Panorama Institucional

Por um papel para a religião no âmbito internacional

Dennis R. Hoover

Estudo de caso sobre a Review of Faith & International Affairs

Claudiu Dobre

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RESUMO

Neste estudo de caso, Dennis R. Hoover analisa o contexto e o papel do periódico trimestral The Review of Faith & International Affairs (RFIA) em considerar a religião tanto como um fator analítico quanto como uma aliada em potencial na promoção da segurança humana e dos direitos humanos. Como Editor da RFIA desde o seu lançamento na primavera (no hemisfério Norte) de 2003, Hoover oferece uma perspectiva interna de como a publicação se tornou a primeira revista acadêmica a se concentrar exclusivamente nos papéis da religião nas relações internacionais, posicionando-se como um fórum e um catalisador de intercâmbio intelectual interdisciplinar e comunitário, de pesquisa colaborativa, de comentários não partidários e recomendações de políticas e de recursos curriculares para a crescente geração de líderes com engajamento internacional. Juntamente com um número crescente de diferentes instituições e iniciativas, a RFIA está trabalhando para elevar a religião de um patamar de “interesse especial” eletivo para um assunto central nas relações internacionais.

Palavras-Chave

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O campo das relações internacionais tem sido notoriamente lento para “captar a religião”, isto é, levar a religião a sério, tanto como um fator analítico quanto como uma aliada em potencial na promoção da segurança humana e dos direitos humanos. Uma pesquisa com mil e seiscentos artigos de quatro importantes periódicos de relações internacionais publicados no período de 1980-1999 mostrou que somente alguns deles tratavam a religião como uma variável importante.11. Daniel Philpott, Revolutions in Sovereignty: How Ideas Shaped Modern International Relations (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2001): 9. Os periódicos acadêmicos são International Organization, International Studies Quarterly, World Politics e International Security. Da mesma forma, conforme Jack Snyder observou, até recentemente a religião não estava presente de modo proeminente nas teorias de relações internacionais.22. Ver Jack Snyder, ed., Religion and International Relations Theory (New York: Columbia University Press, 2011). Em 1994, Henry Kissinger publicou um influente livro de 912 páginas chamado Diplomacia e não incluiu o termo “religião” no índice.

A relativa falta de investimento intelectual na temática religiosa no final do século XX é surpreendente, em especial, quando contrastada com o histórico contemporâneo de outros campos das ciências sociais. Consideremos, por exemplo, as reações acadêmicas divergentes a dois casos de mobilização religiosa “fundamentalista” que começaram no final da década de 1970.33. Algumas partes deste artigo são adaptações do capítulo introdutório de Dennis R. Hoover e Douglas Johnston, eds., Religion and Foreign Affairs: Essential Readings (Waco: Baylor University Press, 2012).

O primeiro caso trata da fundação da organização Moral Majority em 1979 nos Estados Unidos. Liderada por Jerry Falwell, um pastor radical da corrente fundamentalista do protestantismo evangélico estadunidense, a Moral Majority tornou-se a principal organização da direita religiosa, focada especialmente em questões relativas à chamada “guerra cultural”, como aborto e direitos LGBT. As ciências sociais não estavam particularmente bem preparadas para estudar e compreender o ressurgimento da religião conservadora na política estadunidense, mas uma parte significativa de acadêmicos reagiu desenvolvendo novas iniciativas de pesquisa e fóruns sobre religião. Por exemplo, a American Political Science Association estabeleceu uma Seção de Religião e Política em 1987.

O segundo caso de mobilização “fundamentalista” também data de 1979, e trata, especificamente, da Revolução Islâmica no Irã. Era de se esperar que um acontecimento tão significativo ajudasse a inspirar uma guinada para os estudos religiosos dentro do campo da pesquisa mais convencional em relações internacionais e do discurso de política externa. Mas grande parte do campo de relações internacionais continuou a preterir os estudos sobre religião como “mera sociologia” pelo resto do século XX. Em março de 2003, David Brooks escreveu na Atlantic Monthly e supôs sabiamente que:

Nos últimos vinte anos, os analistas de política interna refletiram bastante sobre os papéis que a religião e a ética desempenham na vida pública. Nossas elites intelectuais em política externa estão pelo menos duas décadas atrás. Elas seguem por meses ignorando a força da religião; então, quando confrontadas com algo inevitavelmente religioso, como a revolução iraniana ou o Taleban, começam a falar de fundamentalismo religioso e fanatismo, que subitamente explicam tudo. Depois de alguns dias refletindo sobre os fanáticos, voltam às suas análises seculares usuais.44. David Brooks, “Kicking the Secularist Habit.” Atlantic Monthly, março de 2003, acesso em 19 de junho de 2019, https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2003/03/kicking-the-secularist-habit/302680/.

Na verdade, em alguns aspectos, o atraso foi maior do que duas décadas. Demorou até 2013, por exemplo, para a International Studies Association estabelecer uma seção sobre Religião e Relações Internacionais.

Na realidade, na década de 1990, algumas exceções ao padrão geral de ignorar a religião começaram a surgir. No entanto, a exceção mais famosa é aquela que comprova a regra, que foi o artigo de 1993 de Samuel Huntington, “O Choque das Civilizações?” (“The Clash of Civilizations?”, na denominação original em inglês), publicado na Foreign Affairs, e seu livro homônimo publicado no ano seguinte. A arrojada e polêmica tese de Huntington era de que, com o fim da Guerra Fria, as diferenças entre as civilizações seriam agora a principal força que moldaria os conflitos internacionais. A religião foi envolvida na teoria porque Huntington definiu “civilizações” quase inteiramente segundo linhas religiosas, chamando atenção em particular para a “civilização islâmica” e o “Ocidente cristão”.55. Samuel Huntington, “The Clash of Civilizations?,” Foreign Affairs 72, no. 3 (verão de 1993): 22-49.

Hoje em dia, um quarto de século após “O Choque das Civilizações” ter sido publicado pela primeira vez, sua tese ainda é muito debatida.66. Veja a edição de primavera (no hemisfério Norte) de The Review of Faith & International Affairs, uma edição especial sobre “Um quarto de século do ‘Choque das civilizações’”, https://www.tandfonline.com/toc/rfia20/17/1?nav=tocList. Nesse sentido, ele tem sido útil para catalisar um renascimento da erudição relacionada às religiões nas relações internacionais. Mas também prestou um desserviço, pois enquadrava a relevância da religião em termos negativos e reducionistas, especialmente em relação à securitização do Islã, que tem sido uma tendência generalizada desde os ataques de 11 de Setembro. Além disso, a teoria do “choque” pouco ajudou a entender como a religião pode ser uma força poderosamente construtiva para o bem comum.

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Outra exceção ao padrão geral de ignorar a religião que emergiu na década de 1990 foi em uma área específica dos direitos humanos − a saber, a defesa do direito humano universal à liberdade de religião e crença (Freedom of Religion and Belief – FoRB, na denominação em inglês). Nos EUA, uma coalizão ecumênica de advocacy se formou para pressionar o Congresso a aprovar legislação exigindo que a política externa dos EUA concentrasse mais atenção e recursos nas ameaças à liberdade de religião e crença em âmbito internacional. A campanha levou à aprovação em 1998 da Lei de Liberdade Religiosa Internacional (International Religious Freedom Act – IRFA, na denominação original em inglês), que criou um Escritório de Liberdade Religiosa Internacional dentro do Departamento de Estado, uma Comissão independente bipartidária sobre Liberdade Religiosa Internacional (USCIRF, na sigla em inglês) e uma posição nova de Embaixador para a Liberdade Religiosa Internacional.

Esse movimento também ajudou a estimular os esforços do setor privado para estudar e promover as condições necessárias para a liberdade religiosa sustentável. Entre eles, destaca-se o Institute for Global Engagement – IGE (na denominação original em inglês).77. A missão do IGE é catalisar a liberdade religiosa internacionalmente. O IGE cultiva ambientes sustentáveis para a liberdade religiosa e prepara as pessoas para exercitar essa liberdade com responsabilidade. Ver Institute for Global Engagement, homepage, 2019, acesso em 19 de junho de 2019, www.globalengage.org. O IGE foi criado em 1997 como um centro dentro da grande ONG de assistência e desenvolvimento World Vision. Então, em 2000, Robert A. Seiple, o primeiro Embaixador para a Liberdade Religiosa Internacional de 1998 a 2000, incorporou o IGE como um think tank independente e apartidário.

O IGE rapidamente identificou inúmeras lacunas e preconceitos persistentes que afetavam o campo das relações internacionais quando se tratava de religião e engajamento internacional. Entre as elites intelectuais e políticas continuavam existindo distorções secularistas insistentemente persistentes, disseminado analfabetismo religioso e uma tendência a ver a religião como proeminente apenas no que toca às ameaças de segurança, e não ao bem-estar social e à segurança humana. E entre os líderes religiosos e outros atores de cunho religioso, o IGE frequentemente se deparou com uma análoga falta de compreensão sobre as realidades da geopolítica, os papéis e limites do Estado, dilemas de segurança, e assim por diante. Havia também controvérsias recorrentes em relação à defesa da liberdade religiosa internacional. Os críticos, frequentemente, denunciavam que grande parte dos ativistas nesse campo estava inclinada aos interesses do cristianismo evangélico e propensa a metodologias culturalmente insensíveis.

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Para ajudar a resolver essas questões, em 2003, o IGE criou uma seção acadêmica interdisciplinar e ecumênica, o Centro sobre Fé e Assuntos Internacionais (Center on Faith & International Affairs – CFIA, na denominação original em inglês). A missão do CFIA é fornecer aos acadêmicos, formuladores de políticas, jornalistas e líderes religiosos uma compreensão equilibrada do papel da religião na vida pública em âmbito internacional. O Centro patrocina inúmeros eventos e publica uma revista trimestral única, a Review of Faith & International Affairs – RFIA (na denominação original em inglês). Venho servindo como Editor da RFIA desde o seu lançamento na primavera (no hemisfério Norte) de 2003.

A RFIA é a primeira revista acadêmica a se concentrar exclusivamente nos papéis da religião nas relações internacionais. Desde sua concepção, a revista buscou não ser apenas mais um veículo estritamente acadêmico que ajudasse a sustentar um subcampo de uma área restrita, inteligível apenas para especialistas. Ao invés disso, a revista posicionou-se como um fórum e um catalisador de intercâmbio intelectual interdisciplinar e comunitário, de pesquisa colaborativa, de comentários não partidários e recomendações de políticas e de recursos curriculares para a crescente geração de líderes com engajamento internacional.

A revista ajudou a atender uma lacuna que estava esperando para ser preenchida. Em meados dos anos 2000, o campo de relações internacionais finalmente começou a despertar para a necessidade de “deixar os hábitos secularistas” e empreender novos investimentos no entendimento religioso, conforme David Brooks suplicou. O lançamento da revista em 2003 foi o início de uma tendência mais ampla que cresceu e amadureceu na última década e meia.88. Seguem apenas alguns dos diversos exemplos: Centro para as Religiões Mundiais, Diplomacia e Resolução de Conflitos, Arizona State University, criado em 2003; Iniciativa sobre Religião e Assuntos Internacionais, Luce Foundation, criada em 2005; Projeto sobre Religião e Assuntos Internacionais, Social Science Research Council, lançado em 2005; O livro de Madeleine Albright, The Mighty and the Almighty: Reflections on America, God, and World Affairs, publicado por HarperCollins em 2006; Centro de Berkley sobre Religião, Paz e Assuntos Internacionais, Georgetown University, fundado em 2006; Iniciativa sobre Religião e Política Externa, Council on Foreign Relations, fundada em 2006; Centro para o Estudo da Democracia, Tolerância e Religião, Columbia University, criado em 2006; Programa Certificado em Ensino Religioso Transcultural da Jackson School of International Studies, University of Washington, lançado em 2019. Com um início modesto, a RFIA atualmente é publicada e distribuída pela editora acadêmica global Routledge, e a Scopus (uma importante base de dados bibliográficos) regularmente classifica a publicação entre os mais importantes periódicos que se debruçam sobre religiões.

Além das atividades “regulares” da revista – que publica trabalhos minuciosos de estudiosos e profissionais amplamente respeitados – a RFIA utilizou diversas metodologias para ajudar a estabelecer conexões e produzir recursos de relevância prática para os desafios contemporâneos internacionais em direitos humanos e segurança humana. Em seguida, darei uma breve descrição geral sobre cinco dessas metodologias.

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Em primeiro lugar, a RFIA frequentemente patrocina conferências e simpósios concebidos para produzir artigos pertinentes. Por exemplo, na primavera (no hemisfério Norte) de 2019 a RFIA copatrocinou múltiplos painéis no Henry Symposium on Religion and Politics. Os painéis examinaram as tendências concorrentes do protestantismo evangélico entre o populismo de direita e o internacionalismo humanitário, e os artigos serão publicados na edição de setembro de 2019 da RFIA.

Em segundo lugar, a RFIA publica regularmente edições temáticas sobre temas contemporâneos urgentes. Muitas vezes, essas edições especiais são elaboradas em colaboração com outros institutos acadêmicos e de políticas públicas. Por exemplo, uma das edições anteriores da RFIA foi resultado da colaboração com um simpósio do US-Islamic World Forum. A edição examinou os usos e abusos das exceções da “ordem pública e moralidade pública” às proteções dos direitos humanos no direito internacional dos direitos humanos. Outro exemplo foi a edição temática que examina o casamento infantil e o direito familiar, produzida em colaboração com pesquisadores do Banco Mundial.

A terceira metodologia que a revista usou para ajudar a catalisar mudanças em longo prazo é o patrocínio de livros editados. Exemplos de tais livros que compreendem no todo ou em parte artigos anteriormente publicados na RFIA incluem:

  • Mariano P. Barbato, Robert J. Joustra, e Dennis R. Hoover, eds., Popes on the Rise: Modern Papal Diplomacy and Social Teaching in World Affairs (Oxford: Routledge, 2019).
  • Dennis R. Hoover, ed., Religion and American Exceptionalism (Oxford: Routledge, 2014).
  • Dennis R. Hoover e Douglas Johnston, eds., Religion and Foreign Affairs: Essential Readings (Waco: Baylor University Press, 2012).

A quarta metodologia, intimamente relacionada com a terceira, é a tradução em língua estrangeira de compêndios de artigos da RFIA. Por exemplo, uma edição temática anterior da RFIA sobre religião, direito e sociedade da Birmânia/Mianmar foi traduzida para o birmanês e incluída na programação de um programa de treinamento de certificação em Mianmar (Birmânia), copatrocinado pela IGE. Nos próximos anos, atividades semelhantes de tradução serão produzidas para programas educacionais patrocinados pela IGE no Vietnã e no Uzbequistão.99. O projeto de Mianmar foi apoiado pela Fundação John Templeton, e os projetos do Vietnã e do Uzbequistão são apoiados pelo Templeton Religion Trust.

Por fim, um quinto exemplo da metodologia RFIA é o patrocínio de concursos de redação. Por exemplo, em conjunto com o Instituto Leimena (Indonésia), em 2015-2016, a RFIA patrocinou um concurso internacional de artigos (para estudantes e profissionais) sobre a liberdade de religião e crença no Sudeste da Ásia e no Ocidente. Os artigos vencedores foram publicados na RFIA posteriormente.

Em conclusão, juntamente com um número crescente de diferentes instituições e iniciativas,1010. Incluindo algumas instituições religiosas que há muito tempo operam ONGs e comissões filiadas focadas na defesa internacional da justiça social, paz e direitos humanos (ver, por exemplo, a Comissão de Igrejas em Assuntos Internacionais, que faz parte do Conselho Mundial de Igrejas). a RFIA está trabalhando para elevar a religião de um patamar de “interesse especial” eletivo para um assunto central nas relações internacionais. Com certeza, a “religião” continua sendo um assunto altamente complexo e delicado, com riscos inerentes à análise e ao engajamento. Como Bryan Hehir, da Harvard Kennedy School, brincou uma vez, trazer a religião para as relações internacionais é como uma cirurgia no cérebro − necessária, mas também arriscada se não for bem executada. A RFIA é um exemplo proeminente da crescente tendência na promoção de bolsas de estudo e de formações com o objetivo de formar mais líderes − seculares e religiosos − que estejam preparados para atuar como “cirurgiões cerebrais” hábeis e experientes na intersecção crítica entre religião, direitos humanos e segurança humana em âmbito internacional.

Dennis R. Hoover - Estados Unidos

Dennis R. Hoover é editor da Review of Faith & International Affairs e Senior Fellow no Institute for Global Engagement (IGE). Entre seus livros estão Modern Papal Diplomacy and Social Teaching in World Affairs, coeditado com Mariano Barbato e Robert Joustra (Routledge, 2019) e Religion and American Exceptionalism (Routledge, 2014).

Recebido em junho de 2019.

Original em inglês. Traduzido por Fernando Scire.