Sur 27 – Carta às leitoras e aos leitores

Oliver Hudson & Maryuri Mora Grisales

Editores da Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos

Mariana Valente e Natália Neris

Editoras convidadas – Internet Lab

Fábio Balestro

Editor Convidado – Friedrich Ebert Foundation

Dossiê Sur sobre internet e democracia

As taxas de penetração da internet continuam a crescer ano após ano, com aproximadamente 54,4% da população mundial on-line no final de 2017. Comparado ao ano 2000, quando apenas 5,4% de nós estávamos on-line, isso representa um crescimento impressionante de mais de 1000% em pouco mais de oito anos.11. Veja “Internet Usage Statistics - The Internet Big Picture,” Internet World Stats, 2018, acesso em 21 de julho de 2018, https://www.internetworldstats.com/stats.htm; e “Internet Growth Statistics,” Internet World Stats, 2018, acesso em 21 de julho de 2018, https://www.internetworldstats.com/emarketing.htm. 2018 é um importante ano eleitoral – com eleições ocorrendo em diversos países do mundo, incluindo Brasil, Colômbia, Costa Rica, Egito, México, Rússia e Turquia. Embora a maioria de nós reconheçamos que a internet está, de fato, tendo um impacto sobre a democracia, talvez seja mais difícil articular como isso está ocorrendo exatamente. As contribuições para a edição da Sur sobre internet e democracia cumprem exatamente esse papel, revelando as várias maneiras pelas quais a rede está se embrenhando no processo democrático em todo o mundo. A mensagem principal que aparece em todos artigos é que os formuladores de políticas – tanto na esfera pública quanto na privada – estão ficando para trás e isso precisa ser resolvido urgentemente para garantir que aproveitemos os elementos positivos da internet e limitemos os negativos.

Domando a fera

Abrindo esta edição da Sur, Renata Ávila (Guatemala) argumenta que, antes de examinarmos questões sobre privacidade e segurança, precisamos dar um passo atrás para termos uma visão mais macro e reconhecer que estamos correndo o risco de entrar em uma nova era colonial, a era do colonialismo digital. Os países do Sul Global são, em particular, cada vez mais reféns de um pequeno grupo de países e empresas que detêm a maior parte do conhecimento tecnológico. Para evitar que isso aconteça, Ávila pede que sejam tomadas medidas urgentes em âmbito nacional, regional e internacional para garantir que os países menos poderosos mantenham sua soberania digital.

Ao repercutir a necessidade de ações urgentes em diferentes níveis, Ted Piccone (EUA) enfoca como os governos e o setor privado estão lutando para acompanhar a tecnologia digital, especificamente em relação às eleições livres e justas, aos direitos humanos e à governança da internet. O autor oferece um conjunto concreto de recomendações de políticas, incluindo pontos de ação para a sociedade civil, que considera imperativas para usufruir os benefícios da tecnologia.

Anita Gurumurthy e Deepti Bharthur (Índia) analisam como o mau uso de algoritmos por atores públicos e privados estão ameaçando o processo democrático – tanto durante as eleições, quanto de modo mais rotineiro, mas não menos preocupante, no dia a dia do funcionamento do governo. As autoras argumentam que isso tem um impacto desastroso nos direitos dos cidadãos, por exemplo, de acesso às provisões de bem-estar social. Ao reconhecer também que há muito a se ganhar com os algoritmos no contexto da democracia, elas instam a revisão urgente das políticas corporativas e públicas para garantir o uso apropriado de algoritmos.

Neutralidade da rede

Jonathan Perri (EUA), do site de petições Change.org, oferece uma reflexão institucional sobre a campanha da organização pela neutralidade da rede. Essa campanha marcou a primeira vez na qual o site fez sua própria petição, refletindo a importância da questão tanto para o site quanto para a participação cidadã como um todo. O autor explica como o site de petições usou sua marca bem conhecida para construir uma grande mobilização de apoiadores a favor da neutralidade da rede e como eles ainda estão trabalhando para pressionar a Comissão Federal de Comunicações dos EUA a reverter sua decisão.

O futuro da neutralidade da rede não está claro. Oferecendo alguma esperança sobre o assunto, David Kaye (EUA) – relator especial das Nações Unidas sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão – explica em uma entrevista à Revista Sur como a neutralidade da rede é um componente fundamental da democracia. Ela garante o acesso à informação, um ponto central para as liberdades de opinião e expressão, que, por sua vez, são fundamentais para uma democracia em funcionamento. Kaye também aborda a questão das notícias falsas (fake news) e vê a solução como algo que precisa passar tanto pelo aumento da alfabetização midiática e apoio ao jornalismo independente quanto pelo Legislativo, o que pode dar margem a violações por parte de governos repressivos que usam a questão como um disfarce para a repressão à liberdade de expressão.

Mídia (anti)social

Para Marcio Moretto Ribeiro e Pablo Ortellado, as fake news são um conceito em disputa e, de alguma maneira, insuficiente para nomear o atual e complexo fenômeno que envolve diversas tecnologias de desinformação e uma crescente polarização da esfera pública. Através da análise do comportamento das mídias sociais durante a votação do julgamento do ex-presidente Lula em janeiro de 2018, os autores mostram a emergência de uma mídia hiperpartidária que produz informação de combate e extrema polarização, transformando o debate político no Brasil em um limitado embate entre duas narrativas.

Ao avaliar se as mídias sociais são boas ou ruins para a democracia, Cass Sunstein (EUA) encara a polarização de grupos como cerne da questão. Cada vez mais, as plataformas de mídia social buscam oferecer aos usuários o conteúdo que lhes seja mais relevante, o que, segundo as evidências, simplesmente resulta na polarização das opiniões dos usuários. Além disso, Cass argumenta que tal abordagem nos priva dos princípios-chave da autonomia, incluindo a exposição ao conteúdo que não esperávamos e a capacidade de diferenciar fatos da ficção. O autor solicita que os gigantes das mídias sociais parem de seguir esse caminho e nos libertem de nossas câmaras de eco.

Embora a questão da desinformação e propaganda seja um problema há vários anos, Lucy Purdon (Reino Unido) argumenta que ela só atraiu a atenção mundial após as eleições de 2016 nos EUA e o referendo sobre o Brexit no Reino Unido. Lucy destaca, por exemplo, como o conteúdo inflamado das mídias sociais alimentou a violência durante as eleições quenianas de 2013, ainda que a questão tenha recebido pouca ou nenhuma atenção da imprensa. Além disso, a autora explica como as empresas de consultoria política do Norte Global também estão interferindo nas eleições quenianas (em grande parte sem atenção pública, em comparação com seu papel cada vez mais aparente no Norte). Seu empenho em coletar dados de mídias sociais dos usuários em um país que não possui regulações suficientes de proteção de dados é particularmente preocupante. A base de dados que essas empresas conseguem extrair do conjunto total de dados se amplia quando o cadastro biométrico eleitoral é introduzido sem qualquer estrutura adequada sobre como esses dados são gerenciados.

Participação

O texto de Mariana Valente e Natália Neris (Brasil) discute a paradoxal trajetória da relação feminismo e internet. Mudanças tanto nos feminismos, quanto no alcance e avanço da internet, têm potencializado novas formas de ativismo e articulação para as mulheres, mas suscitado, como resposta, novas maneiras de violência misógina. O Facebook, na semana internacional da mulher no Brasil, serviu de plataforma para as autoras analisarem a polarização da esfera pública brasileira entre discursos de ódio contra as mulheres e um forte contradiscurso feminista. Feminizar a internet é uma tarefa com enormes desafios para a agenda feminista atual em um contexto de concentração de atividade on-line e pouca segurança digital.

Reem Al Masri (Jordânia) descreve como o serviço de transmissão ao vivo do Facebook é importante para ativistas na Jordânia, dado que o Estado torna quase impossível a livre manifestação. No entanto, isso impõe simultaneamente um dilema para os ativistas, já que muitos prefeririam seguir os apelos internacionais para deixar a plataforma, após o escândalo da Cambridge Analytica. Entretanto, esse serviço do Facebook ainda parece ser a única saída realista para os protestos no país.

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Ensaios

Ao abordar a violência do Estado no Brasil, um grupo de pesquisadores, junto ao Movimento Independente Mães de Maio, apresenta os resultados de uma pesquisa que visa esclarecer os crimes de maio de 2006 na Baixada Santista, em São Paulo. O artigo evidencia violações de direitos relatadas pelos familiares das vítimas, apontando para uma sistemática violência operada pelo Estado ao negligenciar as investigações, arquivar os casos, negar o acesso das famílias à informação e tentar, inclusive, criminalizar as vítimas para evitar julgar os responsáveis. Justiça, memória e reparação são o foco deste artigo que visibiliza a luta das famílias que durante anos têm lidado com a impunidade e a negação de direitos por parte do Estado.

Nathália Oliveira e Lucia Sestokas (Brasil), apoiadas em trabalho desenvolvido pelo ITTC no Brasil, discutem o impacto das políticas de drogas aplicadas em distintos países nos processos de encarceramento. Diante do aumento da população carcerária feminina no Brasil e sua relação com uma fracassada política de drogas nacional, elas chamam a atenção para a necessidade de avaliar a interseção entre política de drogas, sistema judicial e especificidades de gênero, de modo a diminuir as desigualdades e garantir direitos às mulheres.

Entrevistas

Em entrevista à Revista Sur, Juan Pablo Bohoslavsky (Argentina) – especialista independente das Nações Unidas sobre os efeitos da dívida externa e outras obrigações financeiras internacionais dos Estados sobre o gozo pleno de todos os direitos humanos, particularmente direitos econômicos, sociais e culturais – explicou por que é importante que os Estados realizem uma avaliação de impacto sobre os direitos humanos ao conduzir políticas de reforma econômica. Dado que os governos estão implementando medidas de austeridade em ritmo alarmante, há uma urgência especial para que essa avaliação de impacto garanta que os direitos dos mais vulneráveis sejam levados em conta.

Fotografias

Ao reconhecer que um dos desafios que o movimento de direitos humanos enfrenta atualmente é como ele se comunica com diferentes públicos, muitas vezes mais críticos, a Revista Sur está empenhada em apresentar formas novas e criativas de diálogo. Temos, então, o prazer de incluir fotografias do trabalho de oito artistas que competiram pelo Prêmio de Artes em Direitos Humanos de Hong Kong 2017, promovido pelo Justice Centre Hong Kong.

Vozes

Por meio de uma publicação póstuma, e como maneira de reconhecer e homenagear uma incansável lutadora de direitos humanos no Brasil, temos o privilégio de apresentar um texto de Marielle Franco (Brasil). Trata-se de uma comunicação oral feita em 2017, com dados da sua pesquisa de mestrado, na qual Marielle critica fortemente as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que, na prática, só aumentaram a militarização da cidade e, em decorrência, a criminalização e a violência nas favelas do Rio de Janeiro, cujas principais vítimas são jovens negros.

O escândalo da Oxfam foi um momento decisivo para o campo das ONGs. Em seu artigo para a Sur, Deborah Doane (Reino Unido) argumenta que o setor tem duas opções – continuar sem mudanças ou encarar os escândalos como uma oportunidade para transformar o setor e seus sistemas existentes. A autora urge as organizações do Sul Global a desempenharem um papel central nessa reorganização para assegurar que as antigas configurações de poder sejam abordadas.

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Conectas gostaria de enfatizar que esta edição da Revista Sur foi viabilizada com o apoio da Channel Foundation, da Fundação Ford, da Friedrich Ebert Foundation, da Open Society Foundations, da Oak Foundation, do Sigrid Rausing Trust, do International Development Research Center (IDRC) e da Swedish International Development Cooperation Agency (SIDA), bem como de alguns doadores anônimos.

Também somos extremamente gratos às seguintes pessoas por terem ajudado nesta edição: Adriana Guimarães, Amanda Fazano, André Degenszajn, Beatriz Kira, Celina Lagrutta, Dennys Antonialli, Evandro Lisboa Freire, Fernanda Fogaça Dourado, Fernando Campos Leza, Fernando Sciré, Francisco Cruz, Jacqueline de Souza Abreu, Julia Lima, Karen Lang, Lilian Cintra de Melo, Pedro Maia Soares, Renato Barreto, Sebastián Porrúa Schiess, Sil Bahia, Thiago Amparo, Thiago Dias Oliva e Vivian Calderoni. Além disso, agradecemos especialmente a colaboração dos autores e o trabalho árduo da equipe editorial e do conselho executivo da Revista.

Como sempre, os integrantes da equipe de comunicação da Conectas merecem enorme crédito por sua dedicação a esta edição.