Ensaios

A política de drogas é uma questão de mulheres11. Colaboraram para este artigo Ana Luiza Voltolini Uwai, Bruna Bumachar, Denise Neri Blanes e Heidi Cerneka.

Lucia Sestokas e Nathália Oliveira

Política de drogas, justiça criminal e gênero no Brasil

josullivan.59

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RESUMO

O presente artigo apresenta análises sistematizadas pelo Projeto Gênero e Drogas do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania em torno das intersecções dos temas de gênero, sistema de justiça criminal e política de drogas. Nesse sentido, o trabalho demonstra alguns perigos de restringir a política de drogas aos âmbitos da segurança pública ou da justiça criminal. Demonstra ainda a necessidade de centralizar gênero articuladamente com outros marcadores sociais para analisar violações e acesso a direitos.

Palavras-Chave

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Introdução

Delitos relacionados a drogas estão entre os maiores motivos de encarceramento no mundo. Existem cada vez mais provas de que a declarada “guerra às drogas” é uma política custosa,22. “The Alternative World Drug Report: Counting the Costs of the War on Drugs – Executive Summary,” Count the Costs, 2016, acesso em 15 de junho de 2018, https://www.unodc.org/documents/ungass2016/Contributions/Civil/Count-the-Costs-Initiative/AWDR-exec-summary.pdf. que falhou em estabelecer um “mundo livre das drogas” e que serve para justificar políticas altamente militarizadas.33. “Ending the Drug Wars – Report of the LSE Expert Group on the Economics of Drug Policy,” LSE, May 2014, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.lse.ac.uk/ideas/Assets/Documents/reports/LSE-IDEAS-Ending-the-Drug-Wars.pdf.

Segundo o relatório “Da coesão à coerção”, publicado em 2010 pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC), países que introduziram penalidades duras para esses delitos apresentam uma maior taxa de encarceramento, sem, contudo, gerar impactos significativos a longo prazo sobre o uso, dependência ou crimes relacionados às drogas, principalmente se comparados a países sem sanções severas.

Ainda, diversos estudos se debruçam sobre o alto impacto da política de drogas nos processos de encarceramento feminino. Com base em tais estudos e no acúmulo de 20 anos de trabalho desenvolvido pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC na garantia de direitos de mulheres e no combate ao encarceramento, consideramos urgente discutir articuladamente sistema de justiça criminal e encarceramento, política de drogas e gênero. Foi nesse contexto que surgiu, em 2015, o Projeto Gênero e Drogas, com o intuito de mapear e analisar essa articulação nas políticas de drogas no contexto do encarceramento feminino.

No presente artigo serão apresentadas algumas das análises sistematizadas, ao longo dos dois anos de projeto, em torno das intersecções dos temas de gênero, sistema de justiça criminal e política de drogas. Nesse sentido, o trabalho demonstra alguns perigos de restringir a política de drogas aos âmbitos da segurança pública ou da justiça criminal.

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Entrando em contato com o tema: políticas de drogas, gênero e encarceramento

No esforço de mapear o cenário nacional e internacional no que toca à temática de drogas e sistema de justiça, identificamos que as políticas de drogas têm modelos variados,44. Para mais informações, consultar: “Glossário – Tipo de Políticas de Drogas,” Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://ittc.org.br/glossario-tipos-de-politicas-de-drogas/. e não necessariamente operam de modo excludente. Ou seja, a política de drogas adotada por um país normalmente não é definida por um só modelo, mas por uma combinação deles. No Brasil, por exemplo, a Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006,55. “Lei nº 11.343, de 23 de Agosto de 2006,” Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2006, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. que institui o Sistema Nacional de Política Pública sobre Drogas (Sisnad), adota a despenalização para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal” substâncias ilícitas. Ao mesmo tempo, mantém a criminalização com pena de prisão para as condutas de “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas”.

A política de drogas brasileira, portanto, não é definida nem somente pelo modelo de despenalização, nem exclusivamente pelo modelo de criminalização. Antes, ela é resultado de uma combinação de ambos. Nesse sentido, compreendemos que não é possível analisar modelos de políticas isoladamente: é necessário observar as políticas dos diferentes países abarcando os múltiplos modelos adotados em cada um deles.

Em princípio, acreditávamos que países que adotavam políticas flexíveis, ancoradas nos modelos de legalização, descriminalização ou despenalização, apresentariam uma redução nas taxas de encarceramento. Contudo, ao compreender que as políticas não operam com base em um único modelo, passamos a investigar quais modelos estavam vigentes nesses países, e como as taxas de encarceramento em cada um deles eram afetadas.

Começamos, então, um esforço de montar um banco de dados no qual nos dedicamos a cruzar informações sobre taxa de crescimento do encarceramento, geral e feminino, em países que adotaram modelos de políticas de drogas “flexíveis”.66. Para elencar os países que adotaram políticas flexíveis, utilizamos o “Levantamento sobre legislação de drogas nas Américas e Europa e análise comparativa de prevalência de uso de drogas” da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça, em que foram contabilizados 34 países. Contudo, foi identificado que Ucrânia e EUA, apesar de apresentarem legislações tolerantes com o uso de drogas, não constavam nesse levantamento. Acrescentando-se esses dois países, ficou estabelecido o total de 36 legislações que despenalizaram, descriminalizaram ou legalizaram o uso ou ainda que legalizaram e/ou regulamentaram o cultivo, a produção e/ou o comércio de alguma substância psicoativa considerada ilícita (maconha, cocaína, lisérgicos etc). As informações encontradas sobre os continentes asiático e africano foram inconclusivas e, por isso, não entraram no levantamento. Com isso, pretendíamos verificar em cada país se a flexibilização das políticas de drogas acarretava em desencarceramento.

Estudamos se as taxas de encarceramento aumentaram ou diminuíram desde a adoção de políticas de drogas flexíveis até os dias de hoje.77. Para acompanhar as taxas de encarceramento, utilizamos o banco de dados disponível em: “World Prison Brief Data,” Institute for Criminal Policy Research, 2018, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.prisonstudies.org/world-prison-brief-data. Esse banco de dados se transformou no Infográfico Política de Drogas e Encarceramento: um panorama América-Europa,88. Disponível em: “Política de Drogas e Encarceramento: Um Panorama América-Europa,” ITTC, 2016, acesso em 15 de junho de 2018, http://ittc.org.br/infografico/. lançado no início de 2016. Nele, constatamos que, ao contrário da nossa hipótese inicial, mais da metade dos países que levantamos apresentavam aumento do encarceramento: dos 36 países que “flexibilizaram” suas políticas de drogas, 22 apresentaram aumento do encarceramento geral e 19 apresentaram aumento do encarceramento feminino.99. Apresentaram aumento da população carcerária total a Argentina, a Bélgica, a Bolívia, o Brasil, o Chile, a Colômbia, o Equador, a Eslováquia, a Eslovênia, a Espanha, a Holanda, Honduras, a Hungria, a Irlanda, a Itália, Luxemburgo, o México, o Paraguai, o Peru, Portugal, o Reino Unido e a Venezuela. Apresentaram aumento da população carcerária feminina a Argentina, o Brasil, o Chile, a Colômbia, o Equador, a Eslováquia, a Eslovênia, a Espanha, a Holanda, Honduras, a Hungria, a Irlanda, a Itália, Luxemburgo, o México, o Paraguai, o Peru, o Reino Unido e a Venezuela.

Diante dessa constatação, voltamos a atenção para os países que apresentaram um aumento na taxa de encarceramento com o intuito de examinar similaridades entre eles e de compreender a política de drogas adotada em cada um deles. Identificamos, por exemplo, que na esmagadora maioria dos casos a “flexibilização” está relacionada somente ao uso de drogas, sendo o cultivo, a produção, o transporte e o comércio ainda grandemente alvos de criminalização e repressão. Constatamos também que em diversos casos a “flexibilização” em relação ao uso está direcionada somente para a maconha, mantendo, portanto, a criminalização das demais drogas. O que pudemos perceber a partir desse levantamento é que uma política de drogas pautada por uma “flexibilização” restrita a determinadas condutas e determinadas substâncias não necessariamente tem resultados desencarceradores.1010. Para um maior aprofundamento, consultar: Lucia Sestokas e Nathália Oliveira, “O Que Experiências em Países Tolerantes com o Uso de Drogas Têm a Nos Mostrar?” Le Monde Diplomatique, 19 de abril de 2016, acesso em 15 de junho de 2018, https://diplomatique.org.br/o-que-experiencias-em-paises-tolerantes-com-o-uso-de-drogas-tem-a-nos-mostrar/.

O caso do Brasil é exemplar nesse sentido: a despenalização do uso de drogas conquistada pela Lei 11.343 não contribuiu para o desencarceramento. Ao contrário, a partir de 2006, ano em que foi instituída, é possível acompanhar uma explosão dos índices de encarceramento, em especial dos índices de encarceramento feminino,1111. Para um maior aprofundamento, consultar: Lucia Sestokas e Nathália Oliveira, “Guerra às Drogas: Heranças e Novos Paradigmas.” 5 de abril de 2016, acesso em 15 de junho de 2018, https://jota.info/artigos/guerra-drogas-herancas-e-novos-paradigmas-05042016. causados sobretudo por crimes relacionados a drogas.

De acordo com o World PrisonBrief (WPB), o aumento da população carcerária brasileira entre 2006 e 2014 foi de 51,4%. Já o aumento da população feminina encarcerada, por sua vez, foi de 84,5%. O Infopen, banco de dados oficial sobre população carcerária a nível nacional publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN), de 2014, mostra que o tráfico de drogas é motivo de encarceramento de 27% da população carcerária total, sendo que entre os homens o percentual é de 25% e entre as mulheres, 63%. Ainda, o levantamento do Colectivo de Estudios Drogas y Derecho,1212. O Coletivo de Estudos Drogas e Direito (CEDD) reúne pesquisadoras/es de 9 países latinoamericanos cujo objetivo é analisar o impacto da legislação penal e da prática jurídica em matéria de drogas buscando gerar informações e fomentar um debate informado sobre a efetividade das políticas atuais e recomendar abordagens alternativas mais justas e eficazes. Mais informações no portal: Drogas y Derecho, Homepage, 2018, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.drogasyderecho.org/index.php/es/. feito pela pesquisadora Luciana Boiteux, mostra que, entre 2005 e 2013, o número total de pessoas presas por tráfico de drogas aumentou em 345%, sendo que o aumento de mulheres presas pelo mesmo motivo no mesmo período foi de 290%.1313. Luciana Boiteux, “Mujeres y Encarcelamiento por Delitos de Drogas.” Colectivo de Estudios Drogas y Derecho, 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.drogasyderecho.org/publicaciones/pub-priv/Luciana_v08.pdf.

A lei de drogas instituída em 2006, e que segue vigente, endureceu as penas para tráfico de drogas e criou novas condutas tipificadas como crimes passíveis de prisão. Em seu texto, determina que as condutas relacionadas ao tráfico são “inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória”, funcionando ainda mais como um mecanismo de manutenção do encarceramento. Heidi Cerneka, diretora do ITTC que trabalha com o tema do encarceramento feminino há 20 anos, aponta que esse endurecimento é justificado principalmente por conta de um suposto esforço de prender melhor. Ou seja, o entendimento de que a pessoa usuária não deve ser enviada à prisão vem acompanhado de uma ideia reiterada de que traficantes pertencem ao espaço prisional. Qualquer pessoa que não seja indiscutivelmente uma usuária vira “traficante” e merecedora de pena, afirma Cerneka.

Ao mesmo tempo em que a Lei 11.343 foi importante por trazer avanços no que tange aos cuidados com as pessoas usuárias, ela a mantém na malha da justiça criminal. Mesmo não indo para a prisão, essa pessoa continua passando por um processo criminal,1414. Na prática, uma pessoa que seja abordada por policiais e possua drogas ilícitas pode ser encaminhada para a delegacia para averiguação ou ser detida na hora sob a acusação de traficante. Na delegacia, a/o delegada/o pode considerar que se trata de uma pessoa usuária e encaminhá-la para o juizado especial criminal, onde receberá sanções como serviços à comunidade ou medida educativa, ou, ainda pode encaminhá-la para audiência de custódia, caso compreenda que se trata de tráfico. Na audiência de custódia, a/o juíza/juiz pode definir que a prisão em flagrante foi ilegal se entender que a pessoa é usuária (ainda mesmo em casos de flagrante forjado, de invasão de domicílio etc.), encaminhando-a para o juizado especial criminal. Caso a/o juíza/juiz interprete a ocorrência como tráfico, aplicará uma pena que pode incluir prisão (se entender que existem elementos suficientes para justificar a prisão e que a pessoa pode apresentar risco à ordem pública ou risco ao cumprimento da lei) ou outras medidas (comparecimento periódico ao Fórum, proibição de acesso a determinados lugares, proibição de manter contato com determinadas pessoas, proibição de ausentar-se da cidade, toque de recolher depois de determinado horário etc.). já que o uso de drogas ilícitas continua a ser um crime.1515. A associação do uso de drogas com crime nos faz questionar se essa é uma associação comum ou mesmo se está presente em todos os países. O levantamento que resultou no Infográfico Política de Drogas e Encarceramento: um panorama América-Europa nos mostra que pelo menos em 20 países das Américas e da Europa o uso de substâncias psicoativas não é considerado crime.

No Brasil, atualmente, não há nenhum parâmetro objetivo oficial (ou seja, estabelecido por lei ou jurisprudência) para a diferenciação entre as condutas de uso e tráfico. Nesses diversos momentos, são somente as forças de segurança pública e o Judiciário que têm o poder de definir quem abordar, quem será considerada/o usuária/o ou traficante, quais pessoas podem apresentar “risco”, quais sanções, penas ou medidas devem ser aplicadas etc. Desta maneira, fica nas mãos das pessoas que operam a segurança pública e a justiça criminal definir quem terá acesso a quais políticas, sejam elas de cuidado ou de repressão ao tráfico e ao crime. Na prática, a julgar pelo perfil carcerário brasileiro de hoje, fica evidente quais pessoas são destinadas para a justiça criminal: pessoas negras, pobres e periféricas.

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Articulações e incidências: debates sobre política de drogas entre 2015 e 2016

Na tentativa de solucionar a arbitrariedade das forças de segurança e da justiça criminal na diferenciação entre pessoas consideradas usuárias e traficantes, surge a proposta de estabelecer parâmetros para essa distinção.

Ao longo de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, iniciado em 2011, que analisa a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343. O RE analisa a possibilidade de descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, inicialmente com enfoque na maconha.

No processo, alguns ministros retomaram a discussão sobre a adoção de critérios objetivos para diferenciação entre tráfico e uso.1616. O ministro Luís Roberto Barroso votou no sentido de estabelecer um critério quantitativo para distinguir tráfico de uso e o ministro Luiz Edson Fachin pontuou que a determinação do critério quantitativo deve ser feita pelo Poder Legislativo. Para mais informações, consultar o posicionamento do relator do Gilmar Mendes (“Recurso Extraordinário 635.659 São Paulo,” Migalhas, 20 de agosto de 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/8/art20150820-10.pdf), o voto do ministro Edson Fachin (“RE 635.659-RG – Rel. Min. Gilmar Mendes Voto-Vista Min. Edson Fachin,” Migalhas, 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/9/art20150910-12.pdf) e as anotações para voto oral do ministro Luís Roberto Barroso (“RE 635.659 Descriminalização do Porte de Drogas Para Consumo Próprio,” Migalhas, 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/9/art20150911-04.pdf). Critérios objetivos são parâmetros que auxiliam na classificação de condutas individuais, sendo mobilizados no caso de delitos relacionados a drogas, para a diferenciação de condutas que acarretam em penalidades distintas de acordo com a lei de drogas de cada país. De maneira geral, os critérios objetivos propostos são de adoção de uma quantidade de substância que diferencie pessoas usuárias de traficantes ou ainda grandes ou pequenas/os traficantes.1717. Critérios objetivos também podem ser baseados na pureza, tipo (hard ou soft), no valor da droga que a pessoa carrega, ou até mesmo em uma combinação desses fatores. Esses critérios podem ser usados para diferenciar pessoas “usuárias problemáticas” e “usuárias recreativas”, “usuárias” e “traficantes”, “pequenas traficantes” e “grandes traficantes”, “pequenas produtoras” e “grandes produtoras” etc.

Para além de questões sobre como seriam definidos tais critérios e quem teria a competência para defini-los, o acúmulo da experiência do ITTC com mulheres em situação de cárcere alerta para alguns perigos da adoção dos mesmos para a diferenciação de condutas.1818. Para um maior aprofundamento, consultar: “10 Anos da Lei de Drogas: É Estratégico Discutir Critérios Objetivos?” ITTC, 29 de setembro de 2016, acesso em 15 de junho de 2018, http://ittc.org.br/10-anos-lei-de-drogas-e-estrategico-discutir-criterios-objetivos/.

Entendemos, por exemplo, que a definição de quantidades pode gerar uma criminalização automática da pessoa que portar uma quantidade maior do que a permitida. Ou seja, pessoas usuárias que forem abordadas portando uma quantidade de substâncias psicoativas maior do que aquela definida como máximo poderão ser automaticamente enquadradas como traficantes. Isso facilitaria, por exemplo, ações para forjar flagrantes e apreensões: bastaria colocar uma quantidade definida de drogas nos pertences de uma pessoa para enquadrá-la como traficante.

Ao mesmo tempo, se uma pessoa que portar uma quantidade dentro do permitido ainda puder ser considerada como traficante, é mantida a lógica atual de que qualquer pessoa que portar drogas pode ser enquadrada dentro do crime de tráfico. Nesse caso, pessoas usuárias ainda poderão ser presas como traficantes.

Ademais, entendemos que diferenciar grandes e pequenas/os traficantes com base em critérios de quantidade ofusca o fato de que carregar ou guardar altas quantidades de drogas não necessariamente quer dizer que a pessoa em questão tenha uma alta posição na “hierarquia” do tráfico. Ou seja, quem carrega ou guarda grandes quantidades de drogas não deveria ser automaticamente enquadrada/o como grande traficante. Isto porque nem sempre pessoas que trabalham no comércio de drogas têm controle sobre a quantidade que lhes é destinada para carregar, guardar ou comercializar.

Ainda que a adoção de tais parâmetros pretenda tornar os processos de investigação e julgamentos mais criteriosos, eles não modificam as relevantes questões relacionadas ao encarceramento de pessoas por delitos relacionados a drogas: o funcionamento e a atuação das forças de segurança e do Judiciário.

É possível dizer que a implementação de critérios objetivos não altera o paradigma da seletividade penal, já que não incide, por exemplo, sobre o momento da abordagem policial. A abordagem policial, momento de entrada da pessoa portando drogas na justiça criminal e na mira das políticas repressivas da segurança pública, continuará acontecendo a critério das forças de segurança. Isto é, o estabelecimento de quantidades legais para o porte de drogas não tem impacto sobre quem é considerado “suspeita/o” pela polícia. Por isso, se a polícia continuar a abordar as mesmas pessoas, estipular uma quantidade que define quem é traficante pode ter como efeito somente legitimar a prisão de pessoas que hoje já são presas como traficantes.

Ainda sobre o momento da abordagem policial, a implementação de critérios objetivos tampouco altera os perigos de a polícia ser a única testemunha dos casos que vão para julgamento. Segundo a pesquisa “Prisão provisória e Lei de Drogas – um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo”, lançada em 2011 pelo Núcleo de Estudos Sobre Violência (NEV) da USP, 70% dos casos julgados em São Paulo têm como única testemunha os policiais que trabalharam na ocorrência.1919. O estudo analisou 667 autos de detenção por porte de entorpecentes na capital paulista referentes aos meses de novembro e dezembro de 2010 e janeiro de 2011. Nesse sentido, como aponta o jornalista da revista Consultor Jurídico Sérgio Rodas em matéria publicada em 17 de fevereiro de 2017, “se foram os agentes que fizeram a detenção, como eles iriam testemunhar objetivamente sobre seus próprios atos?”2020. Sérgio Rodas, “74% das Prisões por Tráfico Têm Apenas Policiais Como Testemunhas do Caso.” Consultor Jurídico, 17 de fevereiro de 2017, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas.

O exemplo do México é significativo para ilustrar muitos dos perigos destacados anteriormente. Em 2009, o país adotou a Lei de Narcomenudeo, que alterou o Ato Geral de Saúde de 1994. A Lei descriminaliza a posse para o consumo de pequenas quantidades (até 5g de maconha, 2g de ópio, 500mg de cocaína, 0,015mg de LSD, 40mg de metanfetamina e 50mg de heroína ou diacetilmorfina). Cabe ao Ministério Público julgar, caso a caso, se as quantidades apreendidas estão dentro dos limites legais. A Lei estabelece ainda uma distinção entre “uso” e “uso compulsivo”, sendo considerado como uso compulsivo quem apresentar sintomas de dependência. Para pessoas consideradas como fazendo uso compulsivo é estabelecido tratamento compulsório.

O artigo “Mexico: The Law AgainstSmall-ScaleDrugDealing”, de Jorge Hernández Tinajero e Carlos Zamudio Angles2121. Jorge Hernández Tinajero e Carlos ZamudioAngles, “Mexico: The Law Against Small-Scale Drug Dealing”, Transnational Institute, Series on Legislative Reform of Drug Policies no. 3 (2009). aponta que, pessoas usuárias portando mais do que a quantidade permitida são tratadas como criminosas, podendo sofrer condenação com pena de prisão entre 10 a 36 meses. Nesses casos, a lei nem mesmo obriga as autoridades a provarem que a droga apreendida tinha fins comerciais. Os autores indicam ainda que são práticas comuns a detenção de pessoas usuárias, assim como a busca sem mandado com base em “suspeitas de prática de tráfico”. Ou seja, na realidade, qualquer pessoa portando drogas pode ser considerada como criminosa. É relevante destacar, nesse sentido, como colocam os autores, a ausência de mecanismos de controle e anticorrupção sobre as ações da força policial, criando incentivos para práticas de corrupção, extorsão e abuso de poder. O artigo conclui que a guerra às drogas no México se concretiza na criminalização das pessoas mais marginalizadas. Nas cidades, pessoas pobres e jovens se tornam alvo das autoridades por serem consideradas como usuárias de drogas mais prováveis e pela sua aparência. É apontado como necessário levar em conta que a entrada no mercado ilegal se dá pela falta de oportunidades econômicas, mais presente em grupos mais vulneráveis, notadamente camponesas/es, jovens e mulheres.

Diante do cenário descrito, entendemos que o estabelecimento de critérios objetivos poderá ser utilizado como forma de justificar a prisão ou mesmo como método de supostamente prender melhor, facilitando a ação arbitrária de agentes de segurança pública chanceladas pelo sistema de justiça criminal.

Tal qual apontado no caso do México, estabelecer critérios objetivos para diferenciar condutas pode criar uma perigosa ilusão de neutralidade na atuação policial, como se essa passasse a ser inquestionável por estar embasada em parâmetros “concretos”. Ainda, pode também forjar métodos enganosos para que a/o juíza/juiz tenha mais “segurança” na sua decisão, como se estes novos parâmetros definissem de forma segura e definitiva quem pode ser considerada/o usuária/o.

Partir do entendimento de que é necessário um parâmetro “concreto” para diferenciar quem é considerada/o usuária/o ou traficante novamente reforça a dicotomia entre os dois, com base em fatores frágeis frente à diversidade de situações. Ainda que estes parâmetros possam ser uma resposta à arbitrariedade das forças de segurança e do Judiciário, quando são aplicados deixam de considerar as especificidades de cada situação. Vale questionar se essa busca por novos parâmetros de diferenciação terá impactos desencarceradores, principalmente para o perfil de pessoas que hoje é preso – sendo usuária/o ou traficante – ou, ainda, se essa diferenciação terá efeitos de garantias de direitos para qualquer um dos dois.

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Gênero: (in)visibilidade, impactos e seletividade na prisão

Desde sua fundação, o ITTC atua com mulheres em situação de conflito com a lei, dentro e fora do cárcere. O Instituto enfrenta no ambiente prisional e no sistema de justiça criminal as desigualdades estabelecidas a partir das assimetrias de gênero na sua intersecção com outros marcadores de diferença, por entender que tanto o ambiente prisional quanto o sistema de justiça criminal produzem e reproduzem desigualdades e violências de gênero.

Constatamos, tal como aponta Bruna Angotti,2222. Bruna Angotti, “O Encarceramento Feminino como Ampliação da Violação de Direitos”. Le Monde Diplomatique, p. 4, 7 de dezembro de 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://diplomatique.org.br/o-encarceramento-feminino-como-ampliacao-da-violacao-de-direitos/. que “a prisão é um potente espaço de estigmatização, em um contexto de opressões estruturais de sexo, gênero, raça e classe”. A autora destaca ainda que o cárcere representa mais um espaço violento entre tantos outros de vivências anteriores, seja na manutenção de espaços de violência, seja no reforço de estereótipos de gênero. O sistema prisional, assim como o sistema de justiça, contribui para potencializar as violências contra a mulher e para perpetuar as desigualdades de gênero.2323. Para um maior aprofundamento, consultar: “Infográfico Mulheres e Tráfico de Drogas: Uma Sentença Tripla,” ITTC, 12 de agosto de 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://ittc.org.br/infografico-mulheres-e-trafico-de-drogas-uma-sentenca-tripla/.

É interessante notar, ainda, como gênero é um tema frequentemente ocultado ao longo da passagem de homens e mulheres pela justiça criminal. De acordo com o relatório “MulhereSemPrisão”, lançado pelo ITTC no dia 07 de março de 2017, as questões de gênero são sistematicamente invisibilizadas nos processos criminais, desde a abordagem policial até o fim do processo. É possível identificar que diversos órgãos deixam de fazer uma diferenciação entre casos de homens e mulheres, de tribunais até Defensorias Públicas, Secretarias de Segurança, Ministério da Justiça e Conselho Nacional de Justiça. Durante a pesquisa, se constatou que nos boletins de ocorrência, por exemplo, há a supressão de informações importantes sobre a maternidade, o que dificulta o acesso das mulheres acusadas a certos direitos, como a prisão domiciliar.

A invisibilidade de questões específicas de gênero em informações e dados oficiais sobre sistema prisional2424. Para um maior aprofundamento, consultar: “Situação das Mulheres Presas no Brasil Pode Ser Mais Grave do Que Apontam Dados Oficiais,” ITTC, 14 de dezembro de 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://ittc.org.br/situacao-das-mulheres-presas-no-brasil-pode-ser-mais-grave-do-que-apontam-dados-oficiais/; “Nota ITTC: ‘Brasil é o Quinto País Com Mais Mulheres Encarceradas no Mundo’, Segundo Relatório do Institute For Criminal Policy Research, Publicado em O Globo,” ITTC, 5 de outubro de 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://ittc.org.br/brasil-e-o-quinto-pais-com-mais-mulheres-encarceradas-no-mundo-segundo-relatorio-do-institute-for-criminal-policy-research-publicado-em-o-globo/. contribui para o reforço de violações de gênero nesse âmbito e, consequentemente, dificulta a construção de, e o acesso a, políticas específicas e de garantias de direitos.

Para Angotti,2525. Angotti, “O Encarceramento Feminino”, 2015, p. 2. “é inegável que há particularidades no aprisionamento de homens e mulheres, seja em razão da estrutura binária que separa os sexos em duas categorias distintas, atribuindo-lhes papéis sociais próprios, dos efeitos sociais dessa divisão ou mesmo das características físicas do corpo feminino”. É interessante notar como o ambiente prisional pode servir para reforçar papéis de gênero e estereótipos relacionados a noções específicas de “mulher”. Seja no controle das visitas íntimas.2626. A pesquisadora Natália Corazza Padovani, em seu artigo “No olho do furacão: conjugalidades homossexuais e o direito à visita íntima na Penitenciária Feminina da Capital”, analisa o direito à visita íntima questionando quais relações têm sido consideradas familiares e matrimoniais pelo corpo administrativo prisional. Sua análise tem como foco a disputa pelo direito à visita íntima homossexual. Disponível em: Natália Corazza Padovani, “No Olho do Furacão: Conjugalidades Homossexuais e o Direito à Visita Íntima na Penitenciária Feminina da Capital,” Cadernos pagu 37 (julho-dezembro de 2011): 185-218, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.scielo.br/pdf/cpa/n37/a07n37.pdf.na repressão das relações afetivo-sexuais que acontecem entre mulheres presas,2727. A pesquisadora Natália Corazza Padovani, em seu artigo “Poder e sexualidades dissidentes na prisão: discutindo a relação entre poder e prazer (homo)sexual na Penitenciária Feminina da Capital.”, analisa a relação feita, pelo sistema jurídico, entre comportamentos sexuais considerados ilegítimos e a criminalidade durante os pouco mais de trinta anos estudados abrangendo formas passadas e presentes de classificação e gerenciamento do sexo das internas. Disponível em: Natália Corazza Padovani, “Poder e Sexualidades Dissidentes na Prisão: Discutindo a Relação Entre Poder e Prazer (Homo)sexual na Penitenciária Feminina da Capital.” 34° Encontro Anual da ANPOCS Seminário Temático 30: Sexualidade, Gênero: Ética e Política, 2010, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.anpocs.com/index.php/papers-34-encontro/st-8/st30-2/1650-npadovani-poder/file. na promoção de tarefas domésticas às mulheres2828. Em matéria da Época de 2015, meninas que se encontram em uma unidade da Fundação Casa relatam que recebem as roupas e roupas de cama e banho das unidades masculinas da FC para lavar. Disponível em: Flávia Tavares, “A Vida e os Problemas das Meninas Infratoras.” Época, 27 de maio de 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/05/vida-e-os-problemas-das-meninas-infratoras.html. ou ainda na oferta de cursos e trabalhos que reforçam estereótipos de gênero,2929. É interessante notar que muitas vezes os cursos profissionalizantes e vagas de trabalho oferecidos às mulheres e meninas privadas de liberdade reforçam alguns estereótipos de gênero. Exemplo de ofícios nesse sentido são relacionados à cozinha, costura, limpeza, cuidado ou ainda a atividades de beleza. a prisão ou até mesmo unidades de medida socioeducativas impõem padrões de qual é o comportamento esperado das mulheres que se encontram nesses ambientes.

Para Heidi Cerneka,3030. Heidi Cerneka, Incarcerated Women of Color and How Race and Mental Illness Issues Affect Them and Are Manifest in Their Prison Time. Unpublished manuscript. Loyola University Chicago School of Law, 2015. questões sociais e familiares também contribuem para distinguir as experiências de mulheres no cárcere daquelas vividas por homens. Apesar de não haver um levantamento oficial nacional acerca da maternidade entre mulheres presas, é seguro dizer, com base na experiência do ITTC, que muitas são as responsáveis pelos cuidados de filhas e filhos, assim como pelo cuidado de outras pessoas da família ou do círculo social próximo, papel socialmente atribuído à mulher. Nesse sentido, a prisão gera também um impacto econômico e afetivo na família. Ainda sobre a maternidade dentro das prisões, o estudo “Dar à luz na sombra”3131. “Dar À Luz na Sombra: Condições Atuais e Possibilidades Futuras para o Exercício da Maternidade por Mulheres em Situação de Prisão,” Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2015, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.justica.gov.br/noticias/201clugar-de-crianca-nao-e-na-prisao-nem-longe-de-sua-mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-na-sombra-1.pdf. afirma que o exercício da maternidade em situação de prisão aparece, de forma geral, mediado e controlado pelas instituições. Mostra também que mulheres que são mães e/ou cuidadoras vivenciam a prisão dentro de um paradoxo da hiper e da hipomaternidade, ou seja, ora a prisão pode representar um espaço em que mulheres puérperas passam 24 horas por dia com seus bebês, ora pode servir como ruptura do vínculo materno. Para o grupo de trabalho responsável pela publicação “Mulheres, Política de Drogas e Encarceramento: um guia para uma reforma política na América Latina e Caribe”, lançada pela Washington Office on Latin America (WOLA), o Consórcio Internacional sobre Política de Drogas (IDPC), o Dejusticia e Comissão Interamericana de Mulheres (CIM) da Organização dos Estados Americanos (OEA), com apoio do ITTC, o uso da prisão como resposta para delitos relacionados a drogas tem afetado as mulheres de forma diferenciada. A publicação mostra que a prisão contribui para limitar ainda mais as chances de mulheres encontrarem trabalho decente e empregos nos mercados formais após saírem do cárcere. Principalmente levando em conta a entrada delas nos mercados de trabalho relacionados ao cuidado (trabalhadoras domésticas, babás, cuidadoras etc.), uma vez que a existência de antecedentes penais e de passagem pela prisão frequentemente é um impeditivo maior para a empregabilidade. Ainda que o Judiciário e o mercado de trabalho não estejam diretamente relacionados, é interessante notar que o perfil das mulheres que enfrentam maiores dificuldades econômicas é o mesmo da maioria das mulheres que está inserida no sistema de justiça criminal.3232. Segundo a pesquisa “Mulheres e Trabalho: Breve Análise do Período 2004-2014”, divulgada pelo IPEA em março de 2016, as mulheres negras são mais suscetíveis ao desemprego: em 2014, 10,2% estavam desempregadas, enquanto apenas 4,5% dos homens brancos estavam desempregados no mesmo período. Ainda, o percentual de pessoas que se encontram em relações precárias de trabalho é de 39,08% dentre as mulheres negras, seguido por 31,6% dentre os homens negros, 26,9% dentre mulheres brancas e finalmente 20,6% dentre os homens brancos. São as mulheres negras também que possuem a menor remuneração e são o maior contingente de trabalhadoras sem carteira assinada e em atividades reconhecidas como autônomas. Segundo a análise feita pela pesquisa, mesmo com o movimento de aproximação das rendas, em 2014 as mulheres negras ainda não haviam alcançado 40% da renda dos homens brancos, que era de R$ 2.393, em comparação aos seus rendimentos médios de R$ 946. Ver: “Mulheres e Trabalho: Breve Análise do Período 2004-2014,” Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2016, acesso em 15 de junho de 2018, http://trabalho.gov.br/images/Documentos/Noticias/Mulher_e_trabalho_marco_2016.pdf.

Não é qualquer perfil de mulher que é presa no Brasil. Em geral, são jovens, negras e com baixo grau de escolaridade que compõem o já conhecido perfil da população carcerária brasileira. De acordo com o levantamento do Infopen, anteriormente citado, 50% das mulheres têm entre 18 e 29 anos, 68% são negras e somente 14% delas terminaram o Ensino Médio.3333. Para fins de comparação, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio de 2015 do IBGE aponta que o percentual de mulheres negras no Brasil é de 53,6%. Ainda, a faixa entre 20 e 29 anos representa 7,5% da população brasileira de mulheres. Finalmente, um levantamento do Todos pela Educação (disponível em: “79,8% das Meninas Concluíram o Ensino Fundamental Até os 16 Anos em 2014,” Todos Pela Educação, 8 de março de 2016, acesso em 15 de junho de 2018, http://www.todospelaeducacao.org.br/reportagens-tpe/37285/798-das-meninas-concluiram-o-ensino-fundamental-ate-os-16-anos-em-2014/) mostra que a taxa de conclusão do Ensino Médio por meninas de até 19 anos é de 63%. Esse perfil, no entanto, não é exclusividade do Brasil: nas prisões latino-americanas as mulheres são majoritariamente jovens, negras, indígenas e latinas, e têm baixo nível de escolaridade, além de serem rés primárias, provedoras das famílias e relatarem já terem sofrido algum tipo de violência.3434. Boiteux, “Mujeres y Encarcelamiento,” 2015.

A situação vivenciada por essas mulheres, segundo Angela Davis,3535. Angela Davis, Mulheres, Raça e Classe (São Paulo: Boitempo, 2016). tem uma raiz histórica e encontra-se atravessada por certas marcas de diferenciação. No livro “Mulheres, raça e classe” a autora volta seu olhar para países com experiências escravocratas e aponta que as mulheres negras que transitaram da condição de mercadoria no final do século XIX para sujeitas de direitos não gozam plenamente, no século XXI, de todos os direitos políticos, econômicos, sociais e afetivos contemplados pelas pessoas brancas. As desigualdades políticas, econômicas e sociais apontadas por Davis são resultados de sociedades estruturadas no racismo e, uma vez assim estruturadas, todas as relações carregarão os marcadores de desigualdades fundadas nesse mecanismo.3636. Ibid. Indo na mesma direção, a advogada Dina Alves apresenta, para o caso brasileiro, a influência de teorias racistas sobre as relações entre raça e criminalidade elaboradas no século XIX, momento da constituição do pensamento jurídico brasileiro. Ela argumenta que o racismo constitui uma âncora da seletividade penal gerando um “continuum entre senzala-favela-prisão”.3737. Enedina do Amparo Alves, “Rés Negras, Judiciário Branco: Uma Análise da Interseccionalidade de Gênero, Raça e Classe na Produção da Punição em uma Prisão Paulistana.” Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 129, 2015, acesso em 15 de junho de 2018, https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/3640/1/Enedina%20do%20Amparo%20Alves.pdf.

Para a advogada e ativista negra Deborah Small,3838. Em palestra de 29 de julho de 2016, documentada em: “A Melhor Política de Drogas É Não Ter Política de Drogas,” ITTC, 5 de agosto de 2016, acesso em 15 de junho de 2018, http://ittc.org.br/melhor-politica-de-drogas-e-nao-ter-politica-de-drogas/. é fundamental entender como os mecanismos racistas da sociedade são reforçados com a atual política de drogas. Small aponta que a chamada “guerra às drogas” é uma ferramenta eficiente para criminalizar negras e negros, pois criminaliza territórios pobres inteiros e as relações contidas nesses locais.

Nesse sentido, é importante perceber como são construídos os perfis não só de pessoa usuária e traficante, mas também os diversos perfis associados ao uso de drogas. É importante também ter em vista de que modo as políticas de drogas reproduzem e atualizam uma série de desigualdades a partir de gênero, raça e classe. É a partir dessas reflexões que se torna possível pensar e construir outras ferramentas para a política de drogas, que não estejam ancoradas somente ou prioritariamente no encarceramento e nem destinadas somente ao controle e repressão dessas mesmas mulheres.

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Conclusão

É seguro dizer que o encarceramento, principalmente o feminino, nos dias de hoje, é afetado pelas políticas de drogas adotadas nos diferentes países.

Compreender a centralidade da questão de gênero articuladamente com outros marcadores sociais é compreender que existem especificidades que devem ser levadas em conta tanto no que toca a violações, quanto no que diz respeito a propostas concretas de acesso a direitos.

Ainda, é entender que a política de drogas deve ser construída para além do âmbito da segurança pública ou da justiça criminal. Pensar em tais políticas em outros termos envolve também, portanto, pensar em políticas de saúde, de assistência social, de trabalho, de distribuição de renda, dentre outras, de maneira articulada e em relação às realidades locais.

Consideramos que, assim, torna-se possível a construção de caminhos capazes de contribuir para a garantia de direitos e a reversão das desigualdades vivenciadas principalmente pelas mulheres a partir das políticas de drogas. Afinal, entendemos que a política de drogas é uma questão de mulheres.

Lucia Sestokas - Brasil

Lucia Sestokas é internacionalista e responsável pelo Projeto Gênero e Drogas do ITTC.

Recebido em janeiro de 2018.

Original em português.

Nathália Oliveira - Brasil

Nathália Oliveira é cientista social e coordenadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas.

Recebido em janeiro de 2018.

Original em português.