e defensores dos direitos humanos e espaço cívico

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RESUMO

O ano de 2019 foi de ação coletiva e, embora a repressão contra o ativismo pelo espaço cívico siga aumentando, defensoras e defensores dos direitos humanos, ativistas e a sociedade civil continuam operando, adaptando-se e resistindo. Existem muitas histórias de sucesso de pessoas que atuam em defesa dos direitos humanos persistentes em seu trabalho, apesar das crescentes restrições, e é importante reconhecer, enaltecer e aprender com essas histórias e trabalhar para trazer essas narrativas ao alcance da atenção pública de forma a inspirar todos nós. Este artigo analisará alguns casos de conquistas valiosas resultantes do trabalho de pessoas defensoras dos direitos humanos. Além disso, fornecerá uma visão geral das principais restrições e tendências e o que elas podem nos dizer sobre como o espaço cívico afeta quem defende os direitos humanos em todo o mundo e, particularmente, nas Américas, por meio da perspectiva dos dados coletados ao longo de 2019 pela ferramenta CIVICUS Monitor.

Palavras-Chave

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1. Introdução: defensoras e defensores dos direitos humanos continuam a operar com desafios crescentes

As pessoas que defendem os direitos humanos estão trabalhando para criar um mundo mais justo e igualitário, e seu papel nunca foi tão crucial na condução de mudanças. Nos últimos nove anos, a CIVICUS publicou o Relatório sobre o Estado da Sociedade Civil,11. “State of Civil Society Report,” CIVICUS, maio de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/documents/reports-and-publications/SOCS/2020/SOCS2020_Executive_Summary_en.pdf. acompanhando as ações da sociedade civil nas principais questões da atualidade e nas principais tendências que a impactam. No último relatório, a CIVICUS mostra como “a ação cívica alcançou impactos significativos para assegurar mudanças progressivas, promovendo demandas por direitos cívicos e liberdades democráticas, políticas econômicas mais justas, fim da desigualdade, ação sobre a crise climática e reforma internacional”.

Sem dúvida, o advocacy, o ativismo e os protestos da sociedade civil levaram questões como a crise climática a estampar as manchetes em todo o mundo. O papel clássico da sociedade civil de contestar as autoridades nunca foi tão vital:

Além da cobertura de Greta Thunberg, havia diversos outros jovens ativistas de todas as origens e de todo o mundo que assumiram a dianteira e se tornaram líderes climáticos. A chamada à ação encontrou um público receptivo entre os jovens que viverão com todas as consequências das mudanças climáticas.22. “State of Civil Society Report, Civil Society Action on Climate Change,” CIVICUS, maio de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/documents/reports-and-publications/SOCS/2020/SOCS2020_Climate_en.pdf.

Ao reconhecer o trabalho fundamental das pessoas que defendem os direitos humanos, e após mais de treze anos de negociações, a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade de Indivíduos, Grupos e Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Declaração das Defensoras e dos Defensores de Direitos Humanos).33. “Declaration on the Right and Responsibility of Individuals, Groups and Organs of Society to Promote and Protect Universally Recognized Human Rights and Fundamental Freedoms,” Nações Unidas, dezembro de 1998 , acesso em 20 de julho de 2020, https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/rightandresponsibility.aspx. A Declaração foi um acontecimento importante para o reconhecimento e a proteção do trabalho de defensoras e defensores dos direitos humanos.

Mais de vinte anos se passaram desde que a Declaração foi adotada e, provavelmente, muitas pessoas esperavam que o mundo fosse um lugar mais hospitaleiro para defensoras e defensores e ativistas de direitos humanos na atualidade. No entanto, nos últimos anos, testemunhamos uma reação global contra a sociedade civil, um aumento no extremismo político, a ascensão de grupos de extrema direita e um ambiente deteriorado para a atuação de quem atua nesse campo.44. “Against the Wave: Civil Society Responses to Anti-Rights Groups,” CIVICUS, novembro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/documents/reports-and-publications/action-against-the-anti-rights-wave/AgainstTheWave-summary-en.pdf.

O declínio do espaço cívico influencia a capacidade de defensoras e defensores dos direitos humanos de operar. As liberdades de associação, reunião pacífica e expressão – os três direitos do espaço cívico – dão base ao trabalho dessas pessoas: para influenciar decisões e lutar por direitos, as pessoas devem poder participar da sociedade, expressar suas opiniões, denunciar violações, se organizar e se mobilizar.

A importância de um ambiente seguro e favorável para as pessoas que defendem os direitos humanos foi destacada em 2014 pela ex-Relatora Especial da ONU sobre a situação das defensoras e dos defensores dos direitos humanos, Margaret Sekaggya, que disse: “Defensoras e defensores devem poder realizar suas atividades em um ambiente que os capacite a defender todos os direitos humanos para todas as pessoas”.55. “Report of the Special Rapporteur on the Situation of Human Rights Defenders,” Nações Unidas, dezembro de 2013, acesso em 20 de julho de 2020, https://undocs.org/en/A/HRC/25/55. Longe de atingir esse objetivo, a Relatora Especial “vem notando que o espaço para a sociedade civil e para quem defende os direitos humanos vem visivelmente diminuindo em certas regiões do mundo”.66. Ibid.

Nesse contexto, a CIVICUS e seus parceiros77. “Research Partners,” CIVICUS Monitor, 2007, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/researchpartners/. lançaram a ferramenta CIVICUS Monitor.88. CIVICUS Monitor (https://monitor.civicus.org) é uma ferramenta que conta com um portal on-line dinâmico que monitora as condições da sociedade civil no âmbito internacional com o objetivo de fornecer uma avaliação abrangente das condições da sociedade civil nos países com o passar do tempo. A ferramenta analisa até que ponto os três direitos relacionados ao espaço cívico estão sendo respeitados e sustentados em 196 países de todo o mundo, assim como até que ponto os Estados estão cumprindo seu papel de proteger essas liberdades fundamentais. Com base em dados qualitativos e quantitativos sobre as condições da sociedade civil, cada país é colocado em uma das cinco categorias: aberto, com limitações, restritivo, repressivo e fechado.99. “CIVICUS Monitor Methodology Paper,” CIVICUS Monitor, maio de 2018, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/documents/civicus-monitor-methodology-paper.pdf.

Os dados da ferramenta CIVICUS Monitor mostram claramente que a cada ano menos pessoas vivem em países onde as liberdades civis são respeitadas. A edição de 2019 do relatório anual que resume as principais tendências do espaço cívico encontradas nos dados coletados pelo CIVICUS Monitor – Pode Popular Sob Ataque (People Power Under Attack,1010. “People Power Under Attack,” CIVICUS Monitor, dezembro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://civicus.contentfiles.net/media/assets/file/GlobalReport2019.pdf. na denominação original em inglês) – mostra que, atualmente, apenas 3% da população mundial vive em países classificados como abertos. O que significa que em apenas 43 países as pessoas são capazes de exercer seus direitos sem grandes desafios, embora, como veremos na análise a seguir, as violações do espaço cívico também ocorram em países classificados como abertos.

O declínio do espaço cívico na Índia e na Nigéria significa que 40% da população mundial vive em países repressivos na atualidade. No ano passado, essa proporção era de 19%, o que nos dá mais evidências de que o cenário para defensoras e defensores de direitos humanos não é seguro nem favorável.

Na seção a seguir, examinaremos as principais restrições e tendências e o que elas podem nos dizer sobre como o espaço cívico afeta as pessoas que atuam na defesa dos direitos humanos em todo o mundo e, particularmente, nas Américas.

No entanto, também é importante destacar que essas pessoas continuam trabalhando perante as restrições. Isso tem sido documentado, assim como os desafios para o ativismo – mas também novas formas de atuação ativista e solidariedade em resposta, além do fato de que mais pessoas estão indo às ruas para exigir mudanças. Frequentemente, isso produziu resultados positivos, e é aí que gostaríamos que a história terminasse. Portanto, apresentaremos também os desenvolvimentos positivos que mostram o trabalho incansável de defensoras e defensores que continuam pressionando por mudanças.

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2. O contexto é importante: táticas usadas por atores estatais e não estatais para restringir o trabalho de defensoras e defensores

Em julho de 2020, a ferramenta CIVICUS Monitor classificou 43 países como abertos, 42 com limitações, 49 como restritivos, 38 como repressivos e 24 como fechados. Essa distribuição aparentemente homogênea mascara um fato preocupante: a maioria da população do mundo vive em países nos quais os direitos fundamentais e as liberdades democráticas são severamente restringidos. No relatório mais recente do Poder Popular Sob Ataque, descobrimos que aproximadamente 67% das pessoas vivem em países onde o espaço cívico foi classificado como fechado ou repressivo. Na prática, isto significa que a maioria das pessoas vive em ambientes nos quais é extremamente difícil denunciar violações, acessar a justiça e reivindicar direitos não efetivados.

Censura

Em 2019, as informações da CIVICUS Monitor indicaram a crescente intolerância estatal em relação aos dissidentes e àqueles que ousam contestar as autoridades ou defender os direitos de suas comunidades. A censura foi a restrição que documentamos com mais frequência, aparecendo em 33% dos nossos relatórios; ela foi a única restrição que apareceu nas cinco principais violações em todas as categorias de classificação.

Onde o espaço cívico é repressivo ou fechado, a censura era, de longe, a tática mais comum usada pelos Estados para controlar a oposição. Frequentemente, ela era flagrante, com a apreensão de materiais, retirada do ar de canais de comunicação e com a restrição seletiva do acesso à internet, entre outras táticas. Na Venezuela de Nicolás Maduro, ativistas, artistas e jornalistas são vulneráveis a restrições arbitrárias e gritantes. Por exemplo, em agosto de 2019, a Comissão Nacional de Telecomunicações (CONATEL) ordenou que uma emissora de TV retirasse do ar uma entrevista e um programa de opinião sem dar explicações.1111. “Venezuelan Government Continues to Repress Freedom of Association,” CIVICUS Monitor, setembro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/09/28/venezuelan-government-continues-repress-freedom-association/. O jornalista Jorge Ramos foi detido e seu equipamento foi confiscado no meio de uma entrevista1212. “Intimidation of Journalists and Actors in Venezuela,” CIVICUS Monitor, agosto de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/08/15/intimidation-journalists-and-actors-venezuela/univision-journalists-miraflores-palace. com o presidente Maduro, depois que Jorge fez perguntas sobre violações de direitos humanos.

Defensoras e defensores de direitos e jornalistas estão sujeitos a práticas de censura, independentemente de onde residam. Essa também foi a restrição mais comum documentada pela CIVICUS Monitor em países da categoria restrita, principalmente na Ásia Central e na Europa. Onde o espaço cívico é menos restrito, a censura geralmente assume a forma de regulamentações rigorosas, pressão política sobre a mídia ou acusações difamatórias contra jornalistas e pessoas defensoras. Nas Américas, não faltam casos de evidentes tentativas de censura, como no Brasil, quando um governador tentou banir, de uma feira de livros, uma história em quadrinhos que continha um beijo entre pessoas do mesmo sexo,1313. “Brazil: Defenders Vilified and Criminalised, Censorship and Attacks against Media on the Rise”, CIVICUS Monitor, novembro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/10/31/brazil-defenders-vilified-and-criminalised-censorship-and-attacks-against-media-rise/. ou mais sutis, como nos EUA, onde jornalistas tiveram credenciais de imprensa negadas devido aos seus históricos profissionais.1414. “Government Shutdown Drives Workers to Protest Washington’s Inaction,” CIVICUS Monitor, janeiro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/01/31/government-shutdown-drives-furoughed-workers-protest-washingtons-inaction/.

Intimidação

Rosalina Domínguez, de Honduras, defensora ambiental e do direito à terra, estava voltando para casa com seus filhos em julho de 2019 quando sofreu uma emboscada e homens armados com facões lhe disseram: “daqui você não passará”.1515. “Protest in Honduras Have Left At Least 3 Demonstrators Dead and Several Injured,” CIVICUS Monitor, agosto de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/08/19/honduras-protests-3-dead/. Alguns dias antes, as colheitas de sua comunidade haviam sido incendiadas intencionalmente, e, em abril, Rosalina havia sido ameaçada por pelo menos sete agressores, um dos quais estava armado. Os defensores de sua comunidade, Río Blanco, apresentaram dezenas de denúncias às autoridades desde 2016, mas pouco foi feito. Rosalina e a população de Río Blanco se opuseram veementemente à construção de uma hidrelétrica pela empresa de energia DESA, cujos executivos ordenaram a morte de Berta Cáceres em 2016.1616. “Honduras: Repression of Protests and Criminalisation of Defamation Concern Civil Society,” CIVICUS Monitor, junho de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/06/10/honduras-repression-protests-and-criminalisation-defamation-concern-civil-society/. Este é apenas um caso entre centenas que a Monitor documentou e acompanhou, nos quais ativistas, jornalistas e organizações foram alvo repetidamente de atores estatais ou não estatais. A intimidação aparece entre as principais violações em países onde o espaço cívico é mais restrito – ou seja, nas categorias fechado, repressivo e restritivo.

Existem pequenas, mas significativas diferenças no modo como a intimidação é encontrada em diferentes ambientes do espaço cívico. Em países classificados como restritivos, a intimidação de atores não estatais geralmente assume a forma de campanhas difamatórias, principalmente por meio de plataformas on-line.1717. “Salvadoran Women HRDs Face Online Harassment and Threats,” CIVICUS Monitor, agosto de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/08/27/salvadoran-women-hrds-face-online-harrassment-and-threats/. Quando os Estados assumem a liderança, costumam usar intimidação judicial que visa drenar os recursos financeiros e a energia, levando defensoras e defensores a entrarem em processos judiciais longos e dispendiosos com acusações falsas.1818. “Abelino Chub Caal Released Amid Increasing Attacks Against HRDs,” CIVICUS Monitor, maio de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/05/07/abelino-chub-caal-released-amid-increasing-attacks-against-hrds/. Em comparação, nos países onde o espaço cívico é repressivo, registramos intimidações mais sistemáticas que geralmente envolvem ataques físicos. Nas Américas, normalmente os grupos são mais visados segundo o contexto específico em que se encontram: jornalistas no México, defensoras e defensores ambientais e indígenas em Honduras e dissidentes políticos na Nicarágua.

Como a intimidação envolve o uso de um amplo espectro de táticas, é difícil monitorá-la e defini-la. É possível que, cada vez mais, os Estados estejam usando a intimidação como uma estratégia para ludibriar as organizações de monitoramento. É o caso da Nicarágua, no qual a pressão local e internacional levou o governo a libertar centenas de dissidentes políticos em 2019 e 2020.1919. “91 Political Prisoners Released but HRDs and Journalists Face Continuous Hostility and Threats,” CIVICUS Monitor, janeiro de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2020/01/27/91-political-prisoners-released-hrds-and-journalists-face-continuous-hostility-and-threats/. No entanto, fora das celas das prisões, os ex-presos políticos encontram, muitas vezes, suas casas sitiadas e vandalizadas, seus familiares ameaçados e sua liberdade em perigo dado o risco de nova prisão devido a acusações falsas.2020. “Human Rights Defenders Subjected to Criminalisation, Defamation and Harassment,” CIVICUS Monitor, novembro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/11/28/human-rights-defenders-subjected-criminalisation-defamation-and-harassment/; “Declining Health of Convicted HRD Concerns Family Members and Human Rights Organisations,” CIVICUS Monitor, maio de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2020/05/29/declining-health-convicted-hrd-concerns-family-members-and-human-rights-organisations/.

Resposta aos protestos

Os dados da ferramenta CIVICUS Monitor mostram que há uma reação global contra as milhares de pessoas que têm ocupado as ruas em protesto. Em nosso último relatório do Poder Popular Sob Ataque, documentamos 96 países onde o direito à reunião pacífica tinha sido restringido entre outubro e novembro de 2019.

Nas Américas, algumas das repressões mais impressionantes de 2019 foram vistas em países onde os manifestantes poderiam ter bons motivos para acreditar que era seguro se mobilizar: Chile, Equador e Estados Unidos, todos classificados como países com limitações pela CIVICUS Monitor. As prisões de defensores Wet’suwet’en que se manifestavam contra gasodutos no território da Primeira Nação do Canadá enfatizam ainda mais o ponto importante de que alguns grupos vivenciam restrições de espaço cívico em protestos de maneiras muito diferentes de outros.2121. “Canada Natural Gas Pipeline Project Wet’suwet’en Territory Sparks National Protests,” CIVICUS Monitor, março de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2020/03/26/canada-natural-gas-pipeline-project-wetsuweten-territory-sparks-national-protests/.

Leis restritivas

Desde 2013, medidas legislativas que restringem uma ou mais das três liberdades do espaço cívico foram propostas ou promulgadas em mais de 80 países.2222. “The Civic Space Initiative,” International Center for Not For Profit Law, 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.icnl.org/our-work/global-programs/the-civic-space-initiative. Essa longa tendência continuou em 2019, aparecendo entre os principais tipos de restrições em países classificados como tendo espaços cívicos restritivos, com limitações e abertos. As liberdades de reunião e expressão pacíficas foram os principais alvos de propostas legislativas restritivas, inclusive nas Américas e, frequentemente, nos países onde esses direitos eram considerados consagrados. Em vez de contestar o direito de manifestação abertamente, as autoridades desses países tendem a questionar os espaços onde as pessoas se reúnem para protestar, seja em um campus universitário ou em uma avenida principal, e a legitimidade de táticas como bloqueios de ruas e desobediência civil.

Nos EUA, várias legislaturas estaduais aprovaram leis que restringem as manifestações em torno da chamada “infraestrutura essencial”. Em Ohio, um projeto de lei que aumentou as multas por manifestações pacíficas e desobediência civil em dutos e outros locais impôs penas de até dez anos de prisão e multas de vinte mil dólares.2323. “Activists Say New Laws to Protect Critical Infrastructure Aim to Silence Them,” NPR, setembro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.npr.org/2019/09/25/763530303/activists-say-new-laws-to-protect-critical-infrastructure-aim-to-silence-them?t=1593765549444. Enquanto isso, um projeto de lei na Costa Rica restringia severamente os direitos de manifestação e associação, proibindo greves contra políticas públicas e proibindo trabalhadores do sistema de educação, saúde e outros setores de se envolverem em todos os tipos de greves. Essa medida legislativa foi proposta após uma greve intersetorial contra cortes econômicos em 2018 e tem como alvo alguns dos principais grupos que se mobilizaram para resistir às mudanças.2424. “Proposed Legislation on Workers’ Strikes Could Limit Freedom of Peaceful Assembly in Costa Rica,” CIVICUS Monitor, outubro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/10/18/proposed-legislation-workers-strikes-could-limit-freedom-peaceful-assembly-costa-rica/; “Tension Between the Government and Public Officials Over Fiscal Reforms,” CIVICUS Monitor, novembro de 2018, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2018/11/14/tensions-between-government-and-public-officials-tax-reforms/.

Dois Estados nos quais o espaço cívico já era mais restrito, Brasil e Guatemala, deram grandes passos para impor amplas restrições à sociedade civil. Na Guatemala, organizações de direitos humanos alertaram contra repetidas tentativas de mudar a lei das organizações não governamentais do país. Um decreto que altera essa lei foi aprovado no Congresso no início de 2020, impondo amplos controles e duras sanções às organizações da sociedade civil.2525. “NGO Oversight Law Limits and Restricts Freedom of Association in Guatemala,” CIVICUS Monitor, março de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2020/03/09/ngo-oversight-law-limits-and-restricts-freedom-association-guatemala/.

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3. Resistência

É evidente que o ambiente operacional das pessoas que defendem os direitos humanos está em declínio e que os atores estatais e não estatais continuam a implementar restrições para impedir que defensoras e defensores realizem seu trabalho. Existem boas razões para monitorar essas restrições, a fim de identificar tendências comuns, colocar em evidência as situações que se degradam rapidamente e criar estratégias para combatê-las. No entanto, o foco nas restrições não deve ignorar a contínua resistência e o contra-ataque das defensoras e dos defensores dos direitos humanos.

É importante destacar as histórias positivas, as histórias de sucesso e o trabalho às vezes oculto das pessoas que atuam em defesa desses direitos. Por essa razão, nosso monitoramento também descreve melhorias nas condições do espaço cívico. Em 2019, a ferramenta CIVICUS Monitor documentou diversos casos nos quais houve progresso no espaço cívico e defensoras e defensores dos direitos humanos venceram batalhas, muitas vezes, após anos de trabalho desafiando políticas, construindo movimentos e expondo as violações. Nesta seção, examinamos alguns casos de conquistas valiosas resultantes do trabalho dessas pessoas.

Em Belize, em 2010, o ativista Caleb Orozco iniciou um processo para descriminalizar as relações sexuais consensuais entre adultos do mesmo sexo, que eram passíveis de punição de até dez anos de prisão segundo a seção 53 do Código Penal. Durante o processo, Caleb recebeu ameaças de morte e sofreu agressões físicas como resultado de sua defesa em apoio à comunidade LGBTQI+. Em 2016, após seis anos, o Supremo Tribunal de Belize declarou inconstitucional a seção 53, afirmando que criminalizar relações sexuais consensuais entre adultos do mesmo sexo viola os direitos à dignidade humana, privacidade, liberdade de expressão, não discriminação e igualdade perante a lei.2626. “Court Decision in Belize a Victory for LGBT Rights Defender Caleb Orozco,” CIVICUS Monitor, setembro de 2018, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2016/09/15/court-decision-belize-victory-lgbt-rights-defender-caleb-orozco/.

Na Guatemala, Abelino Chub Caal, líder indígena Maya Q’eqchi, estava almoçando com sua família quando a polícia o prendeu, em 4 de fevereiro de 2017. Ele foi acusado de apropriação qualificada de terras, incêndio criminoso, coerção, associação ilícita e pertencimento a grupos armados ilegais – todas acusações ligadas a um incidente no qual Abelino sequer estava presente. Ele havia se tornado um incômodo para os interesses do agronegócio e foi criminalizado por sua implacável defesa dos direitos indígenas à terra. Este está longe de ser um caso isolado na Guatemala ou na região, mas a solidariedade da sociedade civil garantiu um resultado positivo. Abelino escreveu cartas da prisão endereçadas ao público e a políticos relevantes, enquanto organizações comunitárias se uniram a organizações internacionais para criar uma campanha em larga escala combinando petições, mídias sociais e pressão internacional. Seus advogados lutaram para mostrar que o caso carecia de uma base de evidências e, 812 dias após a sua prisão, o defensor foi absolvido de todas as acusações. “Vou continuar revelando todos os problemas que afetam as comunidades. Como outras pessoas defensoras da terra e do meio ambiente, não trabalho para mim, mas para proteger os direitos das comunidades que foram abandonadas pelo Estado”, Abelino disse, após sua libertação, mostrando que sua luta está longe de terminar.2727. “Abelino Chub Caal Released Amid Increasing Attacks Against HRDs,” CIVICUS Monitor, maio de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/05/07/abelino-chub-caal-released-amid-increasing-attacks-against-hrds/; “Abelino Chub Caal Absolved of All Charges,” PBI Guatemala, 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://pbi-guatemala.org/en/news/2019-04/abelino-chub-caal-absolved-all-charges; “Against All Odds: The Criminalisation of Land Rights Activists in Guatemala,” Global Witness, janeiro de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.globalwitness.org/en/blog/against-all-odds/.

Na Venezuela, frequentemente no noticiário sobre repressão estatal, censura da mídia e ataques a defensoras e defensores dos direitos humanos, há muitas histórias de notáveis atos de perseverança e resistência, de pessoas que constroem redes de apoio diante de um apoio internacional limitado e, muitas vezes, polarizado. Luis Carlos Diaz, jornalista e ativista dos direitos digitais, foi preso e detido pelas autoridades em março de 2019. Horas depois de sua esposa o declarar desaparecido, oficiais do Serviço de Inteligência Bolivariano (Sebin) o levaram algemado para seu apartamento às 2h30 da manhã. Posteriormente, foi levado para a prisão política de “Helicoide”.2828. “Sociopolitical Crisis Triggers Attacks Against HRDs,” CIVICUS Monitor, abril de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/04/23/sociopolitical-crisis-triggers-attacks-against-hrds/.

Ao usar a hashtag #LiberenaLuisCarlos, em espanhol (#LibertemLuisCarlos, na tradução ao português), dezenas de milhares de seguidores on-line exigiram sua libertação e instaram organizações internacionais e nacionais a participar da campanha. Nas ruas, pessoas se reuniram em frente ao prédio do ministério público em Caracas para denunciar sua detenção arbitrária.2929. “Sociedad Civil Protesta Para Exigir la Liberación de Luis Carlos Diaz,” El Nacional, março de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.elnacional.com/sociedad/sociedad-civil-protesta-para-exigir-liberacion-luis-carlos-diaz_274310/. Em uma reviravolta sem precedentes, Luis Carlos foi libertado aproximadamente 24 horas depois. Suas primeiras palavras após sua libertação comemoraram e reforçaram o “poder das redes” como causa de sua soltura.3030. “Beyond Venezuela’s Bad News Headlines, Success Stories of People Power Shine Through,” Open Democracy, abril de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.opendemocracy.net/en/democraciaabierta/international-civil-society-week/beyond-venezuelas-bad-news-headlines-success-stories-of-people-power-shine-through/.

Até o final de 2019, primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro, a sociedade civil local já havia registrado pelo menos 60 ações diferentes tomadas pelo governo para restringir as práticas democráticas no Brasil. Elas fazem parte de uma estratégia multifacetada que abrange campanhas de difamação, difamação pública de ativistas e jornalistas, criminalização, desmantelamento de conselhos da sociedade civil e propostas legislativas que permitem a supervisão estatal do trabalho de ativistas e restrição do direito das pessoas ao acesso a informações.3131. “Activists Criminalised and Continuous Delegitimisation of Press in Brazil,” CIVICUS Monitor, janeiro de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2020/01/07/activists-criminalised-and-continuous-delegitimisation-press-brazil/; “Jair Bolsonaro’s First 100 Days in Office Demonstrate Brazilian President’s Disregard for Pluralism,” CIVICUS Monitor, maio de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/05/13/jair-bolsonaros-first-100-days-office/. Em resposta, a sociedade civil utilizou anos de experiência de trabalho em litígios para contestar as políticas públicas nos tribunais, expôs retrocessos a direitos fundamentais em fóruns internacionais e conseguiu captar a atenção internacional sobre questões como o aumento do desmatamento, pressionando o governo a agir.3232. “Climate Change: There Is No Respect for The Role of Civil Society,” CIVICUS Interviews, setembro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/index.php/media-resources/news/interviews/4080-climate-change-there-is-no-respect-for-the-role-of-civil-society; “Brazil: Defenders Vilified and Criminalised, Censorship and Attacks against Media on the Rise”, CIVICUS Monitor, novembro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://monitor.civicus.org/updates/2019/10/31/brazil-defenders-vilified-and-criminalised-censorship-and-attacks-against-media-rise/. Apesar do ambiente cada vez mais repressivo, uma coalizão de 160 organizações reuniu assinaturas de mais de 500 mil pessoas em uma campanha por uma renda básica emergencial durante a pandemia da Covid-19, levando à adoção dessa política em menos de um mês.3333. “Renda Básica Emergencial: A Campanha que Levou a Ela, e Seus Próximos Passos,” Rede Brasileira de Renda Básica, abril de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, http://rendabasica.com.br/renda-basica-emergencial-campanha-levou-ela-seus-proximos-passos/; “COVID-19: Brazil Implements Basic Income Policy Following Massive Civil Society Campaign”, Open Democracy, abril de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.opendemocracy.net/en/democraciaabierta/covid-19-brazil-implements-basic-income-policy-following-massive-civil-society-campaign/.

Em 18 de março de 2018, após seis anos de negociações, os Estados da América Latina e do Caribe assinaram seu primeiro tratado de direito ambiental e direitos humanos.3434. “Regional Agreement on Access to Information, Public Participation and Justice in Environmental Matters in Latin America and the Caribbean,” CEPAL, março de 2018, acesso em 20 de julho de 2020, https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/43583/1/S1800428_en.pdf. O texto tem uma disposição específica sobre defensoras e defensores dos direitos humanos ambientais sem precedentes para a região e consagra uma abordagem baseada nos direitos dos povos indígenas e das populações vulneráveis, com disposições para favorecer o acesso destes grupos à informação, participação e acesso à justiça. O acordo foi influenciado por diversos anos de engajamento por parte da sociedade civil. Mais de 2.000 organizações acompanharam o processo de formulação do tratado desde o seu início, aproveitando a oportunidade sem precedentes de se sentar à mesa de negociações para apresentar propostas políticas relevantes e influenciar os diplomatas. Em particular, o trabalho da sociedade civil foi fundamental para garantir o reconhecimento da história de violência contra pessoas que defendem os direitos à terra e ao meio ambiente na região.3535. “Escazu: The Work of Civil Society Made a Huge Difference,” CIVICUS Interviews, fevereiro de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/index.php/media-resources/news/interviews/3728-escazu-the-work-of-civil-society-made-a-huge-difference.

Segundo Aída Gamboa, da organização Derecho, Ambiente e Recursos Naturales, do Peru:

O trabalho da sociedade civil fez uma enorme diferença. A questão das defensoras e dos defensores dos direitos humanos era uma proposta da sociedade civil que não estava presente na primeira versão do acordo. Esta foi, sem dúvida, a maior conquista e um marco histórico para a democracia ambiental, porque nenhum outro tratado internacional possui disposições para a proteção das defensoras e dos defensores dos direitos humanos.

À medida que o acordo entrou em sua fase seguinte, os ativistas continuaram a advogar e fazer campanha pela sua ratificação e implementação.

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4. Olhando adiante

Enquanto a repressão ao ativismo pacífico continua, é necessário reconhecer, celebrar e aprender com as diversas histórias de sucesso de defensoras e defensores dos direitos humanos e trabalhar para trazer essas narrativas ao alcance da atenção pública de forma a inspirar todos nós.3636. “State of Civil Society Report 2019,” CIVICUS, março de 2019, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/index.php/state-of-civil-society-report-2019. Como parte disso, é importante dizer que, embora grupos historicamente excluídos continuem sendo alvo de repressão, suas histórias não são todas negativas; em alguns casos, por exemplo, foram alcançados importantes avanços na conquista do reconhecimento jurídico das identidades e relações LGBTQI+.3737. “State of Civil Society Report 2020: Challenging Exclusion and Claiming Rights,” CIVICUS, maio de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/documents/reports-and-publications/SOCS/2020/SOCS2020_Exclusion_en.pdf.

Sem se deixar abater pelas restrições, defensoras e defensores dos direitos humanos, ativistas e a sociedade civil continuam a operar, adaptar-se e resistir, contra todas as probabilidades, e saírem como vencedores. O ano de 2019 foi de ação coletiva, quando muitos ativistas e cidadãos saíram às ruas para exigir e recuperar seus direitos. Em muitos casos, as manifestações causaram impactos, pois os atos que desencadearam as mobilizações foram revertidos rapidamente.3838. “State of Civil Society Report 2020: Collective Action Triggered by Economic Injustice,” CIVICUS, maio de 2020, acesso em 20 de julho de 2020, https://www.civicus.org/documents/reports-and-publications/SOCS/2020/SOCS2020_Protest_en.pdf.

O Chile foi um dos diversos países onde protestos em massa geraram impacto. Uma placa em um protesto no país dizia “Los ideales son a prueba de balas” (“os ideais são à prova de balas”, na tradução ao português) – uma mensagem poderosa que resume por que e como defensoras e defensores dos direitos humanos continuam avançando e contra-atacando. Há uma necessidade contínua de a sociedade civil agir coletivamente, mostrar solidariedade e se manifestar.3939. Ibid.

Débora Leão - Brasil

Débora Leão é pesquisadora sobre espaço cívico na CIVICUS e mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Oxford. Antes de ingressar na CIVICUS, trabalhou com advocacy e pesquisa relacionados à participação cívica, desenvolvimento urbano e justiça climática.

Recebido em junho de 2020.

Original em inglês.
Traduzido por Fernando Sciré.

Marianna Belalba Barreto - Venezuela

Marianna Belalba Barreto coordena o grupo sobre espaço cívico na CIVICUS e é mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Notre Dame.

Recebido em junho de 2020.

Original em inglês.
Traduzido por Fernando Sciré.