O caso das candidaturas evangélicas ao legislativo brasileiro
As percepções sobre a relação entre religião e política no Brasil são variadas. A religião tem ganhado centralidade nos debates eleitorais desde o pleito de 2010. Por um lado, pode-se destacar uma visão que afirma a oposição e autonomia destas esferas denunciando o que seria uma ameaça ao Estado Laico. Noutro polo podemos identificar atores sociais que apostam na proximidade entre religião e política como afirmação da democracia e/ou uma “solução” para os males da política e da sociedade. No primeiro, um cunho humanista/universalista, somado a percepções negativas da religião, orienta a narrativa. No segundo caso, um fundo moral a conduz. Neste artigo buscamos refletir sobre mecanismos e técnicas de poder nas eleições de 2018 explorando convergências entre interesses e narrativas religiosas e seculares e seus relativos usos situados durante o processo eleitoral e no período imediatamente posterior a ele. Além do contínuo de pesquisas realizadas desde 2010 acompanhando os processos eleitorais nacionais, teremos como base empírica a pesquisa “Candidaturas evangélicas nas eleições 2018: Mapeamento de postulantes ao poder legislativo no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais”, realizada entre 2018-2019 pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER).
Em 2018 tivemos uma eleição de recordes: o maior número de votos nulos e abstenções em âmbito nacional – 30,8%; o maior número de candidaturas à Presidência da República – 13 candidatos e um total de 34 partidos; o maior número de concorrentes a uma vaga na Câmara Federal – 8.207 candidaturas; além de ser a eleição cuja temática da violência e na qual a presença da religião se fizeram mais presentes. Neste pleito, 79% dos brasileiros queriam um presidente que acreditasse em Deus e 30% desejavam que o presidente fosse de sua mesma religião.11. Os dados são da Pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira – Perspectivas para as Eleições 2018, realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE) em março de 2018 por encomenda da Coordenação Nacional da Indústria (CNI). Os sentimentos públicos de atordoamento e medo, tão presentes nas eleições presidenciais de 2014,22. Para acompanhar as análises referentes a este pleito ver Christina Vital da Cunha, Paulo Victor Leite Lopes e Janayna Lui, Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições 2014 (Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião, 2017). não arrefeceram em 2018. Ao contrário, mantiveram-se ganhando muitos contornos em um sentimento de ameaça experimentado em pelo menos quatro planos: físico, patrimonial, moral e econômico. A sensação dessas ameaças foi explorada e fustigada pela maioria das candidaturas aos executivos e legislativos nacional e estaduais.
Neste artigo buscamos refletir sobre estratégias nas eleições de 2018 explorando convergências entre interesses e narrativas religiosas e seculares e seus relativos usos durante o processo eleitoral. Além do contínuo de pesquisas sobre os processos eleitorais nacionais desde 2010, teremos como base empírica a pesquisa “Candidaturas evangélicas nas eleições 2018: Mapeamento de postulantes ao poder legislativo no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais”,33. A equipe formada para esta pesquisa contou com Christina Vital da Cunha e Clemir Fernandes como consultores e Ana Carolina Evangelista como coordenadora. Como auxiliares de pesquisa participaram Felipe Lins, Marcelle Decothé, Gabriele Ribeiro, Vanessa Cardozo, Rafaela Marques e Rodrigo Camurça. O período de confecção do projeto, coleta e análise dos dados foi de julho de 2018 a fevereiro de 2019. realizada entre 2018-2019, pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) com apoio da Fundação Heinrich Boll.
Com esta pesquisa visávamos compreender qual era a oferta do mundo evangélico para a política a partir de candidaturas ao legislativo nos maiores colégios eleitorais em diferentes regiões do país. Com isso, verificar a ampliação ou retração da confessionalização44. Este fenômeno, identificado e cunhado originalmente por Maria das Dores Machado em pesquisa que resultou no livro Política e Religião: A Participação dos Evangélicos nas Eleições (São Paulo: FGV, 2006), dizia respeito a um processo de identificação religiosa de candidaturas como estratégia para fortalecimento de capital político e consequente resultado positivo nas urnas. Nele os candidatos e candidatas faziam referência direta às suas vinculações religiosas (irmão, irmã, missionária, missionário) ou às suas posições na hierarquia das igrejas (pastor, pastora, presbítero, babalaô, mãe, pai, padre, sacerdote) como meio de se apresentarem publicamente mediante registro nos tribunais eleitorais. das candidaturas, seus perfis, e refletir sobre os filtros do poder que ao final viabilizam a vitória de candidaturas com alguns perfis políticos e denominacionais específicos. Em segundo lugar, buscávamos identificar e refletir sobre origens, motivações, alianças políticas e religiosas, pautas prioritárias e posicionamentos dessas candidaturas.
Em termos metodológicos, priorizamos a produção de uma base de dados sobre candidaturas evangélicas ao legislativo federal e estadual dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais.55. A seleção desses estados ocorreu em razão de serem os maiores colégios eleitorais. Com eles, alcançamos um recorte correspondente a quase 50% do eleitorado nacional. O trabalho de campo mais aprofundado aconteceu no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nossas fontes primárias eram: dados do TSE,66. “Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais,” TSE, 2019, acesso em 20 de julho de 2019, http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/. listas partidárias, listas oficiais das Frentes Parlamentares Evangélicas na legislatura 2015-2018 e textos e sites de referência sobre o mundo evangélico. Acompanhamos campanhas na TV e nas redes sociais também para identificar elementos de discurso, posicionamento e alianças políticas.
Durante o acompanhamento das candidaturas, foram realizadas entrevistas com alguns candidatos de diferentes perfis religiosos e políticos com vistas a compreender, em profundidade, anseios e motivações políticas, projetos, formatos e estrutura de campanha e vinculações político-partidárias.
Nos quatro estados cobertos pela pesquisa foram identificadas 381 candidaturas evangélicas aos legislativos federal e estadual. Das 164 candidaturas para a Câmara Federal, 42% eram confessionais. A Bahia foi o estado com o maior percentual de candidaturas confessionais, tanto entre candidaturas nos níveis federal como estadual (78% e 58% respectivamente).
Das candidaturas evangélicas identificadas para o Congresso Nacional nos quatro estados, 32% obtiveram êxito. Já para as Assembleias Legislativas Estaduais, do total de 217 candidatos, foram eleitos 27% − com variações em cada Estado conforme tabelas a seguir.
Estadual | Federal | TOTAL | |
BAHIA | 34 | 19 | 53 |
MINAS GERAIS | 38 | 31 | 69 |
RIO DE JANEIRO | 73 | 60 | 133 |
SÃO PAULO | 71 | 54 | 125 |
Estadual | Federal | TOTAL | Confessionais Eleitos | |
BAHIA | 14 (41%) |
5 (26%) |
19 (35%) |
3 |
MINAS GERAIS | 13 (35%) |
15 (50%) |
28 (41%) |
0 |
RIO DE JANEIRO | 17 (23%) |
14 (23%) |
31 (23%) |
0 |
SÃO PAULO | 15 (21%) |
18 (33%) |
33 (26%) |
1 |
Este trabalho segue uma linha de continuidade com pesquisas anteriormente executadas pelo ISER.77. Christina Vital da Cunha, Paulo Victor Leite Lopes e Janayna Lui, Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições 2014 (Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião, 2017); Christina Vital da Cunha e Paulo Victor Leite Lopes, Religião e Política: Uma Análise da Atuação de Parlamentares Evangélicos sobre Direitos das Mulheres e de LGBTs no Brasil (Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll; Instituto de Estudos da Religião, 2012); e Christina Vital da Cunha, “‘Televisão para Salvar’: Religião, Mídia e Democracia no Brasil Contemporâneo,” Revista Antropolítica no. 42 (1. sem. 2017): 199-235. Em todas elas foi possível observar narrativas e estratégias de líderes e políticos religiosos, em especial evangélicos, no Congresso Nacional. Uma refundação moral da sociedade a partir do fortalecimento de seu grupo religioso na política compunha um fio narrativo que emergia nas entrevistas e nas ações públicas dos atores acompanhados nessas investigações. A observação sobre os cruzamentos entre religiões, mídias e política não se baseava em abordagens que partiam do suposto de que a laicidade no Brasil estaria ameaçada ou de que ela nunca existiu. Não nos embasávamos tampouco em perspectivas sobre o que deveria ser a laicidade ou sobre o processo de secularização no país.
Como já indicavam outros estudos,88. Paula Montero, “Controvérsias Religiosas e Esfera Pública: Repensando as Religiões como Discurso,” Religião e Sociedade 32, no. 1 (2012): 167- 183; Paula Montero, “Religião, Pluralismo e Esfera Pública no Brasil,” Novos Estudos CEBRAP no. 74 (2006): 47-65; Emerson Giumbelli, “A Presença do Religioso no Espaço Público: Modalidades no Brasil,” Religião e Sociedade 28, no. 2 (2008): 80-101; e Regina Célia Reyes Novaes, “Juventude, Religião e Espaço Público: Exemplos ‘bons para pensar’ tempos e sinais,” Religião e Sociedade 32, no. 1 (2012): 167- 183. reconhecemos a importância social das religiões em diferentes âmbitos da vida social, suas contribuições para processos políticos históricos e como são formadoras da própria noção de laicidade no país.99. Eduardo Dullo, “Política Secular e Intolerância Religiosa na Disputa Eleitoral,” in Religiões e Controvérsias Públicas: Experiências, Práticas Sociais e Discursos, org. Paula Montero (São Paulo: Editora Terceiro Nome; Campinas: Editora da Unicamp, 2015): 27-48. Reconhecemos, igualmente, diferenças na atuação das religiões no espaço público, assim como a diversidade interna a cada uma das tradições. Isto é, temos identificado empiricamente variadas leituras doutrinárias com marcas distintas na atuação pública de religiosos na política.1010. Para ilustrar a diversidade de posicionamentos entre cristãos podemos observar o longo arco que divide a atuação dos deputados federais Flavinho e Eros Biondini, representantes católicos ligados aos carismáticos, e da organização Católicas pelo Direito de Decidir, por exemplo. Assim como, entre evangélicos, a atuação dos deputados federais Sóstenes Cavalcanti e Marcos Feliciano em oposição à deputada federal Benedita da Silva e grupos como Feministas Cristãs e Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Essa diversidade de posicionamentos ideológicos e comportamentos político-sociais não é nova. Ela acompanha o processo de estabelecimento das religiões no Brasil, e não só aqui. Contudo, dada a expressividade midiática de determinadas lideranças evangélicas de perfil mais histriônico,1111. Magali do Nascimento Cunha, “Religião e Política: Ressonâncias do Neoconservadorismo Evangélico nas Mídias Brasileiras,” Perseu: História, Memória e Política 11 (2015): 147-168; Magali do Nascimento Cunha, Do Púlpito às Mídias Sociais. Evangélicos na Política e Ativismo Digital, 1ª ed. (Curitiba: Prismas, 2017); e Ana Carolina Evangelista, “Mais que um Rebanho.” Revista Piauí, 2018, acesso em 20 de julho de 2019, https://piaui.folha.uol.com.br/mais-que-um-rebanho/; e Ana Carolina Evangelista, “Evangélicos sem Bancada.” Revista Piauí, 2018, acesso em 20 de julho de 2019, https://piaui.folha.uol.com.br/evangelicos-sem-bancada/. o todo é tomado pela parte fazendo parecer que domina entre evangélicos na política e na sociedade civil a presença daqueles mais extremistas.1212. Seguindo as pistas propostas por Lindgren Alves, consideramos extremistas comportamentos adotados por pastores midiáticos, que desfrutam de grande espaço em programas de rádio e TV ou são amplamente conhecidos por fazerem de sua intolerância religiosa meio de promoção própria e de suas igrejas; e por membros de igrejas conduzidas por esses pastores e que atuam diretamente na reprodução de suas práticas intolerantes a tudo que difere de sua leitura bíblica. “(...) o extremismo, em termos mais gerais, advogaria o uso de medidas radicais para alcançar objetivos políticos” (José Augusto Lindgren Alves, “Coexistência Cultural e ‘Guerras de Religião’”, Revista Brasileira e Ciências Sociais 25, n° 72 {2010}: 32).
Neste contexto, uma percepção muito negativa sobre a presença religiosa na sociedade vem crescendo, sobretudo entre elites intelectuais e econômicas. No entanto, devemos salientar que parte dos preconceitos em relação a evangélicos no país vem da percepção deles como os “outros” culturais. A hegemonia católica se revelava a partir de um modus operandi público da hierarquia da Igreja de Roma que privilegiava uma “acomodação social da diversidade” em uma “unidade” dominada socialmente por ela própria.1313. Sobre o modo público de legitimação de segmentos religiosos no Brasil ver Emerson Giumbelli, “A Presença do Religioso no Espaço Público: Modalidades no Brasil,” Religião e Sociedade 28, no. 2 (2008): 80-101. Estas mesmas elites contribuem de modo fundamental hoje para se pensar a religião como um problema a ser combatido. Sua retração para o espaço privado emergiria como solução. Deste modo, propaga-se a necessidade de a religião “voltar” ao seu lugar de crença, assumir o lugar privado que tomara no contexto moderno ocidental tal como denuncia Asad.1414. Talal Asad, “The Construction of Religion as an Anthropological Category,” in Genealogies of Religion. Discipline and Reasons of Power in Christianity and Islam (Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993). O protagonismo midiático de atores que operam a partir de uma conjugação muito específica entre a Teologia da Prosperidade e do Domínio,1515. A Teologia da Prosperidade tem como marca o incentivo à disciplina em diferentes âmbitos da vida, não só o financeiro. Sob essa perspectiva teológica, que abandona a “velha mensagem da cruz” que resigna ao sofrimento, o crente estaria destinado a ser próspero, saudável e feliz neste mundo. Com isso, em vez de rejeitar o mundo, os neopentecostais passaram a afirmá-lo. A busca pelas bênçãos divinas, por se “dar bem na vida”, passaria por uma rigorosa observação das regras bíblicas. Um dos principais sacrifícios que Deus exige de seus servos, segundo essa teologia, é de natureza financeira: ser fiel nos dízimos e dar generosas ofertas com alegria, amor e desprendimento. A Teologia do Domínio pode ser caracterizada pela ênfase nas batalhas espirituais contra demônios hereditários e territoriais e na quebra de maldições de família, concepções doutrinárias forjadas e popularizadas pelo Fuller Theological Seminary. Para saber mais ver Ricardo Mariano, Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil (São Paulo: Loyola, 1999); e Jacqueline Moraes Teixeira, A Mulher Universal: Corpo, Gênero e Pedagogia da Prosperidade, 1ª ed., v. 2 (Rio de Janeiro: Mar de Ideias, 2016), entre outros. assim como as disputas econômicas e políticas que ora emergem entre as grandes denominações, reforçam a militância desses grupos pelo afastamento da religião da vida pública.
Os problemas dessa posição refratária às religiões são muitos. O primeiro deles, como já apontamos, talvez seja o não reconhecimento da colaboração histórica de tradições religiosas na defesa da cidadania, dos direitos humanos, enfim, para a vida social e política no país. Em segundo lugar, destacaríamos o problema associado à percepção de uma unidade religiosa onde só há pluralidade. Isto é, os segmentos religiosos, mesmo aqueles cujas lideranças lhes apresentam a partir de um referencial doutrinário e litúrgico únicos, são diversos em si em termos não só doutrinários e litúrgicos como também políticos e mesmo morais. Em terceiro lugar, observamos como os dois problemas anteriores (a localização do mal nas religiões e a “unidade imaginária”) contribuem para o fortalecimento político de líderes religiosos e políticos próximos a eles que usam a religião para produzir uma cortina de fumaça que obscureça interesses econômicos e políticos, como a completa assimilação dos povos originários à “cultura cristã majoritária”,1616. Essa afirmação política de uma cultura cristã majoritária no Brasil foi mencionada em um documento expedido pelo MDH em comemoração ao dia 21 de janeiro de 2019 no qual se afirma o Combate à Intolerância Religiosa, desde 2007, por decreto presidencial. Acesso em Damares Alves e Sérgio Augusto de Queiroz, “Nota em Celebração ao Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.” Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 22 de janeiro de 2019, acesso em 20 de julho de 2019, https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2019/janeiro/nota-em-celebracao-ao-dia-nacional-de-combate-a-intolerancia-religiosa. a priorização de pautas do agronegócio sobre pautas de segurança alimentar, a manutenção das isenções tributárias sobre imóveis próprios de igrejas e a ampliação dessas e de outras isenções, o aumento da circulação legal de armas no país, entre outras.
Paralelamente à localização do mal nas religiões e, talvez, fruto desta radicalização ostensiva, líderes religiosos – alguns deles também políticos – apresentam-se como vítimas de perseguições variadas em razão de serem (alegadamente) guardiões de comportamentos morais que geravam segurança social. Trata-se, principalmente, da defesa de papeis tradicionais de gênero como fundamentais para a estruturação da vida social na modernidade. A retórica da perda pode ser considerada como uma tática discursiva articulada por diferentes lideranças sociais e políticas (dentre elas, religiosas) baseada em um imperativo: o retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança, da unidade.1717. Esta noção é explorada de modo mais extenso em Christina Vital da Cunha, “A ‘Invisibilidade Ativa’ das Religiões na Política: dos Subterrâneos à Centralidade Pública de Evangélicos no Brasil Contemporâneo” (prelo). O contexto de sua emergência seria o de fortalecimento do reconhecimento da diversidade no âmbito político1818. Regina Célia Reyes Novaes, “Em Nome da Diversidade. Notas sobre Novas Modulações nas Relações entre Religiosidade e Laicidade,” Comunicações do ISER no. 69, ano 33 (2014). e, ao mesmo tempo, uma crescente visibilidade de atores e discursos identificados como conservadores no sentido da moral que regula as noções de normalidade partilhadas em cada momento nas sociedades.1919. Petrônio Domingues, “Democracia e Autoritarismo: Entre o Racismo e o Antirracismo,” in Democracia em Risco? 22 Ensaios sobre o Brasil Hoje (São Paulo: Companhia das Letras, 2019); Ronaldo Almeida, “Deus Acima de Todos”, in Democracia em Risco? 22 Ensaios sobre o Brasil Hoje (São Paulo: Companhia das Letras, 2019); Daniel Aarão Reis, “As Armadilhas da Memória e a Reconstrução Democrática”, in Democracia em Risco? 22 Ensaios sobre o Brasil Hoje (São Paulo: Companhia das Letras, 2019); Heloisa Murgel Starling, “O Passado que Não Passou,” in Democracia em Risco? 22 Ensaios sobre o Brasil Hoje (São Paulo: Companhia das Letras, 2019); Guilherme Boulos, “A Onda Conservadora”, in A Onda Conservadora: Ensaios sobre os Atuais Tempos Sombrios no Brasil, orgs. Felipe Demier e Rejane Hoeveler (Rio de Janeiro: Mauad, 2016); e Felipe Demier, “A Revolta a Favor da Ordem: A Ofensiva da Oposição de Direita,” in A Onda Conservadora: Ensaios sobre os Atuais Tempos Sombrios no Brasil, orgs. Felipe Demier e Rejane Hoeveler (Rio de Janeiro: Mauad, 2016). A retórica da perda é uma narrativa fundada, portanto, em uma insegurança moral diante de mudanças sociais evidentes e que buscam reconhecimento.
Nas eleições de 2018 essa retórica da perda foi uma estratégia que se sobrepôs, inclusive, à confessionalização da política. Nesta pesquisa identificamos um número maior de candidaturas religiosas não confessionais. Ou seja, candidatos de grande identidade com seus núcleos religiosos, com uma base de apoio político entre os evangélicos, mas que se apresentavam e/ou fizeram seus registros de candidaturas a partir de suas identidades laborais: por exemplo, cantores, radialistas, militares, policiais, professores, digital influencers.
A maior parte das candidaturas evangélicas era de homens. Chama atenção na Bahia nenhuma mulher ter sido eleita deputada federal e que apenas no Rio de Janeiro o número de votos em mulheres para este mesmo cargo tenha sido próximo ao quantitativo de votos obtidos pelos homens. Considerando que o número de mulheres candidatas vitoriosas foi menor, poderíamos falar que, proporcionalmente, as mulheres tiveram mais êxito eleitoral no Rio de Janeiro do que os homens para a Câmara Federal.
Estados | Total de votos em mulheres eleitas para Dep. Est. | Total de votos em homens eleitos para Dep. Est. | Total de votos em mulheres eleitas para Dep. Fed. | Total de votos em homens eleitos para Dep. Fed. |
Bahia | 93.524 | 622.287 | 0 | 637.162 |
Minas Gerais | 220.118 | 867.685 | 85.663 | 1.333.733 |
Rio de Janeiro | 257.294 | 541.416 | 477.132 | 532.469 |
São Paulo | 272.043 | 1.031.519 | 1.541.271 | 3.417.221 |
Elas centraram suas candidaturas igualmente nessa retórica da perda: era preciso resgatar a segurança em suas diferentes dimensões. Isso não era contraditório à defesa que fizeram na campanha, e mesmo antes dela, do respeito à mulher, do combate à violência de gênero e da importância da mulher no mercado de trabalho. Interessante observar que nenhuma das eleitas se apresentava como “dona de casa”, figura mítica da retórica da perda em sua formulação mais patriarcal. Pelo contrário, posicionavam-se como “mulheres vitoriosas” (tomando aqui emprestado o termo que dá nome ao ministério conduzido por Elizete Malafaia, pastora e esposa do pastor Silas Malafaia), tais como profissionais da mídia e professoras. No entanto, a figura materna associada à mulher e ao seu sucesso era fortemente trabalhada.
Outra estratégia importante foi o recurso à base territorial. Inúmeros trabalhos apontam para o crescimento evangélico principalmente nas cidades e em suas periferias geográficas e sociais.2020. César Romero Jacob et al., “Território, Cidade e Religião no Brasil,” Religião e Sociedade 24, no. 2 (2004): 126-151; Christina Vital da Cunha, “Pentecostal Cultures in Urban Peripheries: A Socio-anthropological Analysis of Pentecostalism in Arts, Grammars, Crime and Morality,” Vibrant 15, no.1 (2018); Amanda Lacerda, André Brandão e Christina Vital da Cunha, “Mapeando Religião na Cidade: Reflexões sobre a Criação de Templos Religiosos na Cidade do Rio de Janeiro entre 2006 e 2016,” Revista Debates do NER (prelo); e Ronaldo Almeida, “Os Deuses do Parlamento,” Novos Estudos CEBRAP 36, fasc. 107 (jun. 2017): 71-79. No Rio de Janeiro, a região conhecida como Baixada Fluminense tem maioria evangélica declarada:2121. “Censo 2010,” IBGE, 2010, acesso em 23 de julho de 2019, https://censo2010.ibge.gov.br/. são 13 municípios, dos quais nove têm maioria evangélica. Aqueles com maior presença de evangélicos são: Seropédica (44%), Duque de Caxias (35%), Nova Iguaçu (36,94%) e Belford Roxo (37,13%). A grande presença de evangélicos no território se refletiu em um grande número de candidatos evangélicos vitoriosos vindos de toda a Baixada Fluminense, que, como nos lembra Decothé,2222. A íntegra de seu paper sobre a Baixada Fluminense e os evangélicos, produzido no âmbito da pesquisa que sustenta este artigo, está disponível em Marcelle Decothé, "Candidaturas Evangélicas na Baixada Fluminense nas Eleições 2018." Relatório “Candidaturas Evangélicas nas Eleições 2018: Mapeamento de Postulantes ao Poder Legislativo no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais,” 2019, acesso em 23 de julho de 2019, www.iser.org.br. conforma-se como um dos grandes propulsores da “renovação política” da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) – 51% dos deputados eleitos estão ali pela primeira vez (em âmbito nacional, a renovação da bancada carioca no Congresso Nacional foi de 65%). A base de candidatos evangélicos eleitos da Baixada Fluminense cresceu e já é a maior da história do Rio. Em 2018, 15 candidatos com base eleitoral na Baixada foram eleitos para as câmaras federal e estadual, um aumento de 36% se comparado com as últimas eleições de 2014.
O Rio de Janeiro tem 13% dos deputados de sua bancada no Congresso Nacional, formada por parlamentares evangélicos baixadenses, o mesmo percentual de ocupação na ALERJ. Nesta casa, o sentido de oportunidade política visando à organicidade e ao empoderamento do grupo, espelhado no que acontece em âmbito federal, resultou na formação da Frente Parlamentar Evangélica na ALERJ, cuja presidência ficou a cargo de Fábio Silva (DEM).
No universo evangélico analisado, as candidaturas eleitas tiveram três grandes pautas comuns que coincidem com os temas que também estiveram presentes na maior parte das candidaturas exitosas ao Executivo e ao Legislativo Brasil afora. Foram elas: agenda moral (com destaque para as questões que envolviam “ideologia de gênero” e defesa da família nuclear, chamada de “família tradicional”), segurança pública (sob a forma do “combate à violência” e de “manutenção da ordem”) e combate à corrupção (com forte cunho moral de limpeza/renovação da política, sem tocar, no mais das vezes, na fundamental presença das empresas de capital nacional e estrangeiro ou o sistema financeiro). Essas pautas vêm ganhando força no ativismo conservador, principalmente naquele de face religiosa, mas não exclusivamente nele.2323. Brenda Carranza e Christina Vital da Cunha, “Conservative Religious Activism in the Brazilian Congress: Sexual Agendas in Focus,” Social Compass 65, no. 4 (2018): 486-502; Ricardo Mariano, “Expansão e Ativismo Político de Grupos Evangélicos Conservadores, Secularização e Pluralismo em Debate,” Civitas: Revista de Ciências Sociais 16 (2016): 710-728; Maria das Dores Campos Machado, “Aborto e Ativismo Religioso nas Eleições de 2010,” Revista Brasileira de Ciência Política (Impresso) (2012): 25-54; e Almeida, “Deus Acima de Todos”, 2019. Durante as entrevistas realizadas com candidatos evangélicos de diferentes partidos tivemos a oportunidade de observar a colagem entre identidade evangélica e a afirmação de uma limpeza moral relativa a esta identidade que lhes gabaritava a portar o discurso do combate à corrupção. Como se houvesse uma linha de continuidade entre ser evangélico e práticas morais e de correção na conduta pública e privada.
“Ser evangélico pra mim é ser vida! Pra mim é tudo. Descobri um estilo de vida diferente. Meu evangelho não é o da TV. Evangelho é Jesus Cristo, o evangelho que estão pregando de ficar rico, se pegarmos a Bíblia quem tinha muito dinheiro e ficou pobre, cita Zaqueu e Pedro, hoje estão pregando evangelho diferente do que eu creio, o evangelho pra mim é transformação, não muda e transforma vida não é evangelho de verdade. Não adianta aceitar Jesus para ficar rico (ou ganhar as eleições). Eu vou pro monte orar toda quarta de manhã pra Deus me fortalecer porque eu preciso disso, eu acredito que o evangelho que está sendo pregado hoje não foi o que Deus me ensinou, o que muitos líderes religiosos fazem.” (Pastor, candidato entrevistado no Rio de Janeiro).
“Anunciar as boas novas, ‘coisas novas’, alguém que teve uma mudança radical em sua vida e pretende colaborar melhor com a família e a sociedade. Ser um homem de caráter, um homem justo, alguém que é regido pelas questões morais e espirituais. Ser um homem justo. É ser uma vida nova!” (Pastor, candidato entrevistado no Rio de Janeiro).
“Viver os valores do reino de Deus, justiça, paz, participação. Tornar a vida melhor.” (Candidato entrevistado no Rio de Janeiro).
Todos os entrevistados citaram o caso do ex-deputado federal Eduardo Cunha2424. Foi eleito deputado federal em 2002 com 101.495 votos e reeleito em 2006 e 2010. No ano de 2014, experimentou um significativo aumento no número de eleitores: com 232.708 votos, foi o quinto deputado federal mais votado. Eduardo Cunha teve destaque como articulador da oposição à presidente Dilma Rousseff, sendo o principal artífice do processo de seu impeachment na Câmara. No começo de setembro de 2016, Cunha teve seu mandato cassado por quebra de decoro parlamentar, após ser acusado de mentir à CPI da Petrobras. Encontra-se preso em decorrência de investigações da operação Lava-Jato. (MDB-RJ) para exemplificar aquele que se “diz evangélico”, mas, perante essa comunidade religiosa, é rotulado como um “não pertencente”. Um dos entrevistados destacou: “Os caras são tão sem vergonha, o que se dizia ser evangélico e descobrimos que não era. Logo se descobriu que aquele lá (Cunha) não é evangélico”.
No que diz respeito às candidaturas evangélicas oriundas da Baixada Fluminense, o combate ao crime violento foi uma bandeira tão ou mais importante do que a “agenda moral” na campanha dos vitoriosos. O contexto baixadense é sensível à questão da segurança pública há décadas, tendo os piores indicadores regionais.
“Segundo o mapa da violência de 2018,2525. “Atlas da Violência 2018,” Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), junho de 2018, acesso em 12 de abril de 2019, http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf. dos 10 municípios mais violentos do estado, 8 ficam na Baixada Fluminense; com destaque para Queimados, o município brasileiro que teve a maior taxa de mortes violentas em 2016. Foram 134,9 a cada 100 mil habitantes, segundo levantamento publicado pelo Atlas de 2018. […] A centralidade do debate sobre violência norteou grande parte das campanhas eleitorais desenvolvidas no território, desta forma conseguimos observar uma correlação entre os municípios mais violentos da Baixada e a expressividade de votos dos partidos que tiveram candidatos evangélicos se apropriando das pautas de segurança pública. Com destaque para o PSL e MDB, que conseguiram votação expressiva nos municípios com maiores taxas de homicídio da Baixada, elegendo, respectivamente, 3 deputados federais e 4 deputados estaduais evangélicos.”2626. Decothé, "Candidaturas Evangélicas na Baixada Fluminense...”, 2019, p. 5.
As candidaturas evangélicas identificadas estiveram presentes em todos os partidos com maior concentração de vitórias, entre PRB (20), PSL (07), PP (06) PSC (05) e DEM (05). A predominância de determinados partidos e denominações segue o que apontamos em pesquisas anteriores − PSC e PRB; Assembleias de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus. No entanto, PSC conseguiu eleger um número menor do que nas eleições de 2014, mas conquistou o Poder Executivo no Rio de Janeiro, estado estratégico no cenário político nacional, com Wilson Witzel. A novidade dessas eleições foi o PSL, que soube mobilizar suas candidaturas vitoriosas dentre youtubers, profissionais das forças de segurança pública e evangélicos.
As candidaturas evangélicas estavam presentes, portanto, em partidos de todos os espectros políticos, apesar de concentradas naqueles identificados com o campo da direita. Entre as candidaturas eleitas, essa concentração foi ainda maior. Dos 46 deputados federais eleitos pelo Rio de Janeiro para a Câmara Federal, 26% são evangélicos e somente um dos nomes é ligado a um partido de esquerda (PT).2727. Deputada Federal Benedita da Silva (PT). Para a ALERJ, o mesmo – somente uma candidatura evangélica em partido de esquerda (PSOL).2828. Deputada Estadual Mônica Francisco (PSOL). Em ambos os casos, mulheres, negras, evangélicas e de origem popular − as duas moravam em favelas e tinham nelas uma de suas principais bases eleitorais. Nosso histórico de pesquisa nos possibilita afirmar que os mandatos identificados como de esquerda ou progressistas obtêm mais êxito pela sua militância no movimento social do que entre seus “irmãos de fé”. Foram identificados pouquíssimos casos de novas candidaturas jovens, evangélicas, ligadas a partidos de centro-esquerda.2929. Alessandra Monteiro (REDE) e Caio Cunha (PV), já vereador em Mogi das Cruzes (SP). Já outras, de base já mais consolidada, de políticos com mandatos anteriores com pautas progressistas, tampouco se reelegeram.3030. Carlos Bezerra (PSDB), ex-deputado estadual, pastor da Igreja Comunidade da Graça e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos na ALES. Patrícia Bezerra (PSDB), vereadora em São Paulo e ex-Secretária de Direitos Humanos na prefeitura de São Paulo na gestão de João Dória.
As eleições de 2018 foram, de modo geral, surpreendentes, tendo sido marcadas pela prisão do primeiro colocado nas pesquisas de opinião, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seguida, meses depois, da vitória de Jair Bolsonaro, um candidato até então de nicho que foi catapultado à presidência por uma base conservadora de diferentes matizes com forte presença de uma vertente religiosa cristã – católica e evangélica e uma vertente de simpatizantes das Forças Armadas e de forças de segurança em geral. Evidentemente os votos que garantiram a vitória de Bolsonaro não vieram exclusivamente desses grupos religiosos cristãos, mas tiveram neles uma base importante e que partiu para o ativismo. As estratégias adotadas em sua campanha, dentre elas a retórica da perda, centrada na promessa de um retorno da ordem, do crescimento e da tradição familiar, foram ativadas por muitos dos candidatos investigados nesta pesquisa. A retórica da perda foi uma estratégia fundamental de ação que conectou evangélicos, católicos, operadores do direito, representantes da área de segurança pública entre si e com uma ampla base social que se sentia crescentemente ameaçada em sua capacidade de reprodução econômica, social, física e moral.
De modo geral, como salientamos anteriormente, os parlamentares evangélicos eleitos estão nos partidos identificados como de direita e ocupam, em sua maioria, cargos religiosos em suas igrejas. Além do pertencimento religioso institucionalizado, a maior parte dos eleitos são radialistas/apresentadores de programas de TV, empresários das comunicações, do setor agropecuário e imobiliário e advogados. Em torno de 15% dos integrantes da FPE são formados por profissionais da área de segurança pública e nacional tais como militares, delegados e policiais.
Comparando-se o pleito de 2018 com os anteriores, observamos a continuidade no aumento da oferta de candidaturas confessionais evangélicas. No entanto, entre 2010 e 2014, o aumento no percentual de candidaturas confessionais evangélicas foi de 40%. Entre 2014 e 2018 o aumento foi de pouco mais de 8%. Ainda assim, o número de parlamentares vitoriosos confessionais aparece em número muito menor do que as candidaturas evangélicas não confessionais. Nos quatro estados acompanhados na pesquisa, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais, foram 164 as candidaturas evangélicas. Destas, 70 eram candidaturas confessionais. Desse total de 164 candidatos e candidatas, 54 foram vitoriosos. Significa dizer os quatro estados da federação foram responsáveis pela eleição de 63,5% da FPE na Câmara Federal e 28,5% para o Senado.
Embora a agenda moral tenha sido um elemento importante na disputa, insuflada por candidatos interessados em mobilizar as bases religiosas no Brasil, a desaprovação de parlamentares evangélicos e da população em relação à gestão presidencial é crescente, sinalizando, o que é notável em diferentes estudos, que o discurso moral não sustenta a adesão da população. Para a manutenção de apoio é preciso que as pessoas sintam melhorias em seu dia a dia e esta é uma verdade para o público em geral e não somente entre religiosos. As principais demandas populares – o combate ao desemprego e a garantia de mais segurança nas cidades e no campo – não são sequer mencionadas na cobertura midiática da presidência, ampliando a sensação pública de desamparo e insatisfação.