Dossiê Sur sobre Internet e Democracia

Democracia e tecnologia digital

Ted Piccone

Os desafios singulares que a tecnologia digital representa para os governos democráticos e como estes governos, junto com a sociedade civil, precisam reagir

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RESUMO

Os governos democráticos estão enfrentando desafios singulares para maximizar o lado positivo da tecnologia digital ao mesmo tempo em que minimizam suas ameaças às sociedades mais abertas. Proteger eleições justas, direitos fundamentais on-line e enfoque da governança da internet que envolva múltiplos atores são três prioridades inter-relacionadas essenciais para defender democracias fortes em uma era de insegurança crescente, aumento de restrições e competição geopolítica.

Os desafios crescentes que as democracias enfrentam ao administrar as dimensões complexas da tecnologia digital tornaram-se uma questão definidora para as políticas externas e internas, com implicações diretas para os direitos humanos e a saúde democrática das nações. A digitalização progressiva de quase todas as facetas da sociedade e a natureza transnacional inerente da internet suscitam uma série de problemas difíceis quando as informações públicas e privadas on-line são submetidas a manipulação, invasão e roubo.

Este artigo aborda a tecnologia digital em sua relação com três subtemas distintos, mas inter-relacionados: eleições livres e justas, direitos humanos e governança da internet. Nessas três áreas, os governos e o setor privado estão batalhando para acompanhar os aspectos positivos e negativos da difusão rápida da tecnologia digital. Para enfrentar esses desafios, os governos e legisladores democráticos, em parceria com a sociedade civil e as empresas de mídia e de tecnologia, deveriam urgentemente abrir o caminho para criar e instaurar regras e melhores práticas a fim de proteger processos eleitorais justos e livres da manipulação externa, defender os direitos humanos on-line e proteger a governança da internet de abordagens restritivas e de mínimo denominador comum. O artigo conclui com a exposição de como deveriam ser algumas dessas regras e melhores práticas.

Palavras-Chave

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1. O que a evidência nos diz

a. Eleições livres e justas

Os ataques cibernéticos promovidos por governos autoritários e atores não estatais representam uma ameaça clara e crescente às democracias em todo o mundo devido à interferência que promovem em eleições livres e justas. Esses ataques assumem muitas formas e podem minar e desestabilizar de várias maneiras os processos democráticos e a governança.

Há pelo menos quatro maneiras pelas quais os ataques cibernéticos podem influenciar as eleições: (1) manipular fatos e opiniões que instruem o voto dos cidadãos, por exemplo, através de relatos falsos da mídia social, bots e propaganda; (2) interferir no ato de votar (por exemplo, adulterar listas de registro eleitoral); (3) alterar os resultados da votação; e (4) minar a confiança na integridade da votação.11. Jakob Bund, Cybersecurity and Democracy – Hacking, Leaking and Voting (Paris: European Union Institute for Security Studies, 2016): 3. Essas ameaças partiram de países como a Rússia e a China e, nos últimos anos, tiveram por alvo nações do Ocidente democrático. Por exemplo, o Serviço Geral de Inteligência e Segurança da Holanda apontou especificamente a Rússia, a China e o Irã como ameaças à segurança nacional devido a ataques cibernéticos.22. Kingdom of the Netherlands, Ministry of the Interior and Kingdom Relations, General Intelligence and Security Service, Annual Report 2015: A Range of Threats to the Netherlands (Zoetmeer: General Intelligence and Security Service, 2016). O Birô Federal de Investigação (FBI, na sigla em inglês) e o Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês) dos Estados Unidos divulgaram várias declarações em 2016 que detalhavam as conexões da Rússia a recentes ataques e vazamentos com a intenção de influenciar as eleições dos EUA.33. “GRIZZLY STEPPE - Russian Malicious Cyber Activity,” U.S. Department of Homeland Security (DHS) and Federal Bureau of Investigation (FBI), 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.us-cert.gov/sites/default/files/publications/JAR_16-20296A_GRIZZLY%20STEPPE-2016-1229.pdf. Mais recentemente, o Comitê de Inteligência do Senado concluiu que os ataques cibernéticos de fontes do governo russo obtiveram acesso a elementos restritos da infraestrutura eleitoral. “Russian Targeting of Election Infrastructure During the 2016 Election: Summary of Initial Findings and Recommendations,” Richard Burr, 8 de maio de 2018, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.burr.senate.gov/imo/media/doc/RussRptInstlmt1-%20ElecSec%20Findings,Recs2.pdf. Em maio de 2017, o presidente francês Emmanuel Macron acusou a mídia oficial russa de disseminar propaganda enganosa e notícias falsas com a intenção de influenciar os resultados eleitorais em favor de seu oponente.44. Michel Rose e Denis Dyomkin, “After Talks, France’s Macron Hits out at Russian Media, Putin Denies Hacking.” Reuters, 28 de maio de 2017, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.reuters.com/article/us-france-russia-idUSKBN18P030.

Ataques semelhantes estão se tornando cada vez mais frequentes, com mais hackings de instituições públicas e empresas privadas, como a interrupção das comunicações pela internet na câmara baixa do parlamento alemão e a disseminação de campanhas de desinformação e notícias falsas antes do referendo constitucional italiano e da eleição presidencial dos EUA.55. Melissa Eddy, "After a Cyberattack, Germany Fears Election Disruption." The New York Times, 8 de dezembro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.nytimes.com/2016/12/08/world/europe/germany-russia-hacking.html; Anne Applebaum, “The Dutch Just Showed the World How Russia Influences Western European Elections.” The Washington Post, 8 de abril de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.washingtonpost.com/opinions/russias-influence-in-western-elections/2016/04/08/b427602a-fcf1-11e5-886f-a037dba38301_story.html?utm_term=.79384727c9c9; Jason Horowitz, "Spread of Fake News Provokes Anxiety in Italy." The New York Times, 2 de dezembro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.nytimes.com/2016/12/02/world/europe/italy-fake-news.html. Os ataques cibernéticos constituem ameaças tanto diretas quanto indiretas à integridade do processo democrático, pois são frequentemente motivados pela intenção de minar o apoio popular às democracias, sua legitimidade e seu poder brando.66. Jakob Bund, “Cybersecurity and Democracy - Hacking, leaking and voting.” EUISS, novembro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.iss.europa.eu/sites/default/files/EUISSFiles/Brief_30_Cyber.pdf; Melissa Eddy, "After a Cyberattack, Germany Fears Election Disruption." The New York Times, 8 de dezembro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.nytimes.com/2016/12/08/world/europe/germany-russia-hacking.html.

A manipulação de fontes de informação para o discurso político e a tomada de decisões é particularmente insidiosa e difícil de combater. As características próprias das formas contemporâneas de propaganda russa, que podem apresentar conteúdos polarizadores transmitidos rapidamente através da mídia tanto social como tradicional, de modo contínuo e repetido, com pouco compromisso com a realidade objetiva ou consistência, são difíceis de serem contestadas pela mídia independente e pelos governos, para não falar dos cidadãos.77. Christopher Paul e Miriam Matthews, The Russian ‘Firehose of Falsehood’ Propaganda Model (Arlington: Rand Corporation, 2016): 4, acesso em 4 de junho de 2018, http://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/perspectives/PE100/PE198/RAND_PE198.pdf. Atores não estatais da direita e da esquerda radicais e aqueles envolvidos no terrorismo também estão explorando a natureza aberta da internet para múltiplos propósitos, inclusive influenciar a opinião pública antes e durante eleições.88. Alice Marwick e Rebecca Lewis, Media Manipulation and Disinformation Online (New York: Data & Society Research Institute, 2017): 19, acesso em 4 de junho de 2018, https://datasociety.net/output/media-manipulation-and-disinfo-online/.

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b. Direitos humanos on-line

A internet pode servir de ferramenta tanto para proteger como para violar os direitos humanos, com implicações diretas na segurança física e cibernética dos indivíduos. A difusão da tecnologia digital expandiu enormemente as oportunidades dos cidadãos de exercer seus direitos à liberdade de expressão e associação, de participar da vida cívica e de responsabilizar as autoridades públicas, ingredientes essenciais para a realização de eleições livres e justas. Os recentes avanços tecnológicos também ajudaram a lançar luz sobre as violações dos direitos humanos cometidas em todo o mundo. Grupos de vítimas utilizam agora diversos meios (postagens, transmissões ao vivo, financiamento coletivo) para divulgar vídeos e fotos de violações no YouTube e em outras plataformas, na esperança de que possam ser usados como prova em processos de responsabilização. Investigadores de direitos humanos usaram imagens de satélite para denunciar abusos nas prisões políticas norte-coreanas, limpeza étnica em Mianmar e potenciais valas comuns no Burundi que, de outra forma, talvez não fossem descobertas.99. Christoph Koettl, “These Images Don’t Lie: Exposing North Korea’s Dirty Little Secret.” Amnesty International, 5 de dezembro de 2013, acesso em 4 de junho de 2018, http://blog.amnestyusa.org/asia/these-images-dont-lie-exposing-north-koreas-dirty-little-secret/; "Burundi: Satellite Evidence Supports Witness Accounts of Mass Graves," Amnesty International, 28 de janeiro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.amnesty.org/en/latest/news/2016/01/burundi-satellite-evidence-supports-witness-accounts-of-mass-graves/; “Burma: 40 Rohingya Villages Burned Since October,” Human Rights Watch, 17 de dezembro de 2017, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.hrw.org/news/2017/12/17/burma-40-rohingya-villages-burned-october.

Em anos recentes, no entanto, tem havido também uma deterioração contínua dos direitos humanos on-line, apesar das declarações inequívocas da Assembleia Geral das Nações Unidas e do Conselho de Direitos Humanos de que os direitos off-line definidos pela lei internacional de direitos humanos também são protegidos on-line.1010. David Kaye, “Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expression.” Assembleia Geral das Nações Unidas, A/71/373, 6 de setembro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Session29/Documents/A.HRC.29.32_AEV.doc; “Silencing the Messenger: Communication Apps Under Pressure. Freedom on the Net Report 2016,” Freedom House, novembro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://freedomhouse.org/report/freedom-net/freedom-net-2016; Antonio Segura-Serrano, "Internet Regulation and the Role of International Law," Max Planck Yearbook of United Nations Law 10 (2006): 191-272. O direito internacional garante essencialmente os mesmos direitos à privacidade e segurança dos dados on-line de uma pessoa de que gozam os arquivos na casa dela. Por exemplo, a vigilância em massa na internet, praticada até mesmo em democracias estabelecidas, é uma violação direta da segurança dos dados pessoais de um indivíduo, e o mesmo se pode dizer de uma legislação vaga com significativa autoridade discricionária para monitorar a vida digital de uma pessoa.1111. David Kaye, “Report of the Special Rapporteur,” 2016. Provedores de serviços de internet e companhias de telecomunicações estão ficando drasticamente atrasadas na oferta aos consumidores de produtos de hardware e software que os protejam adequadamente contra uma infinidade de ataques cibernéticos.1212. Toomas Hendrik Ilves, “A Plan for Making the Cyber World Safe.” World Economic Forum, p. 2, 20 de setembro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.weforum.org/agenda/2016/09/making-the-cyber-world-safe-will-require-more-collaboration-than-ever-before/. O aumento da disponibilidade no comércio lícito e ilícito de sofisticadas armas cibernéticas e ferramentas de vigilância está facilitando esses tipos de ataques, como se viu nos ataques mundiais de pedidos de resgate “WannaCry” de hackers em 2017.1313. WannaCry é o nome de um prolífico ataque de hackers conhecido como “ransomware” que mantém reféns os dados de um computador até que se pague um resgate. Ian Sherr, “WannaCry Ransomware: Everything You Need to Know.” C|net, 19 de maio de 2017, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.cnet.com/news/wannacry-wannacrypt-uiwix-ransomware-everything-you-need-to-know/.

A exploração maliciosa da tecnologia também pode afetar a segurança física de indivíduos e Estados. Para começar, o aumento da digitalização das duas últimas décadas criou um “efeito inibidor” sobre a liberdade de expressão: cidadãos de certos países sentem-se menos seguros para afirmar suas opiniões, sabendo que seus dados pessoais são monitorados ou arquivados.1414. Eileen Donahoe, "Human Rights in the Digital Age." Just Security, p. 1, 23 de dezembro de 2014, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.justsecurity.org/18651/human-rights-digital-age/. Através do rastreamento de localização, da mídia social e paralisações da internet, os problemas de segurança on-line também se tornam físicos, permitindo que oponentes da democracia e dos direitos humanos ameacem a segurança física de seus supostos alvos.

As paralisações e outras restrições da internet efetuadas por governos para suas populações são generalizadas, com mais de sessenta desligamentos documentados nos primeiros nove meses de 2017,1515. Entre os países que fizeram isso estão Bangladesh, Brasil, Burundi, Tajiquistão, Índia, Etiópia, Argélia, Congo, Paquistão, Síria e Iraque. “#KeepItOn,” Access Now, 2017, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.accessnow.org/keepiton/. justificados por “segurança nacional” ou “ordem pública”.1616. David Kaye, “Report of the Special Rapporteur,” 2016; Darrell M. West, “Internet Shutdowns Cost Countries $2.4 Billion Last Year.” Center for Technology Innovation at Brookings, outubro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.brookings.edu/wp-content/uploads/2016/10/intenet-shutdowns-v-3.pdf. Esses apagões digitais são particularmente perigosos para os direitos humanos. Em 2016, por exemplo, após o bombardeio do aeroporto de Istambul e a detenção de onze legisladores pró-curdos, o governo turco cortou o acesso a sites de mídia social e serviços de mensagens como Facebook, WhatsApp e Twitter para bloquear a circulação de notícias ou fotografias relacionadas a esses eventos.1717. Yasmeen Abutaleb e Can Sezer, "Turkey Appears to Be in Vanguard of ’Throttling’ Social Media after Attacks." Reuters, 6 de julho de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, http://www.reuters.com/article/us-mideast-crisis-socialmedia-idUSKCN0ZM2O3; Can Sezer e Humeyra Pamuk, "Turkey Blocks Access to Twitter, WhatsApp: Internet Monitoring Group." Reuters, 2016, acesso em 4 de junho de 2018, http://www.reuters.com/article/us-turkey-security-internet-idUSKBN12Z0H4. Essas paralisações não restauraram a ordem, mas violaram os direitos básicos e provocaram medo e confusão entre os cidadãos.

As paralisações da internet não só prejudicam a governança democrática através da supressão da liberdade de expressão e das funções normais do governo, como também podem causar pânico e elevar as preocupações de saúde pública.1818. "POLICY BRIEF: Internet Governance and the Future of the NetMundial Initiative," Access Now, 2015, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.accessnow.org/cms/assets/uploads/archive/docs/POLICYBRIEFInternetGovernanceandtheFutureoftheNetMundialInitiative.pdf; David Kaye, “Report of the Special Rapporteur,” 2016. Essas violações também prejudicam o sistema internacional baseado em regras para a governança da internet e estimulam a competição estatal para instaurar códigos legais intrusivos e capacidades cibernéticas ofensivas. Por fim, é importante ressaltar que a deterioração dos direitos on-line não é apenas uma tática de regimes autoritários, mas também de governos democráticos. A falta de mecanismos efetivos de regulamentação ou supervisão do papel das empresas privadas na proteção dos dados dos cidadãos é outro elemento do dilema.

Apesar dessas ameaças cibernéticas aos direitos humanos, alguns países estão na vanguarda da adoção de leis e códigos de conduta para proteger os direitos on-line de seus cidadãos. No Brasil, o Marco Civil da Internet (lei 12.965 de 2014) “garante o direito à liberdade de expressão, protege a privacidade dos usuários, exclui a responsabilidade pelo conteúdo da web gerado por terceiros e preserva a neutralidade da Internet”.1919. Carl Meacham, "Is Brazil a Global Leader in Internet Governance?" Center for Strategic and International Studies, 15 de maio de 2014, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.csis.org/analysis/brazil-global-leader-internet-governance. Porém, é preciso mais trabalho para fortalecer as leis de proteção de dados no Brasil conforme os novos regulamentos adotados pela União Europeia. Também em 2014 foi estabelecida a Agenda para a Liberdade On-line de Tallinn, na qual os membros da Freedom Online Coalition, que inclui países como Canadá, Gana e Holanda, prometeram promover os direitos humanos on-line e se comprometeram com a transparência do uso pelo governo dos dados do cidadão, bem como protegê-los. O respeito por esses princípios, inclusive de Estados signatários como o México e o Quênia, é, no entanto, um desafio permanente. O Conselho da Europa aprovou uma promissora Estratégia de Governança da Internet para 2016-19 que destaca a construção da democracia on-line, a proteção dos direitos humanos e a garantia de segurança e proteção on-line.2020. "Internet Governance – Council of Europe Strategy 2016-2019,” Council of Europe, 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://edoc.coe.int/en/internet/7128-internet-governance-council-of-europe-strategy-2016-2019.html. Essas leis, estratégias e coalizões representam avanços promissores para os direitos humanos e, embora não sejam isentas de problemas, são passos na direção certa.

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c. Governança da internet

A governança da internet desempenha um papel crucial na proteção dos direitos humanos e na manutenção de democracias saudáveis em todo o mundo. A internet foi fundada com base nos princípios de auto-organização descentralizada e fluxo de informações transnacional e é dirigida principalmente por atores privados na forma de uma rede de redes. No entanto, a crescente regulamentação da internet por parte de Estados-nação e a fragmentação causada por fronteiras jurisdicionais e territoriais ameaçam cada vez mais esses princípios. Se o acesso à internet de um país é restringido, por exemplo, isso interfere no acesso do resto do mundo. Mais de quarenta governos, entre eles, os da China e da Rússia, promulgaram restrições a informação, dados e conhecimento na internet.2121. John D. Negroponte, Samuel J. Palmisano, e Adam Segal, Defending an Open, Global, Secure, and Resilient Internet (New York: Council on Foreign Relations, 2013): 13, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.cfr.org/report/defending-open-global-secure-and-resilient-internet. De acordo com o estudo Freedom on the Net, realizado em 2017 pela Freedom House, menos de 25% dos usuários da internet residem em países “livres”, onde não há grandes obstáculos ao acesso ou restrições sobre o conteúdo.2222. “Manipulating Social Media to Undermine Democracy,” Freedom House, 2017, acesso em 4 de junho de 2018, https://freedomhouse.org/report/freedom-net/freedom-net-2017.

A expressão “governança da internet” refere-se também aos protocolos internacionais que governam a interoperabilidade global da internet. O debate em andamento sobre os modelos de governança da internet está centrado no desejo dos EUA de continuar com o enfoque que leva em conta os múltiplos atores da internet, no qual os setores privado, social e governamental estão incluídos no modelo de governança.2323. Harold Trinkunas e Ian Wallace, "Converging on the Future of Global Internet Governance: The United States and Brazil." Foreign Policy at Brookings, julho de 2015, acesso em 4 de junho de 2018, p. 26, https://www.brookings.edu/research/converging-on-the-future-of-global-internet-governance-the-united-states-and-brazil/. Como o local de grande parte do crescimento e da inovação da internet foram os Estados Unidos, este país teve uma influência significativa sobre sua autoridade governante, a Corporação Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN); isso levou outros países a questionar se o enfoque de múltiplos atores é excessivamente tendencioso, dando vantagem ao governo e ao setor privado americanos.2424. Ibid.

Em setembro de 2016, com o objetivo de responder a essas preocupações e no espírito de preservar uma internet aberta, o governo Obama decidiu não renovar o contrato dos EUA com a ICANN, abrindo mão de sua influência predominante e tornando a ICANN independente.2525. Megan Stifel, “Maintaining U.S. Leadership on Internet Governance.” Council on Foreign Relations, 21 de fevereiro de 2017, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.cfr.org/report/maintaining-us-leadership-internet-governance. Não obstante, países como Rússia, Índia e China ainda criticam o modelo de múltiplos atores e defendem um enfoque multilateral centrado no Estado, o que lhes daria maior influência porque instituições internacionais, como as Nações Unidas, governariam a internet.2626. Harold Trinkunas e Ian Wallace, "Converging on the Future," 2015, p. 19.

Os proponentes do enfoque de múltiplos atores, particularmente dos setores privado e sem fins lucrativos, temem que se for promulgado um modelo de governança multilateral conduzido pelo Estado, ocorrerão sérias perdas de liberdade e inovação na internet. O enfoque multilateral dá aos países que não compartilham dos mesmos valores democráticos uma participação maior na governança da internet, permitindo assim que as ferramentas não democráticas de censura e a soberania nacional da internet sejam introduzidas mais amplamente. China e Rússia já censuram a internet que podem controlar dentro de suas fronteiras; dar-lhes poderes de decisão na governança global da internet poderia levar a violações dos princípios fundamentais sobre os quais a internet foi fundada.

O Brasil introduziu outra abordagem que incorpora tanto princípios de múltiplos atores quanto multilaterais na qual os componentes privado, social e governamental estão incluídos, juntamente com outras partes interessadas, como a academia e a representação não governamental eleita; esse processo seria, por sua vez, governado por um órgão que permitiria aos países participação igual no processo de tomada de decisão.2727. Ibid. Embora esse enfoque combine ambos os modelos de governança, é improvável que seja adotado sem amplo apoio internacional. Desse modo, a governança da internet tornou-se cada vez mais uma questão em que as democracias e as autocracias assumem lados opostos, e que, argumentam os estudiosos, é de importância vital para o futuro da segurança, abertura e resiliência da própria internet.

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2. Implicações políticas e recomendações

À luz das atuais e futuras ameaças à democracia e aos direitos humanos decorrentes de usos irresponsáveis e disruptivos das comunicações digitais, o momento para os defensores de direitos humanos se mobilizarem em relação às questões de tecnologia digital é agora. É imperativo que as ações governamentais não adotem uma visão estreita de segurança em que segurança nacional, contraterrorismo e soberania sejam consideradas acima de todo o resto. Estratégias desse tipo, embora potencialmente poderosas no curto prazo, têm maior probabilidade de contribuir para a deterioração da segurança global e nacional em longo prazo.

Proteger os processos democráticos. O ambiente para eleições livres e justas e formação da opinião pública deveria tornar-se mais seguro contra influências estrangeiras e hackers. Propostas, como a feita nos EUA, de “designar o sistema eleitoral como ‘infraestrutura crítica’, uma medida que exigiria que as proteções de segurança cibernética fossem reforçadas”, seria um bom começo.2828. Mike Orcutt, "What the DNC Hack Says about Cyber-Based Threats to Democracy." MIT Technology Review, 4 de agosto de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, https://www.technologyreview.com/s/602108/what-the-dnc-hack-says-about-cyber-based-threats-to-democracy/.

  • Para garantir a integridade de suas eleições, as democracias deveriam atualizar seus sistemas eleitorais e usar dispositivos que não estivessem conectados a uma rede digital,2929. Sergio Hernandez, "How to Stop Election Cyberthreats." CNN, 5 de novembro de 2016, acesso em 4 de junho de 2018, http://www.cnn.com/2016/11/05/politics/voting-vulnerabilities-cyberattacks/index.html. ou que tivessem backups manuais para sistemas digitais. A segurança cibernética deveria ser continuamente atualizada nas tecnologias sensíveis de votação relacionadas a listas de registro de eleitores, votação e tabulação de resultados.
  • Os países deveriam considerar a adoção de princípios de dados eleitorais abertos que permitissem aos candidatos e ao público verificar a integridade desses processos como uma salvaguarda adicional e como meio de estabelecer confiança pública neles.3030. Open Election Data Initiative, Homepage, 2018, acesso em 4 de junho de 2018, http://www.openelectiondata.net/en/.
  • Os governos democráticos deveriam trabalhar com urgência para detectar e punir os hackings patrocinados pelo Estado e os assim chamados “patrióticos”, a fim de deter e impedir futuras interferências nos sistemas democráticos.3131. Mike Orcutt, "What the DNC Hack Says about Cyber-Based Threats to Democracy,” 4 de agosto de 2016.
  • Deveriam também desenvolver protocolos para facilitar a cooperação transnacional para processar os hackers da infraestrutura eleitoral e elaborar um código de conduta com promessas de não interferência nas eleições uns dos outros. É também cada vez mais urgente proteger o papel da mídia independente de ataques infundados.
  • As democracias deveriam trabalhar para criar um consenso nos fóruns internacionais de que um ataque cibernético deliberado a infraestruturas críticas de sistemas eleitorais equivale a um ataque físico ao seu território, viola as leis internacionais de soberania e não ingerência nos assuntos internos e justifica reações de autodefesa.

Proteger os direitos humanos on-line. A comunidade internacional deveria implementar e promover as leis e os mecanismos existentes de direitos humanos e ser implacável ao defender on-line os direitos off-line.

  • Acima de tudo, as democracias deveriam dar um exemplo positivo, respeitando elas mesmas esses direitos.3232. David Kaye, “Report of the Special Rapporteur,” 2016. Legislações como o Marco Civil de Internet do Brasil, ou o novo Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, e iniciativas de múltiplos atores que privilegiam segurança e abertura, como a Freedom On-line Coalition, são exemplos de leis e iniciativas concretas que deveriam ser expandidas e apoiadas.3333. Ibid.; "POLICY BRIEF," 2015.
  • Os Estados, em parceria com a sociedade civil e o setor privado, deveriam coordenar posições para fortalecer resoluções e mecanismos da ONU voltados à instituição de normas e monitoramentos adequados, como as resoluções da Assembleia Geral da ONU e do Conselho de Direitos Humanos sobre internet e privacidade patrocinadas pela Alemanha (A/C.3/71/L.39/Rev. 1o. de novembro de 2016) e Brasil (A/HRC/32/13 de julho de 2016).
  • É fundamental que as empresas do setor privado no ecossistema da internet estabeleçam sistemas, produtos e protocolos muito mais rigorosos para proteger os cidadãos de intrusões por parte de atores estatais e não estatais.
  • As políticas que regem as restrições de conteúdo na web e nas comunicações digitais devem ser cuidadosamente elaboradas com a participação de todas as partes interessadas relevantes e de acordo com as leis internacionais de direitos humanos, como liberdade de expressão e direito à privacidade e ao devido processo legal.

Pressionar em favor de uma governança da internet aberta. As nações democráticas deveriam adotar uma postura mais ativa e unificada nos debates sobre governança da internet, uma vez que a abordagem histórica do tipo laissez-faire não mais se sustenta.3434. Robert K. Knake, "Internet Governance in an Age of Cyber Insecurity." Council on Foreign Relations, 2010, acesso em 4 de junho de 2018, p. 7, https://www.cfr.org/content/publications/attachments/Cybersecurity_CSR56.pdf. Elas deveriam defender que a governança da internet se baseasse em valores de uma internet aberta, diversa, neutra e universal. Ela deveria incorporar quatro princípios fundamentais: (1) liderança compartilhada; (2) fluxo livre de informações e dados e, ao mesmo tempo, proteção da propriedade intelectual e a privacidade individual; (3) enfoques de múltiplos atores envolvendo poderes emergentes e estabelecidos da internet e uma sociedade civil e um setor privado ativos; e (4) enfoques liderados pela indústria do setor para combater ataques cibernéticos.3535. John D. Negroponte et al., “Defending an Open, Global, Secure, and Resilient Internet,” 2013; Harold Trinkunas e Ian Wallace, "Converging on the Future,” 2015, p. 5.

Instituir um código de governança da internet. Uma coalizão de Estados com ideias afins deveria criar um grupo de trabalho de segurança cibernética composto por especialistas do governo, da indústria e da sociedade civil para elaborar e propor um código voluntário de governança da internet. Esse código deveria refletir os valores compartilhados de fortalecimento da governança democrática e da transparência, promoção dos direitos humanos, proteção dos dados dos cidadãos e defesa do modelo de múltiplos atores.

  • As estratégias a serem consideradas na adoção deste código deveriam ser a Estratégia de Governança da Internet 2016-2019 do Conselho da Europa e a Agenda de Tallinn de 2014 para a Liberdade On-line, bem como outros modelos atuais.
  • O grupo de trabalho poderia ajudar a coordenar a educação especializada e a capacitação de formuladores de políticas sobre a complexa relação entre direitos humanos e tecnologia digital e buscar formas de ajudar os membros a desenvolver uma capacidade de segurança cibernética mais forte para proteger os processos democráticos.
  • Ao estabelecer esses padrões, o grupo de trabalho deveria considerar as consequências para os criminosos flagrantes, inclusive o condicionamento da cooperação bilateral à conformidade com a segurança cibernética. É preciso colocar a questão: como as democracias devem tratar as nações que tentam ataques cibernéticos aos seus processos democráticos fundamentais?

Ted Piccone - Estados Unidos

Ted Piccone é Senior Fellow e Charles Robinson Chair em Política Externa na Brookings Institution. Ele tem escrito extensamente sobre as dimensões de política externa da democracia e dos direitos humanos, inclusive em seu livro mais recente, Five Rising Democracies and the Fate of the International Liberal Order. Este artigo baseia-se em um briefing que ele fez para a Community of Democracies em setembro de 2017, com a valiosa ajuda de Hannah Bagdasar, Carlos Castillo, Jesse Kornbluth e Matthew Koo.

Recebido em abril de 2018.

Original em inglês. Traduzido por Pedro Maia Soares.