A experiência do PerifaConnection e outro modo de defender direitos humanos
Através da articulação PerifaConnection, cinco jovens negros brasileiros levantam sua voz pela defesa de direitos, reivindicam a potência do território periférico e têm se tornado um exemplo, tanto na disputa de narrativas sobre as periferias quanto na organização coletiva.
Me reduzir à sobrevivência é roubar o pouco de bom que vivi
(“Amarelo”, Emicida)
É isso que nós do PerifaConnection queremos expressar quando afirmamos que nossa missão é disputar a narrativa sobre as periferias. A mídia brasileira ajudou a construir o imaginário a respeito das favelas e periferias como locais de violência e extrema miséria. Não são raros os casos de pessoas que só ouviram falar das favelas por meio do filme “Cidade de Deus” (2002). Nós do PerifaConnection queremos desconstruir esse imaginário. Mostrar para o mundo que nossas fragilidades socioeconômicas são apenas uma parte de um todo que, assim como em qualquer outra região do mundo, contém alegrias, tristezas, potências e muita esperança.
É importante celebrar nossas histórias: periféricas e negras. Uma das formas de celebração passa justamente por afirmar o que tem de bom em nós, enquanto corpos e territórios cheios de vida, de humanidade. Somos cinco jovens atravessados por experiências de retirantes, escravizados, aquilombados de diferentes modos, atravessados também pelo Candomblé e pelo Cristianismo, por Racionais MC’s e O Rappa.11. Grupos musicais surgidos nas periferias de São Paulo e do Rio de Janeiro, respectivamente, e conhecidos por retratar a realidade de quem vive nas favelas e quebradas daqui. Entre suas músicas mais conhecidas estão "Diário de um detento" e "Minha alma".
Todos os cinco integrantes partem de vivências anteriores, de pelo menos dez anos de atuação em outras frentes: Raull Santiago é uma das vozes mais ativas no midiativismo de periferia no Brasil; Nina da Hora trabalha com uma ferramenta essencial do nosso tempo que é a tecnologia; aproveitando toda a sua ancestralidade, Wesley Teixeira traz uma bagagem de mais de uma década de mobilização no território da Baixada Fluminense com a educação popular; Salvino Oliveira traz uma reflexão sobre o Público a partir da Academia; e Jefferson Barbosa costura tudo isso na produção de informação jornalística.
Quando dizemos “periferias” também estão aí incluídas as zonas rurais, os quilombos centenários, as aldeias indígenas que estão constantemente sob ataque e que, com as suas resistências, dão exemplo de organização coletiva e política. São múltiplas e muitas as periferias que existem no Brasil, com fortes conexões criadas entre elas.
PerifaConnection é um ponto de encontro, a reunião dessas vozes periféricas que, apesar de serem referência há várias gerações, agora têm mais possibilidades de evidenciar um protagonismo em todos os processos. Nossa rede é predominantemente jovem e negra, mas ela também parte de outras vivências periféricas, incluindo aquelas da Maré (Rio de Janeiro), do Capão Redondo (São Paulo), do Nordeste de Amaralina (Bahia) e do Alto Zé do Pinho (Pernambuco).
Compartilhar o protagonismo não significa um revezamento de visibilidade, mas o compartilhamento das nossas potências. Uma pajelança de diferentes narrativas, nas palavras do historiador Luiz Antônio Simas,22. Luiz Antônio Simas, “Da Costa Africana às Matas e Esquinas do Brasil: A Fé é Festa” (Curso, Livraria da Travessa, Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2019). que no PerifaConnection são reforçadas em diversos veículos de comunicação.33. No campo audiovisual, uma série será lançada em 2020. Anteriormente, participamos da revista CartaCapital e do podcast Mamilos.
Ao pensar nas diferentes abordagens que a juventude negra periférica pode e já faz nas mídias, construímos em conjunto com organizações e ativistas ações que potencializam nosso impacto usando a tecnologia como uma grande aliada na comunicação e união de diferentes culturas. Nosso primeiro ciclo organizado do PerifaConnection está ocorrendo neste ano de 2020, quando demos início a uma produção de artigos semanais no jornal Folha de S.Paulo44. “PerifaConnection,” Folha de S.Paulo, (s.d.), acesso em 8 de junho de 2020, https://www1.folha.uol.com.br/colunas/perifaconnection/. – inclusive convidando muitas vozes além de nós cinco; trazendo outros ativistas e comunicadores para esses “canhões midiáticos” hegemônicos para acordar a casa-grande de seus sonos injustos, como diz Conceição Evaristo.55. Davi de Castro, “‘Não Escrevemos para Adormecer os da Casa-grande, Pelo Contrário’, diz Conceição Evaristo sobre escritoras negras.” TV Brasil, 8 de junho de 2017, acesso em 8 de junho de 2020, https://tvbrasil.ebc.com.br/estacao-plural/2017/06/nao-escrevemos-para-adormecer-os-da-casa-grande-pelo-contrario-diz-conceicao.
Além de estrear a primeira temporada do nosso podcast, também começamos a construção de um encontro para o ano de 2021 a partir da Conferência de Durban, no intuito de resgatar nossas conquistas e apresentar alguns desses legados para as novas gerações de pessoas ativistas negras e periféricas. Uma diáspora plural, rica de vida e com projeto de poder frente às injustiças. Acreditamos que processos de formação são cruciais para que as nossas narrativas sigam sendo construídas, como o LAB sobre meio ambiente e periferias, em parceria com o instituto Clima e Sociedade.
Debatemos entre nós e para o conjunto da sociedade questões relevantes que os nossos lugares afetivos, geográficos e políticos apresentam. Ocupamos espaços que historicamente nos foram negados, conectando uma rede e ecoando nossas vozes enquanto pessoas defensoras de direitos humanos, mesmo numa época em que tudo aponta para desumanidade.66. Existimos há pouco mais de um ano; em 2020 fomos impactados pela pandemia do coronavírus e, numa articulação com a ONG Criola e o Instituto Marielle Franco, atendemos 20 mil famílias no combate à fome durante a quarentena.
Quando pensamos no PerifaConnection, pensamos nessa articulação em redes que já se movimentam, mas nem sempre são vistas, já que tem sempre alguém colocando a mão em nossas bocas e querendo falar por nós. Possuímos a nossa própria voz e percorremos nossos próprios caminhos.
Nosso compromisso é articular o fruto de anos de trabalho de construção da democracia, e o legado de militantes/heróis como Abdias Nascimento, Nilma Bentes,77. Fundadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa). Mãe Beata de Yemanjá,88. Ialorixá do terreiro Ilê Omiojúàrô em Miguel Couto (Nova Iguaçu), importante liderança religiosa, militante pelo povo negro, pelas mulheres, pelos LGBTQs e contra a intolerância religiosa. Raoni Metuktire, Chico Mendes e a médica Jurema Werneck. Queremos metabolizar todo esse legado, articulando e fortalecendo cada vez mais as novas vozes, que não são inéditas, mas imprescindíveis.
Temos certeza de que é preciso nos manter vivos e prezar por um modo de vida saudável. E de que esta preocupação não é apenas sobre nós, indivíduos, mas sobre quão coletivos nossos corpos são.
Nossa experiência enquanto defensoras e defensores negros e periféricos está atravessada por esta premissa fundamental: estarmos vivos. Afinal, o que construímos são perspectivas de vida para outros jovens também poderem ocupar os espaços que desejam na construção de uma sociedade mais justa. Parte essencial de tudo isso é seguir ativos, pois muitos ativistas estão com suas saúdes físicas e mentais comprometidas pelos processos de lutas cotidianas.99. Buscando fazer frente a isso, no próximo ano uma iniciativa coletiva nossa se voltará para acolher e promover estratégias de autocuidado/cura. Ana María Hernández Cárdenas e Nallely Guadalupe Tello Méndez, “O Autocuidado Como Estratégia Política,” Revista SUR 26 (dez. 2017), acesso em 8 de junho de 2020, https://sur.conectas.org/o-autocuidado-como-estrategia-politica/.
Por isso, quando propomos outros modos de defender e garantir direitos humanos a partir dos nossos lugares, estamos disputando narrativas e vidas. Imprescindíveis.