Entrevista com representantes da Casa das Mulheres do Norte e Leste da Síria
Graças às lutadoras majoritariamente curdas da milícia das Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ, sigla para Yekîneyên Parastina Jin na língua curda), muitas pessoas agora sabem que uma revolução feminina11. “Women’s Laws in Rojava – Northern Syria,” Kongra Star, 6 de abril de 2019, acesso em 7 de julho de 2020, https://eng.kongra-star.org/2019/04/06/womens-laws-in-rojava-northern-syria/. está em andamento no Norte e Leste da Síria (NES, na sigla original em inglês), a região autônoma mais conhecida como Rojava. As mulheres estão se organizando de forma autônoma na sociedade civil e participando como copresidentes com representação garantida de 50% − dos mais altos níveis da nova administração até as comunas, que são os alicerces da democracia local.22. “Explainer: Communes – the building block of democratic confederalism,” Centro de Informações de Rojava, 23 de maio de 2020, acesso em 7 de julho de 2020, https://rojavainformationcenter.com/2020/05/explainer-communes-the-building-block-of-democratic-confederalism/.
Entre os centros mais movimentados e vibrantes da nova democracia no Norte e Leste da Síria33. “Beyond the Frontlines: The Building of the Democratic System in North and East Syria,” Centro de Informações de Rojava, 19 de dezembro de 2019, acesso em 7 de julho de 2020, https://rojavainformationcenter.com/storage/2019/12/Beyond-the-frontlines-The-building-of-the-democratic-system-in-North-and-East-Syria-Report-Rojava-Information-Center-December-2019-V4.pdf. estão as Casas das Mulheres, centros que podem ser encontrados em cada uma das cidades e vilas da região. Suas portas estão abertas para qualquer mulher que procure assistência, aconselhamento ou mediação de uma equipe de mães, avós e líderes comunitárias femininas locais.
Para entender mais sobre essas instituições únicas, conversamos com Ilham Omer e Bahiya Murad, fundadoras e copresidentes da Mala Jin (Casa das Mulheres) original em Qamishlo e integrantes do Conselho de Justiça das Mulheres na região de Jazira, no Norte e Leste da Síria. A entrevista foi conduzida pelo Centro de Informações de Rojava44. Centro de Informações de Rojava, Homepage, 2020, acesso em 7 de julho de 2020, https://rojavainformationcenter.com/. em 29 de março de 2020 e editada para fins de extensão e clareza.
Centro de Informações de Rojava • Como começou o projeto Casa das Mulheres?
Ilham Omer • Nossa organização política entre mulheres locais vem acontecendo há anos, mas em segredo. Fiquei surda do ouvido direito depois de ter sido espancada pelo regime, em 1988. Eles não aceitavam que mulheres se organizassem de forma autônoma.
Quando começamos a trabalhar abertamente, em 20 de março de 2011, estávamos ao mesmo tempo empolgadas e com medo porque sabíamos das dificuldades que enfrentaríamos. Pensávamos em como libertar as mulheres e permitir que vivessem como iguais em suas famílias e bairros e em como ajudar as mulheres a se conhecerem melhor e a se organizarem politicamente dentro de sua sociedade.
Naquela época, éramos as únicas três membras e, por isso, encontramos muitos obstáculos. Frequentemente nos sentávamos para discutir como poderíamos fazer para sermos aceitas em nossa sociedade.
CIR • Como a Casa das Mulheres realiza seu trabalho?
Bahiya Murad • Quando uma mulher está com um problema, primeiro nos sentamos separadamente com a esposa para discutir com ela; depois com o marido. Em seguida, reunimos todo mundo para discutir seus pontos de vista, entendermos uns aos outros e chegarmos a um entendimento comum.
Nosso objetivo é resolver problemas através do diálogo,55. Anja Hoffmann, “‘Letting society solve its own problems’: Developing a New Justice System in Northern Syria.” Komun Academy, 24 de novembro de 2018, acesso em 7 de julho de 2020, https://komun-academy.com/2018/11/24/letting-society-solve-its-own-problems-developing-a-new-justice-system-in-northern-syria/. sem recorrer aos tribunais. Quando não conseguimos resolver um desses casos, nós o remetemos ao Tribunal de Justiça.66. “Justice System in Rojava”, Biehlonbookchin, (s.d.), acesso em 7 de julho de 2020, http://www.biehlonbookchin.com/justice-system-in-rojava/. Mas, muitas vezes, eles nos enviam o caso de volta porque estamos mais capacitadas a chegar a uma reconciliação e a um consenso.
É um modo de pensar oposto ao do Estado Islâmico [ISIS, sigla em inglês para Islamic State of Iraq and Syria]: somos organizadas em grupo, sem hierarquia; um sistema equitativo no qual nenhum ponto de vista é imposto de cima para baixo.
IO • As mulheres que nos procuram não têm nada, só bebês com fome nos braços.77. Bethan McKernan, “Shifting Frontlines Intensify Syria’s Humanitarian Crisis.” The Guardian, 17 de outubro de 2019, acesso em 7 de julho de 2020, https://www.theguardian.com/world/2019/oct/17/shifting-frontlines-syria-leave-aid-agencies-struggling-respond. Ficamos felizes em sentarmos com elas para conversar por três horas. Não nos aproximamos com qualquer tipo de autoridade – apenas como mulheres, pois aprendemos a discutir os assuntos como mães. Ouvimos os dois lados, aconselhamos e tentamos encontrar uma solução.
Procuramos as famílias, discutimos os problemas e nos asseguramos de que todos entendam quais são seus direitos. Muitas vezes, abordamos a situação com base nos posicionamentos das pessoas. Se forem muçulmanas, perguntamos por que se colocam contra o Islã.
BM • Em 2014, a Administração Autônoma do Norte e do Leste da Síria adotou novas leis em matéria de direitos das mulheres.88. “Women’s Laws in Rojava…,” 6 de abril de 2019. Elas eram absolutamente necessárias porque, em nossa sociedade, muitas meninas e mulheres estavam sendo obrigadas a se casar, estupradas e submetidas a abusos. Particularmente em tempos de guerra,99. “Turkey’s War Against Civilians,” Centro de Informações de Rojava, 2 de dezembro de 2019, acesso em 7 de julho de 2020, https://rojavainformationcenter.com/2019/12/report-turkeys-war-against-civilians-1/. práticas retrógradas vêm à tona.
Na Casa das Mulheres, vemos a necessidade dessas leis, que protegem mulheres e famílias, crianças e homens, e nos permitem resolver disputas que surgem entre casais. Elas também garantem que os direitos das pessoas sejam respeitados quando ocorrer um divórcio.
IO • Mas nem sempre aceitamos as decisões dos tribunais. Em Heseke, um homem matou sua esposa e foi condenado a apenas quatro anos de prisão. Levamos centenas de mulheres às ruas para protestar e mudaram a sentença dele para quinze anos.
Também tomamos muitas iniciativas no campo econômico. Proporcionamos oportunidades de emprego para mulheres,1010. Rahila Gupta, “Women’s Co-Operatives in Rojava.” Co-operation in Mesopotamia, 2016, acesso em 7 de julho de 2020, https://mesopotamia.coop/womens-co-operatives-in-rojava/. como as que estão se divorciando, fugindo de relacionamentos abusivos, cujos maridos morreram na guerra ou que precisam de apoio. Isso lhes permite desenvolver autonomia. Também criamos refúgios para as mulheres, para que elas tenham um lugar seguro para ir, caso precisem fugir de casa.
Além disso, conduzimos projetos educacionais em paralelo e damos aulas em escolas, nas famílias e nas comunidades1111. “Chai by Chai, Village by Village, The Work Goes On,” Co-operation in Mesopotamia, 2019, acesso em 7 de julho de 2020, https://mesopotamia.coop/chai-by-chai-village-by-village-the-work-goes-on/. (as assembleias de bairro e povoados, que são os alicerces da democracia direta em Rojava). Reunimos mulheres de cinco comunidades e realizamos programas educacionais sobre, por exemplo, os direitos das mulheres ou os perigos da mentalidade do Estado Islâmico, ou porventura convidamos uma médica para conversar sobre a saúde da mulher. Temos até nosso próprio programa de rádio.
CIR • Vocês podem citar alguns exemplos de casos em que trabalharam?
IO • Nos primeiros anos da revolução, ainda não havia serviço de segurança. Descobrimos que uma mulher estava sendo abusada e presa em casa contra a sua vontade. Não tínhamos armas nem ninguém para nos proteger, mas fingindo que estávamos interessadas em comprar a casa, o homem nos deixou entrar. Eu disse que precisava ir à cozinha e vi que a mulher estava acorrentada lá. Conseguimos resgatar a mulher, encontrar trabalho para ela em alfaiataria e um lugar seguro para ela morar com os filhos.
BM • Até agora, a maioria dos casos que vimos estão relacionados a meninas adolescentes que vêm até nós em busca de um divórcio. Em nossa sociedade, o divórcio tem muitas consequências e é visto como muito grave. Por exemplo, em uma área árabe, pode-se ter a expectativa de que uma garota se case aos 14 anos. Conversamos com ela e nos asseguramos de que seja respeitado seu direito de tomar sua própria decisão.
IO • Especialmente por causa da guerra, as pessoas ficaram muito pobres e, assim, procuram casar suas filhas desde cedo (para receber um dote e ter menos bocas para alimentar em casa). Também lidamos com casos de homens que querem se casar novamente, mesmo quando sua atual esposa vive na pobreza, ou ir para a Europa e abandonar suas esposas, deixando-as sem um ganha-pão. Coletamos dinheiro para famílias que precisam de apoio financeiro, ou para doentes que não podem trabalhar e também para apoiar mulheres que querem sair de casa e estudar. Existem também orfanatos para crianças cujas famílias não podem cuidar delas.
Por outro lado, às vezes as mulheres querem se casar, mas suas famílias não permitem. Falamos com o homem e vemos se ele é uma boa pessoa e, se for, conversamos com a família… e acabamos convidadas para o casamento!1212. “Two Weddings, 400,000 Funerals: ‘Sometimes We Have To Celebrate’,” It’s Going Down, 21 de novembro de 2018, acesso em 7 de julho de 2020, https://itsgoingdown.org/two-weddings-400000-funerals-sometimes-we-have-to-celebrate/.
CIR • Como o projeto tem se espalhado e se desenvolvido?
IO • Nosso trabalho começou em Qamishlo. A primeira Casa das Mulheres foi aqui. A segunda foi inaugurada na cidade de Afrin, que agora foi ocupada por forças turcas. Depois disso, abrimos outra em Kobane e continuamos expandindo para outras regiões. Quando novos territórios foram libertados do poder do Estado Islâmico, abrimos Casas das Mulheres neles – em Til Hemis, Til Kocher, Til Berak. Um ano após a libertação de Raqqa, fomos até lá e montamos uma Casa das Mulheres. Damos muita importância a nossos projetos em Raqqa e outras regiões árabes,1313. Rod Nordland, “Women Are Free, and Armed, in Kurdish-Controlled Northern Syria.” The New York Times, 24 de fevereiro de 2018, acesso em 7 de julho de 2020, https://www.nytimes.com/2018/02/24/world/middleeast/syria-kurds-womens-rights-gender-equality.html. como Tabqa, Manbij e Deir-ez-Zor. Hoje existem vinte Casas das Mulheres. Mais recentemente, duas novas casas foram criadas pela comunidade cristã síria. Nossas irmãs cristãs também enfrentam ausência de direitos em áreas como o divórcio.
BM • Na Casa das Mulheres de Qamishlo, lidávamos com 70 a 80 casos por mês. Agora, reduzimos para 30 a 45, mas isso ocorre porque tivemos êxito em nossos programas educacionais e transferimos a responsabilidade para as comunidades locais. As mulheres agora podem conversar sobre seus problemas lá mesmo.
CIR • Como estão evoluindo os direitos das mulheres no Norte e no Leste da Síria?
OI • A guerra na Síria, e em Rojava em particular, trouxe muitos danos e sofrimento1414. “Six Months On: Political, Security and Humanitarian Outcomes of Turkey’s 2019 Invasion of North and East Syria,” Rojava Information Center, 23 de maio de 2020, acesso em 7 de julho de 2020, https://rojavainformationcenter.com/2020/05/six-months-on-political-security-and-humanitarian-outcomes-of-turkeys-2019-invasion-of-north-and-east-syria/. e exigiu muitos sacrifícios. As mulheres, em particular, pagaram um preço alto1515. Women Defend Rojava, Homepage, 2020, acesso em 7 de julho de 2020, https://womendefendrojava.net/en/. nesta revolução para se defenderem, suas famílias e suas sociedades. Milhares de mulheres de Idlib, Tel Abyad, Sere Kaniye e Afrin estão sofrendo em tendas nos acampamentos de refugiados porque suas casas foram destruídas.
Por outro lado, antes da revolução, as mulheres eram vítimas de muitos abusos. Seus direitos não eram reconhecidos. Elas viviam em dificuldades e sob violência. Mas isso estava oculto e nenhuma força em jogo lhes daria apoio. Agora, graças à revolução, grandes mudanças foram feitas. A mentalidade das pessoas evoluiu. A equidade avançou. Nossa sociedade está corrigindo seus erros. Muitas mulheres se sacrificaram pela liberdade de que agora desfrutamos.
Para seguir em frente, a educação é a coisa mais importante. Precisamos garantir que os direitos que as mulheres conquistaram sejam passados para seus filhos e suas filhas. Precisamos implantar os direitos das mulheres no coração dos pais e dos homens.
CIR • Que dificuldades vocês enfrentam no seu trabalho?
OI • Encontramos dificuldades, particularmente, com nossos irmãos e irmãs árabes por causa da tradição da poligamia e pelo fato de eles, muitas vezes, casarem-se com crianças. Agora, isso está oficialmente proibido e, portanto, muitas pessoas passaram a nos apoiar. Mas ainda enfrentamos perigos. Muitos anos atrás, homens me atacaram enquanto eu caminhava para a Casa das Mulheres, em Qamishlo. Eles me agarraram e tentaram me jogar em uma van. Eu acredito que eram ligados ao regime sírio. No ano passado, a Casa das Mulheres em Deir-ez-Zor foi atacada por homens em motos com metralhadoras.
BM • No passado, as pessoas chamavam a Mala Jin (“Casa das Mulheres”) de Mala Berdanî (“Casa do Divórcio”) ou Mala Xirabî (“Casa da Destruição”). Eles nos acusaram de incentivar o divórcio entre as pessoas e espalhar descontentamento. Agora, as pessoas entenderam que não somos um lugar para o divórcio, mas uma instituição que se esforça para resolver problemas e reconciliar a sociedade – homens e mulheres.
OI • Agora, até homens vêm até nós quando têm problemas – por exemplo, havia um homem ligado ao regime cuja esposa o agrediu e rachou a cabeça dele, e até ele veio nos pedir ajuda.
CIR • Como vocês estão disseminando essas ideias?
OI • Agora, os territórios da Administração Autônoma se expandiram e diferentes comunidades entre os refugiados internos nos procuram para obter ajuda na resolução de seus problemas. Trabalhamos para apoiar mulheres que perderam todos os seus direitos, para criar uma sociedade saudável e para evitar abusos, dando especial importância a nosso trabalho nas comunidades árabes e naquelas recentemente libertadas do jugo do Estado Islâmico. Temos três equipes trabalhando nos acampamentos com mulheres que ingressaram ou viveram sob o Estado Islâmico.1616. Frank Gardner, “Islamic State Group: Europe Has Ticking Time Bomb in Prison Camps.” BBC, 26 de outubro de 2019, acesso em 7 de julho de 2020, https://www.bbc.com/news/world-middle-east-50179735.
É um trabalho muito difícil, mas já vimos algumas mudanças. Por exemplo, há uma mulher alemã que me chamava de kuffar (infiel) e sempre usava um niqab (véu). Mas conversamos bastante e agora, quando a vejo no acampamento, ela anda com o rosto aberto. Os tipos de programas de educação necessários a essas mulheres são diferentes dos programas para mulheres na sociedade civil. É algo que estamos desenvolvendo com o (movimento de mulheres locais) Kongreya-Star1717. “Explainer: Kongra Star, the Women’s Congress,” Rojava Information Center, 4 de junho de 2020, acesso em 7 de julho de 2020, https://rojavainformationcenter.com/2020/06/explainer-kongra-star-the-womens-congress/.: levando programas de desradicalização para o acampamento Hol (abrigo de 10.000 mulheres e crianças estrangeiras ligadas ao Estado Islâmico, além de 60.000 pessoas locais, muitas delas com vínculos ao Estado Islâmico).
Um projeto como o nosso não existe em nenhum outro lugar do mundo, mas essas ideias estão se espalhando. Agora, conselhos de mulheres estão sendo criados na Europa com base nos métodos que criamos no Curdistão. Estamos prontas para conversar com mulheres em qualquer lugar do mundo pelo WhatsApp e ajudá-las a configurar programas semelhantes. Também estamos satisfeitas com a procura de pessoas voluntárias e revolucionárias1818. Internationalist Commune, Homepage, 2020, acesso em 7 de julho de 2020, https://internationalistcommune.com/. que querem trabalhar conosco e dar apoio aos direitos humanos. Agradecemos e prestamos homenagem a elas. Isso mostra que a humanidade ainda existe no mundo.
Não somos políticas e não somos soldados. Somos mães cujos filhos foram perdidos na guerra contra o Estado Islâmico e a Turquia. Tudo o que queremos é paz – mas construir a paz dá trabalho.
Entrevista conduzida por Thomas McClure em abril de 2020.