Ensaios

A violência de Estado e a busca pelo acesso à justiça11. Este artigo foi elaborado a partir dos resultados da pesquisa “Violência do Estado no Brasil: Um Estudo dos Crimes de Maio de 2006 na Perspectiva da Justiça de Transição e da Antropologia Forense,” Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Relatório Final, maio de 2018, acesso em 4 de julho de 2018, https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/Relatorio_final_2.pdf. Outros pesquisadores/as envolvidos/as: Profa. Dra. Claudia R. Plens, Profa. Dra. Maria Elizete Kunkel, Prof. Dr. Bruno Konder Comparato, Profa. Dra. Camila Diogo de Souza, Marina Figueiredo, Rebeca Padrão Amorim Puccinelli, Edson Barbosa da Rocha, Delphine Denise Lacroix, Lorrane Rodrigues, Bruno Everton Bezerra da Rocha, Natália Aurora dos Santos.

Raiane Assumpção, Fernanda Frinhani, Javier Amadeo , Aline Lúcia Gomes, Débora da Silva e Valéria Silva

Uma análise a partir das narrativas dos familiares das vítimas dos Crimes de Maio de 2006 ocorridos na Baixada Santista, São Paulo

Olly Francis

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RESUMO

O tema deste artigo são as violações de Direitos Humanos decorrentes da violência de Estado, materializada nos crimes ocorridos na Baixada Santista/SP em maio de 2006. Parte da pesquisa Violência do Estado no Brasil: um estudo dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da Justiça de Transição e da Antropologia Forense, realizada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, da Universidade Federal de São Paulo – CAAF/UNIFESP, focando nas narrativas dos familiares das vítimas, o artigo analisa a violência de Estado na negativa ao acesso à justiça, à informação e à memória. Conclui-se que houve uma permanente negação de justiça na falta de investigação e no arquivamento precoce de inquéritos. Aos familiares negou-se o direito à informação, foram sujeitados a ironias, perseguição, calúnia. Mostra-se fundamental dar visibilidade às histórias e às lutas para que não sejam esquecidos e para que não continuem excluídos da proteção de Direitos e do Acesso à Justiça.

Palavras-Chave

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Introdução

Há dez anos o Relator Especial de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Philip Alston,22. Philip Alston, “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais Incluindo o Direito ao Desenvolvimento – Relatório do Relator Especial de Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias.”Conselho de Direitos Humanos, 28 de agosto de 2008, acesso em 12 de março de 2018, http://www.abant.org.br/conteudo/000NOTICIAS/OutrasNoticias/portugues.PDF. apontou a violência de Estado no Brasil como contumaz violadora de Direitos Humanos. O Estado não está autorizado a praticar execuções extrajudiciais, privando os indivíduos de suas vidas, devendo, pelo contrário, proteger seus cidadãos de serem vítimas de assassinatos e garantir que os acusados destes crimes tenham direito ao devido processo legal e à ampla defesa.

Porém, o Estado brasileiro tem sido autor de inúmeras violências, entre elas as cometidas por membros das corporações policiais. As práticas abusivas contam, comumente, com o apoio da população,33. Guaracy Mingardi, “Apresentação,” in Bala Perdida: A Violência Policial no Brasil e os Desafios Para Sua Superação, Bernardo Kucinski et al. (São Paulo: Boitempo, 2015) (e-book). refém do medo fruto das altas taxas de criminalidade e da descrença no sistema de justiça criminal moroso.44. Alston, “Promoção e Proteção...”, 2008, p. 2.

Segundo o relatório de 2017 da Human Rights Watch (HRW), os “abusos cometidos pela polícia, incluindo execuções extrajudiciais, contribuem para um ciclo de violência, que prejudica a segurança pública e coloca em risco a vida de policiais”.55. “Relatório Mundial 2017: Nossa Revisão Anual dos Direitos Humanos ao Redor do Mundo – Capítulo Brasil,” Human Rights Watch, 2017, acesso em 13 de março de 2018, https://www.hrw.org/pt/world-report/2018/country-chapters/313303. O 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 201766. “11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2017),” Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP, 2017, acesso em 12 de março de 2018, http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2017/12/ANUARIO_11_2017.pdf. revela que em 2016, 4222 civis foram mortos por policiais e que 437 policiais foram mortos, a maioria deles fora de serviço. Mata-se com a justificativa de proteger a sociedade.

Os dados demonstram que a violência é recorrente na sociedade brasileira e de modo especial tem vitimado a população pobre, jovem, negra e da periferia dos centros urbanos,77. Julio Jacobo Waiselfisz, Mapa da Violência 2016. Homicídios por Arma de Fogo (Brasília: Flacso, 2016): 68-72. sendo apontado um verdadeiro genocídio desta população. A violência do Estado se materializa ao (i) negar a garantia de acesso aos direitos básicos, (ii) fazer uso ostensivo da força policial, (iii) dificultar o acesso ao sistema de justiça e (iv) negligenciar o acesso à informação e ao direito dos familiares à memória.

Em maio de 2006 observamos a exacerbação da violação de direitos, o que poderia ser descrito como um “cenário de excepcionalidades no Estado Democrático de Direito”.88. Sérgio Adorno e Fernando Salla, “Criminalidade Organizada nas Prisões e os Ataques do PCC,” Estudos Avançados 21, no. 61 (2007): 7. Os Crimes de Maio de 2006, de acordo com as pesquisas sobre o tema,99. “Relatório Sobre os Crimes de Maio de 2006,” Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CONDEPE, SDH/Comissão Especial Crimes de Maio, 2013, acesso em 4 de julho de 2018, http://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/old/cndh/relatorios/relatorio-c.e-crimes-de-maio; “Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo em Maio de 2006,” Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ, junho de 2008, acesso em 4 de julho de 2018, http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/analise%20os%20impactos%20dos%20ataques%20do%20PCC%20em%20SP%20-%20maio%202006.pdf; “São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006,” International Human Rights Clinic/Justiça Global, maio de 2011, acesso em 4 de julho de 2018, http://www.global.org.br/wp-content/uploads/2011/05/SaoPaulosobAchaque_JusticaGlobal_2011.pdf; Movimento Mães de Maio, Mães de Maio: Do Luto à Luta (São Paulo: Giramundo Artes Gráficas, 2011). somaram 564 mortes por armas de fogo no período de 12 a 26 de maio, no Estado de São Paulo, focalizados na capital e sua região metropolitana e na Baixada Santista.

Estudos e relatos sustentam que os crimes foram resultado de enfrentamentos entre integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) e as forças de segurança do Estado. Porém, os dados demonstram que esse enfrentamento ocorreu apenas no início do período – dias 12 e 13 de maio.1010. Durante os três primeiros dias (de 12 a 14 de maio) o PCC realizou dezenas de ataques e como consequência foram mortas pessoas ligadas a este grupo e também agentes públicos. De 14 até 20 de maio as evidências indicam que houve uma decisão oficial de iniciar uma ação repressiva em resposta aos ataques.1111. Nas 72 horas subsequentes ao dia 14 de maio (Dia das Mães) foram assassinadas 60 pessoas por agentes da segurança pública na capital, na região metropolitana de São Paulo e da Baixada Santista. Somente no dia 16 de maio, a polícia matou 29 pessoas em supostos confrontos com membros do PCC. Informações provenientes da Ouvidoria da polícia também indicaram que grupos de extermínio, entre os quais se suspeita da participação de policiais, executaram 84 pessoas entre os dias 14 e 20 de maio (“São Paulo sob Achaque,” IHRC/Justiça Global, 2011, 60-1).

Segundo relatório do CONDEPE, neste período houve aumento do número absoluto de mortes (sobretudo homens jovens) decorrentes de disparo de armas de fogo, comparado com anos anteriores, com elevada média de disparos por vítimas (4.7) e concentração dos disparos nas regiões letais. A maior parte das mortes apresenta padrão peculiar a grupos de extermínio, com evidências da participação de policiais ou ex-policiais.1212. Dado enfatizado em relatos, matérias de jornais, documentos oficiais e denúncias de familiares das vítimas, apresentados na pesquisa.

A pesquisa aborda essa violação de direitos relatada por diversos familiares das vítimas dos crimes de maio de 2006, sobretudo pelos familiares do Movimento Independente Mães de Maio. A pesquisa aconteceu em colaboração institucional entre o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e o Centro Latino-Americano, Escola de Estudos Interdisciplinares e de Área da Universidade de Oxford, Inglaterra. Contou ainda com o financiamento do Fundo Newton (Newton Fund), iniciativa do governo britânico operada pelo Conselho Britânico no Brasil, para o desenvolvimento econômico e social por meio da ciência, da pesquisa e da tecnologia.1313. Para mais informações: Newton Fund, Homepage, 2018, acesso em 4 de julho de 2018, http://newtonfund.ac.uk.

O intuito da pesquisa foi reanalisar os chamados Crimes de Maio de 2006, a partir de uma proposta interdisciplinar e de atuação conjunta com o movimento social, a fim de possibilitar uma nova perspectiva sobre os eventos.

Os Crimes de Maio foram alvo de diversas pesquisas, tendo sido já apontados resultados que indicam os agentes do Estado como os maiores perpetradores das ações que levaram à morte centenas de pessoas. Assim, a pesquisa citada buscou um refinamento dos dados na perspectiva de contribuir com a elucidação das circunstâncias dos crimes e reabrir o debate sobre a responsabilização do Estado na investigação dos delitos e na condenação de seus executores.

A pesquisa abordou 60 casos de pessoas assassinadas por armas de fogo (execução de civis e de agentes do Estado), ocorridos entre os dias 12 e 20 de maio de 2006 na região metropolitana da Baixada Santista, estado de São Paulo, Brasil, para a realização de uma análise a partir do uso de diversas metodologias e cruzamento de várias fontes de dados: I) análise bibliográfica e documental (Boletins de Ocorrência, Laudos Necroscópicos e Inquéritos Policiais); II) análise de material midiático (notícias veiculadas na mídia local e nacional); III) elaboração de mapas georreferenciados sobre a dinâmica espacial dos crimes; IV) análise forense dos casos das vítimas a partir de reconstrução 3D de imagens médicas (análise balística); e V) construção e análise de narrativas a partir dos relatos dos familiares das vítimas, contendo o contexto social, a história de vida, circunstância da morte, procedimentos após a morte e informações sobre o processo judicial.

Assim, a pesquisa apresentou um percurso metodológico inovador, obteve dados significativos e respostas concretas para a questão norteadora da investigação e fortaleceu as pautas dos movimentos sociais e das comunidades que são acometidas, cotidianamente, pela violência de agentes do Estado. Os resultados da pesquisa possibilitaram uma interpretação sobre os crimes de maio de 2006 que reitera o seu caráter de crime de execução de civis e a ausência de investigações qualificadas para identificação e julgamentos dos responsáveis. Esses mecanismos demonstram que as orientações e/ou ordens, como também a ausência destas, geraram um modo de operar que ganhou legitimidade extraoficial, como demonstra o número de mortes classificadas como “Mortes decorrentes de intervenção de policiais”.

Neste artigo optamos por apresentar um dos elementos analisados na pesquisa:1414. A partir da leitura das narrativas procedeu-se à análise de conteúdo, buscando compreender a dinâmica da violência de Estado, focando nas informações sobre o processo, na perspectiva do acesso à justiça. Laurence Bardin, Análise de Conteúdo (Lisboa: Edições 70, 1979). a violência de Estado consubstanciada na negativa de acesso à Justiça aos familiares de vítimas dos Crimes de Maio de 2006, utilizando narrativas1515. Foram analisadas narrativas de onze familiares de 10 vítimas dos Crimes de Maio, fruto do trabalho de campo desenvolvido pelas pesquisadoras Débora Maria da Silva - Fundadora e Coordenadora do Movimento Mães de Maio; Aline Lúcia de Rocco Gomes e Valéria Ap. de Oliveira Silva- CAAF/Unifesp, que consistiu em localizar os endereços dos familiares das vítimas dos crimes de maio, coletar os depoimentos e elaborar as narrativas. construídas no processo da pesquisa, de modo especial as informações sobre os processos judiciais.1616. Ao longo do texto, o uso da expressão processo judicial, referentes aos Crimes de Maio, deve ser entendida em sentido lato, uma vez que os Inquéritos Policiais (Procedimentos Administrativos) não chegaram a se tornar Ações Penais (Processos Judiciais).

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1. A Violência Estrutural no Brasil: uma Análise das Desigualdades, da Exclusão e da Dominação

A discussão sobre a violência de Estado no Brasil, parte do debate sobre violência estrutural, resultado de uma sociedade desigual, que não incorpora todos os segmentos sociais na plena cidadania. A violência de Estado nos remete a uma sociedade marcada pela colonização e a escravidão, pelo legado da ditadura militar e pelos desafios da construção de uma democracia a partir dos mecanismos da justiça de transição.

A violência estrutural1717. Maria Cecília de Souza Minayo e Edinilza Ramos de Souza, “Violência e Saúde Como um Campo Interdisciplinar de Ação Coletiva,” História, Ciências e Saúde - Manguinhos 4, no. 3 (fev. 1998): 8. revela formas de dominação decorrentes das contradições entre os que querem manter privilégios e os que se rebelam contra a opressão. As garantias democráticas existentes no Brasil, a partir dos avanços da constituição de 1988, não impediram continuidades no que se refere à violência estrutural.

Somada a este processo de constituição da estrutura e dinâmica social e da cultura política brasileira, marcada pela violência e desigualdade, é importante destacar o modo específico de atuação do Estado em diferentes momentos históricos.

As violações aos Direitos Humanos nos Anos de Chumbo ensejaram a denúncias contra o Brasil ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, durante o período em questão e após a abertura política.

As denúncias efetivadas no período ditatorial foram submetidas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos entre 1970 e 1974, referindo-se a casos de prisões arbitrárias, tortura e assassinatos.1818. Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional (São Paulo: Saraiva, 2007). Apesar do pequeno número de casos, comumente se relacionavam ao assassinato ou detenção de um grande número de pessoas.1919. Foram submetidos nove casos no total. Como exemplo: Caso 1788 (assassinato de 104 pessoas); Caso 1835 (detenção arbitrária de 53 pessoas); Caso 1684 (alegou a existência de pelo menos 12 mil presos políticos no Brasil). (Piovesan, Direitos Humanos..., 2007, p. 297-299).

Mesmo com a abertura política e a Constituição de 1988, o Brasil não conseguiu romper com a estrutura de violências engendrada no período da Ditadura, “quando torturas e assassinatos tornaram-se política de Estado”.2020. Luis Eduardo Soares, “Prefácio,” in Política e Ditadura: A Arquitetura Institucional da Segurança Pública de 1964 a 1988 – Volume 1, Maria Pia Guerra (Brasília, Ministério da Justiça, 2016): p. IX, acesso em 14 de abril de 2018, https://policiaeditadura.files.wordpress.com/2016/09/policia-miolo-interativo-1-1.pdf. Sem a mudança das organizações não é possível a mudança das culturas corporativas.2121. Ibid., p. IX.

O que se observa após o fim da Ditadura é a reprodução do mesmo padrão de violência. Em dados de 2007, o Brasil havia sido denunciado no Sistema Interamericano por violência policial ocorrida a partir de 1982 em 34 Casos.2222. Ibid., p. 305. As denúncias se referem a abuso e violência policial que implica no assassinato de vítimas inocentes e a insuficiência de resposta do Estado Brasileiro às violações. Em todos os casos, o pedido é o mesmo: “condenação do Estado Brasileiro a processar e a punir agentes responsáveis pelas violações cometidas, bem como a indenizar as vítimas”.2323. Ibid., p. 308. Isto é, garantir o acesso à Justiça.

O padrão de violações perpetrado pela polícia e as denúncias ao Sistema Interamericano trouxeram alguns avanços legislativos, como as alterações ao Decreto nº 1001/69 (Código Penal Militar), propostas pela Lei 9299/1996, que prevê como da Justiça Comum à competência para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis;2424. Houve retrocesso com nova alteração legislativa (Lei 13.491/17), uma vez que prevê que os crimes cometidos por Militares das Forças Armadas contra civil serão de competência da Justiça Militar da União. a Federalização dos Crimes Contra os Direitos Humanos, previsto pela Emenda Constitucional nº 45/2004; Lei 12527/2011 (regula o acesso à informação) e Lei 12528/2011 (Comissão Nacional da Verdade).

Apesar dessas mudanças positivas dos quadros político e legal, a falência em controlar efetivamente a violência ilegal fica patente: tortura de suspeitos e criminosos nos distritos policiais, maus-tratos a prisioneiros e internos em instituições fechadas, execuções deliberadas pelas polícias militares, grupos de extermínio, com participação de agentes do Estado. A repetida ocorrência dessas violações tem por denominador comum a impunidade, assegurada pela ineficiência e a omissão governamental, especialmente por parte das administrações dos estados. Essa falência em implementar a lei enfraquece a vigência das garantias constitucionais, perpetua a círculo ilegal da violência e dificulta o fortalecimento da legitimidade do governo democrático como promotor da cidadania.2525. Paulo S. Pinheiro, “O Passado Não Está Morto: Nem Passado É Ainda,” in Democracia em Pedaços, ed. Gilberto Dimenstein (São Paulo: Companhia das Letras, 1995): 9.

O Estado democrático de direito no Brasil tem demonstrado ser tolerante/conivente com violações dos direitos humanos das populações historicamente excluídas, incapaz de diminuir a violência social e de responsabilizar os culpados. Tem contribuído a aumentar a sensação de impunidade e de não pertencimento das vítimas e seus familiares à “categoria de cidadãos”, e viola direitos com o uso excessivo da força pelos agentes do Estado (tortura, prisões arbitrárias, homicídios praticados por agentes do Estado), assim como com a não efetivação de políticas públicas que garantiriam direitos sociais básicos ou quando nega acesso à Justiça e à verdade às vítimas e familiares.

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2. O Processo Judicial e o Acesso à Justiça – Análise dos Dados das Vítimas dos Crimes de Maio de 2006

O acesso à justiça é um direito humano fundamental. Por meio do acesso à Justiça todos têm direito a terem suas demandas apreciadas pelo Poder Judiciário, e em um prazo razoável.2626. Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil (Brasília, DF, Senado Federal: Centro Gráfico, 1988): artigo 5º, XXXV, XXXIII e LXXVIII.

A Convenção Americana dos Direitos Humanos também prevê o acesso à Justiça por meio das Garantias Judiciais (artigo 8.1) e por meio da Proteção Judicial (artigo 25.1), em ambos os dispositivos fazendo menção à razoável duração do processo.

O Brasil tem sido denunciado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos por negar acesso à Justiça. Nas nove denúncias à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado Brasileiro foi solicitada responsabilização do Brasil pela violação dos artigos 8.1 e 25.1- Garantias Judiciais à Proteção Judicial – da Convenção Americana dos Direitos Humanos, entre outros dispositivos, peculiares a cada caso.

Na perspectiva do Direito Penal, o acesso à Justiça começa na fase de apuração dos fatos (Polícia Investigativa), passa pela denúncia (Ministério Público), pela defesa (advogados ou defensores públicos) e pela conclusão da ação, por meio da sentença (judiciário). Todas estas fases devem respeitar diversas normas e princípios, como o princípio da legalidade, da ampla defesa, da razoável duração do processo, da igualdade de todos perante a lei.

A análise dos Crimes de Maio pelo olhar dos familiares das vítimas,2727. Foram utilizadas as narrativas dos familiares participantes da pesquisa e exemplificado com trechos da fala de Débora Maria da Silva (D.M.S.), mãe de Edson Rogério Silva dos Santos (assassinado em Santos/SP dia 15/05/2006); Márcia Alves da Cruz (M.A.C.), mãe de Rodrigo da Cruz Reis (assassinado em São Vicente dia 15/05/2006); Raquel Monteiro (R.M.), irmã de Ricardo Souza Monteiro Martins (assassinado no Guarujá/SP dia 14/05/2006); Vera Lúcia Andrade (V.L.A.), mãe de Mateus Andrade de Freitas (assassinado em Santos/SP dia 17/05/2006) e Vera Lúcia Gonzaga (V.L.G.), mãe de Ana Paula Gonzaga dos Santos e sogra de Eddie Joey de Oliveira Lavezaris (assassinados em Santos/SP dia 15/05/2006). Após o trecho da narrativa há a indicação do autor da fala a partir das iniciais do nome. no que se refere ao processo, permite inferir que a negativa de acesso à Justiça se deu em todas as fases. Na fase policial,2828. A função de polícia investigativa cabe em regra à Polícia Civil, conforme dispõe o Art. 144 (…). § 4º, CF –“Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. a negligência na investigação começa com o descaso em recolher elementos de prova, como fitas de monitoramento e exame de balística, o que contraria o disposto no artigo 6º do Código de Processo Penal, que prevê atos a serem realizados pela autoridade policial.

[…] fui no distrito saber se o delegado ia tirar a fita de monitoramento do posto de gasolina, porque eu queria saber quem foi o policial que abordou meu filho. […] houve uma dificuldade muito grande do Delegado em retirar a fita de monitoramento do posto. Essa fita de monitoramento do posto só foi retirada com muita pressão que eu fiz com o Delegado Seccional. (D.M.S)

[…] Depois de seis anos que a gente pediu a exumação, porque foi aquilo que rezava no pedido de Federalização, pois meu filho foi enterrado com um projétil alojado na espinha cervical, veja bem, como que um indivíduo é assassinado e a parte fundamental do exame de investigação de um crime contra a vida, que é um projétil para fazer exame de balística tava simplesmente alojado no corpo. (D.M.S)

As análises apontam também que, em alguns casos, houve a tentativa de dificultar a identificação das vítimas. Não sendo identificadas, seriam enterradas como indigentes, dificultando ainda mais a prova da materialidade do crime. Essa estratégia é utilizada também para retirar do jovem morto “qualquer contexto afetivo, familiar, de vizinhança”.2929. Laura Capriglione, “Os Mecanismos Midiáticos que Livram a Cara dos Crimes das Polícias Militares no Brasil,” in Bala Perdida: A Violência Policial no Brasil e os Desafios Para Sua Superação, Bernardo Kucinski et al. (São Paulo: Boitempo, 2015) (e-book).

[…] Meu cunhado que fez o boletim de ocorrência. Foi quando pediram o documento dele. Falei comigo não está, ele saiu com o documento. Fomos na delegacia pedir o documento do Rodrigo e eles responderam que não sabiam de nada. Que ele estava sem documento. Porque ele falou isso? Porque rodaram com ele morto né. Esconderam o documento dele pra enterrar como indigente, alguma coisa assim. Foram dois pro lado de Santos que foram enterrados como indigentes. (M.A.C)

Recorrentes relatos apontam a fragilidade da investigação, o que compromete a busca da verdade, sobretudo depois do excessivo decurso de prazo do fato. Mesmo a busca por testemunhas mostrou-se precária e inconsistente, em alguns casos, nem a família foi ouvida:

Fizeram o BO pra poder investigar, falaram que chacina, tanto faz. É filho de mais um pobre, entendeu. Ninguém entrou em contato pra prestar depoimento. Da parte da polícia não, praticamente só abriram o B.O. pra poder enterrar mesmo, que é aquela burocracia. A gente quis abrir B.O. pra entrar uma investigação pra ver. Mais, quase alegaram que como foi chacina, quem vai saber quem matou? Então não entraram em contato. (R.M.)

[…] ninguém veio me procurar aqui pra nada. Uma vez veio uma viatura aqui e ficou perguntando como ele era. (M.A.C)

[…] Ele questionou o que é que tinha acontecido, porque ia ser arquivado e não tinha tido investigação nenhuma. O que é que ele podia dizer, porque tinha uma investigação que eles tinham feito, que eles falaram com o dono da pizzaria, que o dono da pizzaria disse que não sabia de nada, mas falando simplesmente, não afirmando, assinando um documento dizendo: Eu não vi nada. Eram eles relatando conversas com várias pessoas do Bairro, dizendo que não sabia de nada, essa foi a investigação que eles fizeram. (V.L.A)

[…] Ele disse que ia investigar, só que até hoje não passou um investigador na rua perguntando nada, quem investigou fui eu, “euzinha”, ninguém bateu em porta, ninguém fez pergunta, ninguém falou nada, nada, nada, nada. A única que investigou fui eu e nenhum desses crimes aí tem investigação, nenhum dos crimes de maio teve investigação. (V.L.G)

A própria estrutura da polícia comprometeu o fluxo das investigações, isto pode ser observado na mudança constante do delegado responsável pelos casos, relatado por um familiar.3030. A função de Delegado de Polícia não é protegida pela prerrogativa de inamovibilidade. Assim, não constitui irregularidade a remoção do delegado ou a redistribuição ou avocação do Inquérito Policial. Para tentar evitar que referidos atos sejam usados como instrumentos de perseguição ou para dificultar a investigação criminal, foi promulgada a Lei 12380/13, que define que a avocação ou a redistribuição do Inquérito e a Remoção do Delegado só podem ser feitas por meio de despacho fundamentado (Lei 12380/13, Art. 2º, § 4º e 5º).

[…] fomos juntas falar com o delegado da seccional, fomos na OAB falar com a advogada dos Direitos Humanos da OAB e também falamos na delegacia seccional que até agora ninguém tinha chamado a gente. Que não tinha nada. O delegado seccional pegou o telefone e ligou para o delegado do 5º Distrito, para onde foi encaminhado o B.O, e nos encaminhou para sermos ouvidos pelo delegado. Então nós fomos lá. O delegado do 5º Distrito, logo afastaram, mandaram para outro lugar. Veio outro, este que veio, logo saiu de férias. Veio um substituto e quem acabou pegando o depoimento do João foi o substituto. Passado uns dias vieram com a convocação para a gente ir lá no 5º Distrito, eu disse: Vai ver que já está andando, em todo caso eu vou lá saber realmente se é mais alguma coisa que eles querem saber da gente. Aí fui falar com escrivão, quando eu cheguei lá ele estava de férias, foi um escrivão substituto que conversou comigo, ele disse tá tudo bem e ficou tudo por isso mesmo. Não aconteceu nada. (V.L.A)

O descaso com a investigação policial é fato recorrente, que pode ser verificado na baixa elucidação de crimes: pelos dados de 2011 a elucidação dos homicídios no Brasil variava entre 5% e 8%.3131. “Meta 2: A Impunidade Como Alvo. Diagnóstico da Investigação de Homicídios no Brasil - Concluir as Investigações por Homicídio Doloso Instauradas até 31/12/2007,” Estratégia Nacional de Segurança Pública - ENASP, 2012, acesso em 4 de julho de 2018, http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf. A má qualidade das perícias e das investigações aponta que, caso não seja o crime objeto de flagrante, difícil será o seu esclarecimento e a responsabilização dos culpados.3232. “11º Anuário Brasileiro...”, FBSP, 2017.

Regra geral, os antecedentes da vítima não são requisitados nos Processos, salvo quando suspeitas de envolvimento com a criminalidade.3333. Sérgio Adorno, “Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: As Mortes que se Contam no Tribunal do Júri,” Revista USP, Dossiê Judiciário, no. 21 (1994). Nas investigações dos Crimes de Maio, constantemente os antecedentes foram questionados, levando a crer que havia uma tentativa de desqualificar as vítimas e justificar as mortes violentas. Houve repetida necessidade de os familiares provarem que os filhos eram boas pessoas, que trabalhavam, que não usavam drogas, zelando assim por sua memória.

[…] E quando a gente leva a boa conduta dos nossos filhos pro promotor que veio do serviço, porque já foi pedido pela Comissão de Direitos Humanos da OAB a Dra. Marilu Pena, que ela pede a retratação porque falaram que nossos filhos eram todos bandidos. (D.M.S)

[…] Chamaram o Júlio, que é investigador, tinha o delegado doutor Pereira, me fez várias perguntas da Ana Paula, do Ed Joe, se ela tinha inimigo, se ela tinha ex-namorado, se ela tinha ex-marido, quanto que ela devia, se ela devia para o tráfico. (V.L.G)

[…] Fui respondendo que ele era um bom menino, trabalhador, não usava drogas. (M.A.C)

[…] Tinha o exame toxicológico dizendo que ele não tinha nada, nem álcool, nada. Eu falei assim: Onde está o exame toxicológico do Mateus? Ele respondeu: Tá aí. Eu disse: Não! O delegado, que já era outro, já tinha mudado. Ele pediu o arquivamento do processo dizendo que a morte devia ter sido por dívida de drogas: Eles devem ter matado o Ricardo por queima de arquivo. (V.L.A)

Frequentemente a Promotoria alegava que diante da falta de provas, não haveria o que fazer, o que acaba por levar a responsabilidade para a polícia investigativa. Em geral, a responsabilidade pela violência de Estado costuma se concentrar na ação de policiais militares, a quem cabe o policiamento ostensivo. Mas é necessário ampliar o foco da violência para o Ministério Público, Poder Judiciário e mesmo para governantes, legisladores, a mídia e a sociedade como um todo.3434. Maria Lúcia Karam, “Violência, Militarização e Guerra às Drogas,” in Bala Perdida: A Violência Policial no Brasil e os Desafios Para Sua Superação, Bernardo Kucinski et al. (São Paulo: Boitempo, 2015) (e-book).

[…] O promotor falou, ele morreu porque ele estava no lugar errado e na hora errada. Ele é um garoto bom, a ficha dele está aqui, que não usa drogas, não tem passagens, não tem nada. Vai ficar aqui vinte e cinco anos, se a senhora descobrir quem matou o seu filho a senhora vem aqui. Só que na hora que eu estava junto no Fórum, não deixaram eu falar que foi polícia. Não queriam deixar eu falar. (M.A.C)

[…] no promotor público, ele dizia: Mas ninguém sabe quem foi! Não vamos poder provar nada, vocês façam suas investigações, tragam as pessoas aqui para prestar declarações, testemunhar, porque ninguém sabe de nada, não tem como saber, vieram encapuzados, como é que a gente vai saber quem foi? E ficou enrolando a gente esse tempo todo. […] um belo dia eu cheguei lá para cobrar uma resposta e ele disse: O processo já está indo para o arquivamento. Eu disse: Mas não tem nada e já está indo para arquivar? Ele disse: Ué, se a senhora quiser dar uma olhada aí… (V.L.A)

O Ministério Público deixou de cumprir a sua função, atribuindo a alguns familiares que fizessem diligências que, a princípio, seriam dever da polícia investigativa ou do próprio Ministério Público:3535. A discussão sobre se cabe ao Ministério Público (MP) a função investigativa, foi decidida pelo STF, reconhecendo esta competência do MP promover por autoridade própria investigações penais, respeitando direitos e garantias constitucionais. Ressalta ainda o STF que “a função investigatória do Ministério Público não se converteria em atividade ordinária, mas excepcional, a legitimar a sua atuação em casos de abuso de autoridade, prática de delito por policiais, crimes contra a Administração Pública, inércia dos organismos policiais, ou procrastinação indevida no desempenho de investigação penal, situações que, exemplificativamente, justificariam a intervenção subsidiária do órgão ministerial.” - Grifo nosso - (“RE 593727/MG, 14.5.2015. Informativo n. 785,” STF, 2015, acesso em 25 de abril de 2018, http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo785.htm).

E o promotor queria que eu fosse fazer a investigação. […]o João ficou super nervoso, o promotor disse: Vamos fazer o seguinte, Sr. (pai), o senhor vai lá e requisita a segunda cópia do exame toxicológico do Mateus, vai na escola e pede o atestado de que ele estava estudando. (V.L.A)

O descaso do Ministério Público e da Polícia em buscar a verdade dos fatos leva à descrença dos familiares de que existam instituições capazes de garantir o direito e à justiça a população em geral.

[…] a gente tinha que ficar pedindo para o Dr. (Defensor Público) fazer ofício cobrando o Procurador-Geral. […] não houve a pressão que deveria, porque a Defensoria acha que o Ministério Público é o defensor que está do lado da população e não é, eles podem ser os defensores da Defensoria, mas nosso não é. (D.M.S)

[…] A gente começa a olhar os processos deles, quem fez o B.O do Ricardo foi o mesmo que fez o B.O desses vários rapazes que foram mortos. Muito estranho né? (V.L.A)

Diante da ausência constante de respostas sobre os crimes, os familiares das vítimas recorreram à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e à Defensoria Pública, mas em muitos momentos também tiveram que lidar com o descaso.

Na Defensoria Pública também sofremos um descaso por parte do convênio da Defensoria com a OAB. […] o advogado ou o defensor que pegou o processo deixou nove meses o processo na sala na casa dele, e a cópia do processo caiu tudo no arquivamento. […] nós passamos pela mão de vários, eles estavam com processo e daqui a pouco passava pra outro, que passava pra outro […] (D.M.S)

No entanto, em outros momentos, a atuação da Defensoria e da OAB foi de atenção às demandas dos familiares e de tentativa de proteção de direitos:

[…] E aí, ele trouxe o Dr. Maffezoli que começou cuidando na causa, mas também o Dr. Maffezoli não entrava, e tava terminando o prazo, até que um jurista que é amigo nosso e de uma das Mães, porque ela trabalhava com ele e a gente também já conhecia, e ele pediu que o Dr. Maffezoli entrasse com o pedido por danos morais porque já estava perdendo o prazo, como perdeu da Vera, como perdeu de outras mães. Então o Dr. Maffezoli acabou entrando com o pedido, mas sob a pressão do Dr. Sérgio Cunha, o jurista, e só assim a gente conseguiu ganhar. (D.M.S)

Em recorrentes relatos a ideia de Justiça aparece como algo distante da realidade das famílias; embora muito desejada:

[…] Eu não espero do Brasil a justiça pela mão da nossa justiça, porque ela tem dois pesos e duas medidas. Ela é classista, ela é racista e eu espero uma reforma dessa justiça que para mim não vale nada no Brasil, porque ela enxerga muito bem, mas ela só enxerga a periferia e a favela, o preto e o pobre. Eu espero que a denúncia que nós fizemos na Suprema Corte Interamericana de Direitos Humanos possa passar o tempo que passar, mas o Brasil tem que ser condenado pela morte dos nossos filhos, porque foi um crime de mando […]. (D.M.S)

[…] Na época que aconteceu com o Rodrigo pensei e esperei tanta coisa referente a justiça. Mas agora não espero mais nada. […] quem sabe um dia né? […] não vou mais bater em porta de ninguém pra saber como tá o caso do meu filho. Arquivaram o caso com dois meses. O promotor falou: está aqui a ficha do seu filho, tudo aqui. O dia que a Sra. descobrir quem fez isso com ele, você vem me procurar. (M.A.C)

[…] Pela parte do meu pai não buscamos mais saber como está o procedimento. Eu sempre fui revoltada, sempre tive sede de justiça, tanto é que quando era criança eu queria fazer faculdade de direito. É, mas pelo meu pai eu amenizei, tipo, ele é pai né. Ele que tinha que ter essa atitude de ir atrás. Mas pelo meu pai tudo quer deixar na mão de Deus. (R.M)

[…] Hoje em dia, passados esses 10 anos, a gente tem uma esperança de que algum dia alguma porta vai se abrir, que alguma coisa vai acontecer e vai ser tudo esclarecido. Eu gostaria, porque a gente fica sempre com uma impressão de que nada foi feito, que nada aconteceu. Mataram ele, simplesmente mataram e acabou. É um nome, um número e mais nada. (V.L.A)

[…] eu culpo, na história de todos esses meninos que foram mortos, é a própria polícia, a própria sociedade que banca a morte desses meninos. Então, eu não vejo, assim, como a gente vai parar, se tem quem banca isso? Porque não tem que acabar com eles, tem que pegar quem manda. Porque ninguém sai aleatoriamente com uma arma na mão matando quem quer que seja, alguém manda. Então, tem que ir em cima de quem manda, quem tem esse poder? (V.L.G)

É importante destacar que a ação das Mães de Maio, grupo de familiares que se uniu para lutar pelo direito de verem esclarecidos os crimes dos quais foram vítimas seus familiares, transformou uma dor privada em causa pública. A descrença na efetivação da Justiça acabou por provocar nos familiares sofrimentos intensos. Para alguns, esse sofrimento enfraquece a luta. Para outras, potencializa a causa

[…] no grupo do GAECO3636. Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo. falam pras mães que não tem como denunciar os policiais de 2006, mas tem como denunciar os policiais nos crimes de agora, e que aí acaba pagando pelos crimes do passado. Mas isso é inaceitável porque, se traz à tona crimes da ditadura, porque eles não trazem da democracia? […] corri e coloquei o GAECO de novo na parede e pedi para o Promotor Brandão nos ajudar a preservar os corpos dos meninos para uma futura investigação (D.M.S)

[…] a gente como ser humano tem os direitos e os deveres. É direito dele saber quem matou, mesmo que não vá preso. Infelizmente o Brasil nessa merda que é, mas saber, é um direito de saber. Quer dizer que ele vai morrer sem saber. Dá vontade de olhar e falar, porque? Porque que você fez isso? (R.M)

Eu estou esperando o tempo me dizer o que é melhor para eu fazer, né? Eu tenho ficado calada, muitas vezes eu tenho vontade de falar e não falo, porque eu espero que alguma coisa aconteça. Pelas mães, a gente tem um carinho especial por cada uma delas, porque cada uma delas entende o que eu sinto e eu entendo o que elas sentem. Porque a dor é igual. (V.L.A)

03

Considerações Finais

Os Crimes de Maio, inconclusos, não nos permitem afirmações acerca de sua autoria. Não havendo investigação, perícias, diligências suficientes para esclarecer, ou pelo menos para tentar esclarecer a autoria dos crimes e com isso julgar os responsáveis, é como se não houvessem culpados. Ou, como se as vítimas não fossem importantes. Ou, como se as famílias das vítimas não merecessem saber da verdade sobre as mortes de seus entes queridos.

A alegação de falta de provas foi justificativa dada pelo Estado para não concluir as investigações e posterior julgamento dos crimes. Mas a negativa de Acesso à Justiça foi fruto das omissões do Estado. Negou-se acesso à Justiça quando não foram mantidos intactos os locais dos crimes, função da Polícia Administrativa, a cargo da Polícia Militar. A destruição das cenas dos crimes favoreceram a adulteração e a destruição de provas; negou-se acesso à Justiça quando da negligência na coleta de provas – como a coleta de dados captados por fitas de monitoramento, oitiva de testemunhas e de familiares das vítimas – função da Polícia Judiciária, a cargo da Polícia Civil; e negou-se acesso à Justiça com as idas e vindas dos familiares à Defensoria Pública e ao Ministério Público, onde, em diversas ocasiões, as famílias foram tratadas com descaso, lhes foram negadas informações e foram até mesmo ironizados na sua ânsia por encontrar os responsáveis pelas mortes de seus filhos.

Toda desconsideração com a garantida de direito se materializou na falta de investigações consistentes e em arquivamento de procedimentos sem diligências suficientes para a apuração dos fatos. Com isso, não havendo a identificação dos responsáveis, e na ausência de elementos e/ou informações suficientes para o oferecimento de denúncia por parte do titular da Ação Penal, não houve julgamento.

O descaso com as vítimas mostrou-se claro com o tratamento dado aos seus familiares. A eles foram negadas informações sobre o ocorrido e sobre as investigações e procedimentos. As famílias, além de terem que lidar com a dor da perda de seus entes queridos tiveram que lidar com a angústia e o desprezo por parte os órgãos do Estado responsáveis pelas investigações. Foram continuamente levados a acreditar que não havia nada a ser feito, que eram crimes em que não havia como encontrar os responsáveis, sendo engendrados em discursos e procedimentos burocráticos, que provocavam a sensação de invisibilidade e injustiça. Humilhação, ironias, ameaças, perseguição, calúnia. Essa foi e a ainda é a realidade na vida dos familiares das vítimas, de modo especial as mães, que buscam a verdade sobre a execução de seus filhos.

O perfil das vítimas, conforme dados gerais das narrativas, são de pessoas pobres e moradores de periferias ou vulneráveis socioeconomicamente. Quando as vítimas são oriundas de referidos grupos, verifica-se a inércia, a precariedade e o desinteresse na investigação e na elaboração dos inquéritos policiais, o que leva, na grande maioria dos casos, ao precoce arquivamento dos inquéritos e eventuais processos. É a invisibilidade da periferia, que favorece a negativa de acesso a direitos assim como a negativa de acesso à Justiça.

Outro elemento importante, associado ao processo de investigação e julgamento dos crimes, é a reparação material e imaterial (moral e psicológica) dos familiares. As vítimas eram membros de famílias empobrecidas, em muitos casos contribuíam financeiramente para sua manutenção ou ainda estavam iniciando a vida profissional.

Foi possível constatar, ainda, que a morte das vítimas gerou nas famílias processos de adoecimento, com sequelas psicológicas e físicas; que em alguns casos, levaram até à morte. Para alguns, diante desse quadro, a reivindicação histórica dos familiares pela reparação psíquica é tardia. Já existem outras mortes decorrentes dos homicídios dos crimes de maio. Não será possível falar em justiça se a reparação material e imaterial não for contemplada na sentença do esperado julgamento.

Por fim, mostra-se fundamental dar visibilidade às narrativas e às lutas dos familiares, que transformam sua dor privada em causa pública, para que as histórias de seus filhos não sejam esquecidas, para que deem visibilidade às omissões do Estado, para que casos futuros não sejam tratados com o mesmo descaso e para que a população pobre, jovem, negra e da periferia dos centros urbanos não continuem excluídos da proteção de Direitos e Acesso à Justiça.

Raiane Assumpção - Brasil

Professora Doutora em Sociologia na UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), Pesquisadora do CAAF/UNIFESP.

Recebido em maio de 2018.

Original em Português.

Fernanda Frinhani - Brasil

Advogada. Doutora em Direitos Humanos na USP (Universidade de São Paulo); Mestre em Psicologia Social na UFES (Universidade do Estado do Espírito Santo).

Recebido em maio de 2018.

Original em Português.

Javier Amadeo - Brasil

Professor Doutor em Ciência Política na UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), Pesquisador do CAAF/UNIFESP.

Recebido em maio de 2018.

Original em Português.

Aline Lúcia Gomes - Brasil

Assistente Social pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) e Pesquisadora do CAAF/UNIFESP.

Recebido em maio de 2018.

Original em Português.

Débora da Silva - Brasil

Fundadora e coordenadora do Movimento Independente Mães de Maio, pesquisadora do estudo sobre os Crimes de Maio de 2006 - CAAF/UNIFESP.

Recebido em maio de 2018.

Original em Português.

Valéria Silva - Brasil

Assistente Social pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) e Pesquisadora do CAAF/UNIFESP.

Recebido em maio de 2018.

Original em Português.