Uma perspectiva feminista e de mulheres negras
Ameaças contra feministas, pessoas LGBTQI+ e mulheres negras em sua diversidade têm sido cada vez mais evidentes. Essa violência expôs a falta de preparação da sociedade civil para lidar, no atual contexto político, com riscos iminentes ao trabalho em direitos humanos. Portanto, foi e tem sido muito importante agir no imediato, garantindo segurança cotidiana das defensoras, mas também apoiar a sustentabilidade e a proteção em longo prazo. A análise apresentada no decorrer deste artigo foi produzida a partir do relato de nove mulheres, feministas, defensoras de direitos humanos. O artigo traz um apelo para a necessidade de aprofundarmos reflexão sobre o desenvolvimento de mecanismos de proteção que respondam à maneira como as desigualdades de gênero e raça operam para impedir que as mulheres reivindiquem seus direitos humanos, vivam livres de violência e participem plenamente dos processos democráticos.
Desde a vitória do candidato de extrema direita na última eleição presidencial brasileira, os ataques contra a agenda de direitos humanos têm sido inúmeros. Isso impactou diretamente organizações e movimentos da sociedade civil, na medida em que houve um aumento na hostilidade ao ativismo e aos ativistas. Ameaças contra feministas, pessoas LGBTQI+ e mulheres negras em sua diversidade têm sido cada vez mais evidentes. Trabalhadoras e trabalhadores rurais, lideranças comunitárias, movimentos sociais, indígenas, quilombolas, advogados/as populares e organizações que apoiam os processos de redistribuição de terras continuam altamente vulneráveis.
Após o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, em março de 2018, segurança e proteção se tornaram áreas de preocupação para a maioria das organizações de direitos humanos e dos movimentos sociais no Brasil. A impunidade decorrente dessa violência política expôs a falta de preparação da sociedade civil para lidar, no atual contexto político, com riscos eminentes ao trabalho em direitos humanos.11. Como exemplo, poucos meses após o assassinato de Marielle Franco, o congressista de esquerda Jean Wyllys, a candidata política Marcia Tiburi e a professora e ativista feminista Débora Diniz deixaram o país por temerem pela própria segurança física. Desde então, foi e tem sido muito importante não apenas observar e agir no imediato, garantindo segurança cotidiana das defensoras, mas também apoiar a sustentabilidade e a proteção em longo prazo.
A análise apresentada no decorrer deste artigo foi produzida a partir do relato de nove mulheres, feministas, defensoras de direitos humanos, obtidos por meio dos resultados de uma consultoria realizada pelas autoras às organizações não governamentais (ONG) Themis – Gênero e Justiça, do Rio Grande do Sul, e Criola, com sede no Rio de Janeiro. Tivemos como preocupação principal olhar as vulnerabilidades às quais as mulheres defensoras estão expostas no contexto da luta por direitos humanos.
Embora os movimentos feministas venham fazendo esforços há alguns anos para tornarem o cuidado e o autocuidado partes da cultura dos movimentos sociais, não há uma definição específica desses conceitos na perspectiva das ativistas. No entanto, a partir do trabalho já desenvolvido nesse campo, podemos afirmar que eles vêm sendo construídos, inclusive através de questionamentos sobre o porquê de falarmos sobre autocuidado no contexto dos movimentos sociais. Com base nisso, identificamos diferentes percepções de ativistas feministas sobre o autocuidado, as quais abordaremos aqui a partir de duas dimensões: interna e individual; externa e coletiva, sabendo que todas estão diretamente correlacionadas.
Do ponto de vista da dimensão interna e individual, o conceito de autocuidado, na perspectiva das ativistas entrevistadas, é vivenciado com contradições. Isso porque, percebendo a necessidade do cuidado de si, há um esforço para lidar com o sentimento de culpa gerado pela incapacidade individual de responder a uma demanda externa, a qual muitas vezes exige muito, como afirma uma das ativistas: “A importância que é tu parar, se ouvir, se escutar, se sentir, se perceber diante de algo que tu nunca imaginou passar, e parece que tu não pode parar porque tudo depende de ti”.
A fala anterior reflete a de outras mulheres, na qual é possível dimensionarmos que o conceito de autocuidado individual também está diretamente relacionado à liberdade. Ou quando o autocuidado é vivenciado como algo coletivo, como nos terreiros, isso se relaciona a um cuidado espiritual acolhido por aquele espaço, como menciona outra ativista entrevistada:
No terreiro a gente tem aquela coisa do acolher, do receber, do cuidar, realmente é [um lugar] da escuta, o terreiro acolhe, o terreiro escuta, o terreiro orienta, o terreiro encaminha. Então nós já estamos acostumadas a viver isso, é da gente […]. Então essa coisa do cuidado, do autocuidado, do cuidar do outro, é do terreiro.
Já a vivência do autocuidado a partir de uma dimensão externa e coletiva é partilhada a partir de relatos que remetem à ideia de uma autopreservação relacionada a fatores externos ocasionados por algo ameaçador, que foge do controle individual. Além da ameaça à vida, a prática do racismo em todos os seus níveis também é considerada uma ameaça perpetrada pelo Estado. Esse tipo de ameaça vem aumentando e gerando diferentes mortes: psicológica, política e física. Na percepção e vivência das ativistas, principalmente das mulheres negras, quando estão em situação de risco de vida, as opções oferecidas estão limitadas ao enfrentamento às ameaças locais, ou à saída e afastamento do ativismo, o que significa tirá-las do seu convívio com outras pessoas defensoras.
Ao focarmos as relações raciais, as ativistas negras trazem uma lógica de cuidado e autocuidado que vai além da dimensão pessoal: o cuidado nas relações entre ativistas como elemento indispensável; um pensamento sobre a forma como vem sendo construída e mantida essa relação; e também a necessidade de ter uma estrutura de vida, ou seja, a garantia de uma estabilidade (ou segurança) física e emocional.
Para as ativistas negras, só faz sentido pensar o autocuidado na relação com o ativismo. Especialmente no reconhecimento de onde estão integradas e o que estão fazendo, como se percebem e cuidam de si na perspectiva do “estar” na luta, abordando questões importantes que, muitas vezes, não são priorizadas. Por isso, elas chamam a atenção em suas falas sobre a necessidade de olharmos para as violências individuais, o racismo e as violências ocorridas dentro do próprio ativismo.
As questões estruturais indicadas nos depoimentos apontam, ainda, para a necessidade da descolonização radical do corpo. E o autocuidado é uma grande estratégia de ativismo nesse sentido, pois enfrenta a lógica do sistema ao direcionar o olhar para os processos na relação com a/o outra/o.
Para as ativistas, deve-se lembrar que o “afetar” sempre é relacional. Então, ao se pensar na descolonização, deve-se considerar que, nas comunidades indígenas, por exemplo, a dimensão de cuidado está relacionada ao cuidado com os outros indivíduos da comunidade – assim como com os animais e as plantas.
Para as mulheres negras, o conceito de autocuidado e cuidado entre ativistas é abordado de forma integrada. Na reflexão do feminismo, o ser mulher não se constitui – numa sociedade patriarcal como a nossa – como um ser com autonomia, mas sim existente em função do outro. A mulher existe, então, para cuidar do homem, das crianças, da casa. Essa situação é agravada pelo racismo, pois se a mulher existe para cuidar dos outros, esse cuidado, quando racializado, gera uma maior humilhação e sujeição.
Algumas entrevistadas, embora com anos de experiência de ativismo, diversas vezes expressaram uma impossibilidade de “ser”, como se não pudessem pensar em si mesmas, pois precisavam pensar na/o outra/o. Nessas situações, é muito importante a formação de vínculos para a sobrevivência e levar adiante o combate. Os relatos demonstram que os vínculos que uma mulher negra tem com outra mulher negra são diferentes daqueles que se pode estabelecer com uma mulher branca, e esses vínculos são fundamentais para o enfrentamento de diversas questões. Na medida em que existe o reconhecimento de iguais, a luta se fortalece e é vista com mais possibilidades. Por isso, deve-se construir o lugar do autocuidado da mesma forma com que se constroem ideias de resistência, como no caso do movimento Black is Beautiful.22. Movimento criado nos Estados Unidos entre as décadas de 1960/70 como forma de afirmação de sujeitos nos níveis pessoal e político visando enfrentar o racismo.
Assim, o autocuidado é entendido como um espaço de afirmação da existência de si, que não está relacionado com o individualismo capitalista mercantilizador, baseado na competição e na ausência de relação social. Aqui, o autocuidado é compreendido, ao mesmo tempo, na autonomia e na relação com os outros seres. A autonomia também se constitui na reciprocidade e na solidariedade.
Para outra ativista entrevistada, há uma necessidade de se radicalizar a discussão e buscar a segurança para o coletivo na raiz do movimento feminista. Deve-se buscar os efeitos do processo de colonização do corpo, anteriormente citados, pois o nível de violência é grande. A violência que faz com que, por exemplo, uma mulher negra, ainda que esteja vestida de branco em um hospital, não seja reconhecida como médica em função de sua cor. De forma ainda pior, muitas vezes a pessoa que pratica a violência vive situações violentas semelhantes, pois também é negra.
Sobre a violência entre ativistas, é identificada uma “romantização” do movimento feminista, como um lugar de muitos encontros e descoberta de identidades. No entanto, observa-se que a violência da sociedade também se reproduz nestes espaços. Na verdade, deve-se constantemente buscar, de forma coletiva, uma maneira de fortalecer relações de confiança tanto pessoais, como no movimento, através do reconhecimento das diversas formas de atuação das mulheres. Como não ver a outra mulher como inimiga, ou como competidora? Deve-se reconhecer essas formas de violência, em especial o prejuízo que o racismo e o machismo nos trouxeram. A partir disso, buscar construir estratégias coletivas para combater esses padrões de ativismo, considerando a dimensão humana mesmo quando a tendência é ver a ativista feminista como heroína ou como vilã, alguém que faz o que faz apenas pelo poder.
A segurança, como um direito, é inatingível para muitas pessoas. A deterioração do tecido social gerado pelo avanço do modelo econômico neoliberal, a herança da impunidade e o modelo de segurança baseado nas intervenções policiais, justificado com o pretexto de combate ao tráfico de drogas, têm servido unicamente para oprimir e controlar a população:
Segurança é você ter a liberdade de expressar a sua fé, segurança é você poder ir e vir sem ser constrangida por um policial, sem ser constrangida por uma pessoa da loja, isso é segurança. Segurança nunca foi exercitada a nosso favor, a nosso serviço, segurança é você ter uma coletividade que se acontecer alguma coisa com você todo mundo vai gritar, vai sentir falta. Então eu tenho que caminhar um pouco pra pensar o que é segurança mesmo. (Ativista entrevistada)
O contexto em que esta análise ocorre é de aumento da violência contra as mulheres defensoras dos direitos humanos, particularmente mulheres negras de áreas urbanas e rurais, bem como aquelas que se identificam como lésbicas, bissexuais e transgêneras e que trabalham em diversas áreas dos direitos humanos: direitos sexuais e reprodutivos; participação política; empoderamento econômico; direitos da terra e dos territórios; direito das mulheres; direitos LGBTQI+; democratização da comunicação; bem como na luta contra a militarização das favelas e periferias.
Para entender quais tipos de proteção, cuidado e segurança são necessários às mulheres defensoras de direitos humanos, partiu-se da ideia de identificar primeiramente como mulheres ativistas compreendem a segurança. Quais fatores contribuem para o aumento dos riscos que podem resultar em ataques diretos contra elas?
Um dos fatores que influencia a experiência de ameaças, riscos e violência contra defensoras e defensores é o gênero. As mulheres defensoras dos direitos humanos, bem como todas as pessoas que não se conformam com os papéis de gênero prescritos tradicionalmente, estão expostas a riscos específicos que precisam ser levados em consideração no desenvolvimento das medidas de proteção mais apropriadas. As defensoras dos direitos humanos correm grandes riscos por desafiarem estruturas de opressão que contribuem e alimentam as desigualdades de gênero, das quais elas são frequentemente alvo. O sistema que requer subjugação das mulheres se mantém através de diversas formas de violência contra elas, entre elas: intimidações, ameaças, ameaças de morte, violência física, violência digital, difamação, assédio sexual, desaparecimentos, assassinatos, ataques a familiares e crianças, restrições de movimento, prisões arbitrárias nas manifestações, agressões sexuais e estupros, ataques homo-lesbo-transfóbicos, silenciamento, isolamento e censura.
No entanto, podemos afirmar que a categoria gênero não é suficiente nas discussões sobre proteção de mulheres defensoras. Como o racismo é estruturante e usado para defender interesses econômicos e políticos, além de justificar a perseguição de ativistas, é necessário que haja uma análise interseccional para examinar a inter-relação de opressões que as mulheres negras enfrentam. Uma das ativistas entrevistadas, que se identifica como mulher negra lésbica, afirma:
O risco que a gente sofre, pra mim, são as mulheres negras que mais sofrem porque o racismo… ele agora é manifesto, a galera tá botando o carão na rua pra dizer que é racista mesmo. Isso implica no seguinte: ficamos mais vulneráveis, e o risco que nós corremos é que está todo mundo disputando nossos corpos […] todo mundo disputando a gente, mas todo mundo querendo nos subalternizar, ninguém quer nos libertar, todo mundo quer falar por nós […] Então nós estamos sob ameaça e nós somos as mais vulneráveis das vulneráveis. Vai sobrar pra gente, mas a gente não sabe o que fazer com isso […].
Quais são as dinâmicas que operam por trás da violência contra as mulheres defensoras dos direitos humanos a partir da perspectiva de raça e gênero foi uma das perguntas da reunião nacional de ativistas e organizações de defensoras de direitos humanos convocada e organizada por Themis e Criola em junho de 2019, com colaboração e participação das autoras deste artigo. Também, na reunião nacional buscamos identificar se há uma diferença entre proteção e segurança e, finalmente, quais são riscos atuais e iminentes e as ameaças enfrentadas pelas organizações feministas bem como pelas organizações de mulheres negras.
Esse encontro fomentou um processo de articulação para criação de uma rede de Defensoras de Direitos Humanos. Assim, em novembro do mesmo ano, algumas organizações participantes se reuniram e formaram um Núcleo Impulsor da Rede de Defensoras de Direitos Humanos com objetivo de constituir uma rede de referência na proteção, defesa e segurança visando fortalecer as mulheres defensoras para preservarem suas vidas e as vidas de outras mulheres.
À medida que as defensoras asseguravam o sucesso de seus projetos políticos, alguns setores conservadores estavam se organizando sistematicamente para suprimir uma parcela da sociedade civil. Prisões arbitrárias, assassinatos, violência sexual contra mulheres defensoras e difamação são apenas algumas das estratégias usadas pelo Estado e por atores não estatais para restringir e limitar a influência daquelas que lideram a transformação social.
Em resposta, reconhecendo o impacto da opressão e violência sistêmica em suas subjetividades e também nas formas de organização, essas defensoras começaram a desenvolver estratégias de segurança e proteção. Em diferentes lugares e com nomes distintos, resiliência, segurança, bem-estar e sustentabilidade da sua vida e luta política estão na sua essência.
Em 2006, o Kindred Healing Justice Collective, uma rede de organizadoras e curandeiras praticantes na área da saúde, do Sudeste dos Estados Unidos, começou a usar o termo “justiça da cura” (healing justice) como um conceito para identificar de que forma podemos holisticamente responder e intervir sobre traumas e violências geracionais, apresentando práticas individuais e coletivas que possam transformar a opressão em nossos corpos e vidas coletivamente. A partir das histórias das organizadoras negras do Sul, indígenas, mulheres de cor, LGBTQI+ e aliados, as quais conectaram a realidade do trauma geracional com as histórias contínuas da escravidão, genocídio e privação dos direitos econômicos com base na economia do trabalho escravo e na colonização, a “justiça da cura” passa a elevar a resiliência e práticas de sobrevivência que centralizam a segurança coletiva e emocional, psicológica, espiritual, bem-estar ambiental e mental das comunidades.33. “Healing Justice: Building Power, Transforming Movements,” Astraea, 2019, acesso em 21 de julho de 2020, https://s3.amazonaws.com/astraea.production/app/asset/uploads/2019/05/Astraea-Healing-Justice-Report-2019-v7.pdf, 10-11.
Quase simultaneamente, em círculos próximos ao Fundo de Ação Urgente pelos Direitos Humanos das Mulheres, em 2007, as ativistas começaram a olhar para o autocuidado, a sustentabilidade e a segurança integral de ativismo e dos ativistas. Nos anos que se seguiram, as organizadoras começaram a falar sobre segurança holística, através da qual se reconheceu que o bem-estar psicológico/psicossocial, a segurança física e a digital são componentes fundamentais de fortes movimentos e organizações.
Segundo Ana María Hernández Cárdenas e Nallely Guadalupe Tello Méndez,44. Ana María Hernández Cárdenas e Nallely Guadalupe Tello Méndez, “Autocuidado como Estratégia Política,” Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos 26 (2017), acesso em 21 de julho de 2020, https://sur.conectas.org/o-autocuidado-como-estrategia-politica/. o autocuidado garante, para além da sustentabilidade dos movimentos sociais, uma postura ético-política que envolve a análise das práticas de trabalho e das relações estabelecidas em nível pessoal e coletivo.
Em 2009, nascia o Fundo de Ação Urgente para América Latina e Caribe (FAU-ALC), sediado em Bogotá, Colômbia, proveniente do Fundo de mesmo nome nos Estados Unidos. O FAU busca fortalecer as ativistas e os movimentos sociais dos quais fazem parte. Com respostas rápidas diante de injustiças e desigualdades vivenciadas pelas defensoras frente a situações de riscos, o Fundo coloca a proteção integral e o cuidado como centro de seu trabalho enquanto cultura organizacional. Sob esse aspecto, o FAU, a partir da edição do livro “Que Sentido Tem a Revolução Se Não Podemos Dançar?”,55. Jane Barry e Jelena Djordjevic, Que Sentido Tem a Revolução Se Não Podemos Dançar? (Estados Unidos: Fundo de Ação Urgente pelos Direitos Humanos das Mulheres, 2007). criou um programa específico de ativismo sustentável.66. “Ativismo Sustentável,” Fundo de Ação Urgente – América Latina e Caribe, 2020, acesso em 21 de julho de 2020, https://fondoaccionurgente.org.co/pt/que-fazemos/ativismo-sustentavel/. Mediante processos de formação, esse programa promove espaços de reflexão e fortalece capacidades e potencialidades, buscando, assim, constituir uma cultura de prevenção que transformem as práticas das ativistas em condições de bem-estar, saúde física e emocional. Nessa linha, a concepção do cuidado de si e coletivo para o FAU são inseparáveis, tratando-o como corpo-território, ou seja, corpo físico e corpo virtual como partes indivisíveis deste cuidado.
No Brasil, em janeiro de 2014, foi criado o Coletivo Feminista de Autocuidado e Cuidado entre Ativistas por sete mulheres feministas e ativistas que, reunidas durante três dias na casa de uma delas em Cabo Frio, no Rio de Janeiro, conversaram sobre si mesmas e sobre suas vivências e sentimentos no ativismo. O objetivo era abrir espaço de intercâmbio, experimentação e reflexão sobre o ativismo e as práticas de organização feminista e mobilização social, de autocuidado, assim como de cuidado umas com as outras (reciprocidade do cuidado).
A ideia de criar um coletivo com esse objetivo surgiu a partir da situação crítica vivida por uma feminista, organizadora da Marcha das Vadias no Rio de Janeiro no mesmo ano. Após a realização do evento, ela foi exposta a uma série de ameaças misóginas e fundamentalistas, investigada pela polícia e viveu uma situação de alta vulnerabilidade que afetou sua saúde física e mental. O Coletivo foi pensado com a intenção de aprofundar a reflexão sobre o que estava acontecendo com cada uma das ativistas, com seus corpos, corações e mentes, conforme uma de suas integrantes, Rogéria Peixinho, reflete:
Olhando para o “nosso mundo”, percebemos que muitas de nós, depois de anos vivendo e trabalhando como ativistas, sentimo-nos exaustas, desiludidas, não conectadas, sem saber o significado de tudo isso, enfim, cansadas! Algumas de nós já decidiram deixar os espaços onde estávamos atuando, outras ficaram doentes, algumas já disseram “não tenho mais nada para dar, eu preciso cuidar de mim mesma para ser capaz de continuar nossa luta feminista e antirracista”, e outras não encontram formas de se fortalecer. Estas histórias que já ouvimos de muitas ativistas/feministas com as quais partilhamos espaços de organização e articulação do movimento nos colocam em xeque. Estas são questões que têm incomodado, desacomodado e convocado várias ativistas do movimento de mulheres e feminista a mudanças, tanto do ponto de vista pessoal, quanto da militância!77. Documentos internos. Coletivo Feminista de Autocuidado e Cuidado entre Ativistas (2014).
A psicóloga Maria Lucia da Silva,88. No evento Diálogo Mulheres em Movimento: Direitos e Novos Rumos, na Cidade do Rio de Janeiro, em 2017 realizado pelo Fundo Social Elas. do Instituto AMMA Psique e Negritude, refletiu a respeito dos temas de autocuidado e segurança, afirmando que ambos estão diretamente relacionados e envolvem pensamentos e ações ligados à cura. Nesse contexto, a fala da ativista abordou o tema mencionando como o racismo deve ser enfrentado pelo movimento feminista na perspectiva do cuidado e segurança:
Como falamos de um movimento que é diverso, para que o tema do cuidado e a segurança das ativistas ganhe efetividade, é necessário compreender que o racismo não é um tema somente das mulheres negras e indígenas, e enfrentar o racismo implica abrir mãos dos privilégios preservados pelo racismo. Só assim poderemos trabalhar, de fato, como coletivo.
Consoante com a afirmação de Anna Haddad99. Helena Bertho, “Autocuidado: A Próxima Fronteira do Feminismo (E Que Deveria Ser Estendida A Todas As Mulheres).” Marie Claire, 30 de dezembro de 2018, acesso em 21 de julho de 2020, https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2018/12/autocuidado-proxima-fronteira-do-feminismo-e-que-deveria-ser-estendida-todas-mulheres.html. sobre o crescimento do interesse pelo tema do autocuidado, relacionado ao momento de crise política no país, a jornalista Helena Bertho produziu uma matéria em que relata suas conversas com ativistas que têm atuado em torno do tema, com o objetivo de compreender por que a palavra “autocuidado” se tornou tão urgente entre as mulheres negras e ativistas feministas no país.1010. Ibid. Ela identifica que a exigência das ativistas pelo autocuidado é critério para a manutenção do enfrentamento nas lutas perante o contexto político atual, que se configura cada vez menos tolerante e mais extremista.
Ao relacionar o tema do cuidado e autocuidado com saúde podemos afirmar que não se trata de um assunto novo no movimento feminista e de mulheres negras. O comprometimento com a vida, por conta dos danos causados pela escravidão, devido às diferenças culturais da diáspora, a violência sexual, a violência psicológica e física e a perda dos filhos, situações até hoje vivenciadas pelas mulheres negras em nosso país, sempre foram objeto de atenção do movimento de mulheres negras. A médica e ativista Jurema Werneck1111. Jurema Werneck, Maisa Mendonça e Evelyn C. White, orgs., O Livro da Saúde das Mulheres Negras: Nossos Passos Vêm de Longe (Rio de Janeiro: Pallas, Criola, 2000). aponta para a necessidade de as mulheres negras falarem sobre saúde pela ótica do autocuidado:
Saúde aqui é mais que um pretexto. É um lugar privilegiado de explicitação do que somos. Para nós, saúde vai além da oposição à doença e aproxima-se do conceito de bem-estar geral, físico, mental e psicossocial, definido pela Organização Mundial de Saúde. Num passo adiante, propomos uma definição de saúde que inclui a busca de equilíbrio dinâmico com a vida e seus elementos, seres vivos e mortos, humanos, animais, plantas, minerais. E essa busca traduz-se numa responsabilidade individual e coletiva. Responsabilidade que pode ser lida também como poder de realização, como podem significar os termos axé (do ioruba) e muntu (do banto)… discussões sobre doenças e desequilíbrios que nos afetam; e nossa capacidade de agir e transformar.
Falar sobre a própria voz tem sido instrumento do cuidado para as mulheres negras há anos. Se olhar, se observar e se admirar é construto do cuidado individual e coletivo.
Há que se considerar que os conceitos de “defensoras e defensores de direitos humanos” não são universais em seu significado. Uma liderança comunitária que luta pelos direitos das mulheres e sofre perseguição também é uma “defensora de direitos humanos”.
A distância que separa as ameaças, e mesmo a execução, sofridas por pessoas com perfis públicos daquelas enfrentadas por ativistas que estão cotidianamente lutando por mudança social pode criar uma funcionalidade torta na concepção e execução de programas de proteção de defensoras e defensores. Isso pode ocorrer ao se privilegiar um perfil de ativistas (homem, figura pública) e tornar invisíveis outros perfis (mulheres, negras, indígenas, jovens) e sua atuação cotidiana.
Como elemento central desta conclusão, trazemos um apelo para a necessidade de aprofundarmos nossa reflexão sobre o desenvolvimento de mecanismos de proteção que respondam à maneira como as desigualdades de gênero e raça operam para impedir que as mulheres reivindiquem seus direitos humanos, vivam livres de violência e participem plenamente dos processos democráticos. Por isso, entendemos que a existência da Rede de Mulheres Defensoras é a principal estratégia para impulsionar ações de proteção, segurança e autocuidado para as mulheres ativistas no Brasil, pois somente nesses espaços as lutas coletivas se fortalecem.
Assim, as organizações, fundações, institutos e indivíduos que apoiam defensoras e defensores de direitos humanos precisam se comprometer com as lutas políticas desses segmentos ao considerar os aspectos específicos que marcam cada contexto social, como suas particularidades regionais e territoriais, raça e gênero, etnias e acesso a recursos públicos de justiça e segurança.