Ensaios

Em memória de Tutawa

Kamutaja Silva Ãwa

A luta do povo Ãwa

timfilbert

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RESUMO

Este ensaio é fruto das experiências e vivências do povo Ãwa, ao qual eu pertenço, após o contato com os não indígenas na década de 1970. Na condição de contadora das histórias do meu povo, saliento que, desde a infância, experimentei situações de dor, tristezas e tensões nos contínuos e intensos embates na luta e defesa do nosso território e pelo desejo do bem viver. A metodologia utilizada está subsidiada em fontes bibliográficas, no Relatório de Identificação da Terra Indígena Taego Ãwa e nas memórias e na oralidade do meu povo. Reconhecendo a relevância dessa história, o ensaio condensa registros da trajetória por direitos do povo Ãwa, incluindo o impacto da pandemia e trazendo um olhar indígena para os direitos humanos.

Palavras-Chave

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1. Introdução

Sou Kamutaja Silva Ãwa, filha de Kawkamy Ãwa e neta do líder e pajé Tutawa Ãwa, e pertenço a um povo cujo contato com os não indígenas se deu no contexto do período do regime militar, mais precisamente, em 1973. As histórias que irei compartilhar são consequências de intensas lutas e resistências entremeadas com muita dor, perdas e tristezas. Por acreditar, assim como Walter Benjamin,11. Walter Benjamin, "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov", in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (São Paulo: Brasiliense, 1994): 201. que o “momento em que a experiência coletiva se perde, em que a tradição comum já não oferece nenhuma base segura, outras formas de narrativas tornam-se predominantes”, e enquanto acadêmica do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Tocantins (UFT), vislumbro outros mecanismos que nos obrigam a outras possibilidades de trocas e de comportamentos por meio da escrita. Por isso eu me sinto na obrigação de falar, de reavivar e de atualizar a memória social do meu povo.

Sob essa perspectiva, na condição de contadora das histórias de luta e resistência do meu povo, estou convencida da importância de lhes dar visibilidade, bem como da relevância do impacto social e cultural que as minhas narrativas podem ecoar igualmente como estratégias de luta e resistência.

O meu povo se autodenomina Ãwa, mas os não indígenas atribuíram-lhe o nome de Avá-Canoeiro devido à habilidade e à agilidade com que se retiravam das águas utilizando canoas para defender o seu território. Os Ãwa também são conhecidos na literatura, de acordo com Pedroso,22. Dulce Madalena Rios Pedroso, O povo invisível (Goiânia: UCG, 1994). como o povo que mais resistiu ao colonizador no século XVIII. Na região Norte do Tocantins são conhecidos como “cara-preta”, devido à pintura de jenipapo no rosto, que é uma representação do macaco da meia-noite e usada como forma de intimidar os inimigos.

Durante anos, o povo Ãwa resistiu para continuar existindo como um povo livre e com autonomia. A negação de direitos por parte do Estado brasileiro ao meu povo, ao não garantir o nosso bem viver e a paz em nossa terra tradicional, tem causado danos sociais, culturais e espirituais, colocando o povo Ãwa numa situação de quase extermínio.

Diante da situação histórica do povo que mais resistiu ao contato com o não indígena, este ensaio se debruça sobre três momentos: a) o contato forçado no ano de 1973; b) o processo de retomada pela Terra Indígena Taego Ãwa; e c) a pandemia de Covid-19 e a perícia antropológica para o povo Ãwa. Tomo como base a pergunta-problema: como o povo Ãwa pode sair da invisibilidade diante das atrocidades históricas e da negação de direitos que prevalecem há mais de 40 anos?

Dialogando com autores indígenas e indigenistas da literatura etnológica, os quais, através da história e da escrita, visam reivindicar os direitos dos povos originários conquistados através do movimento indígena, este ensaio levanta questões sociais, culturais e políticas envolvidas nas vivências do povo Ãwa após o contato de 1973, trazendo essa memória para lançar um olhar da luta por território indígena nos estudos e defesas de direitos humanos relacionados a esse período no país.

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2. O contato forçado no ano de 1973

Reviver as tristes e trágicas memórias que marcam meu povo há anos não é apenas contar a história de um povo; é explorar profundas feridas que jamais serão cicatrizadas para tentar buscar meios de resgatar o que lhe foi roubado de forma covarde e fria. Este povo que sobreviveu durante anos a constantes perseguições, matanças e tocaias33. Ação de alguém ocultar-se para atacar outrem ou para caçar. do não indígena é a minha família. Um número pequeno de sobreviventes que chegaram na Mata Azul, município de Formoso do Araguaia, buscava viver como pessoas livres e não se submeter à integração de outros povos, especialmente os não indígenas que quase exterminaram o povo Ãwa no século XVIII.

O trágico contato forçado e violento aconteceu em dezembro de 1973 e foi liderado pelo sertanista44. Aquele que se embrenhava no sertão à procura de riquezas; bandeirante. Apoena Mirelles na época chuvosa. De acordo com as memórias de meu avô Tutawa e dos sobreviventes, Caganego estava coletando lenha quando Apoena chamou sua atenção com assobios e com o aceno de suas mãos. Caganego saiu correndo anunciando a presença dos não indígenas próxima a eles. A equipe do sertanista a seguiu e entrou no acampamento soltando foguetes e atirando.

O alerta de Caganego é resultado das perseguições e das violências que nosso povo viveu durante anos, e também das caçadas que Apoena e sua equipe realizavam na terra do nosso povo buscando um contato em curto prazo, através de montarias e armados.

Ao entrarem no acampamento, um dos quatro Xavantes que acompanhavam o sertanista foi atingido no nariz, e Typyire foi baleada pelos tiros disparados pelos invasores, que mostraram a sua pior face capturando um povo (que durante décadas evitou o contato, preferindo a morte a se render aos inimigos) para atender interesses privados.

Com a captura dos mais vulneráveis do grupo, Watumy e seu filho de colo Juaga, o líder Tutawa foi solidário a sua esposa e filho, rendendo-se e pedindo para que não os matassem. Com a rendição de Tutawa, seu irmão Tuxi e sua filha Kawkamy se renderam. Todos foram levados à Fazenda Canuanã, amarrados e colocados sob a ameaça dos Xavantes, com a promessa de que matariam os Ãwa se o Xavante flechado viesse a óbito.

Os demais integrantes da família conseguiram escapar, mas a situação os deixou em estado de choque e extrema vulnerabilidade alimentar, pois temiam pelo ocorrido. Typyire Ãwa, que foi atingida com os disparos, morreu logo depois, pois ficou bastante ferida.

Chegando à fazenda Canuanã, os Ãwa foram expostos numa casa cercada de arame farpado. Com a notícia da captura do meu povo, as pessoas da região deslocaram-se à fazenda a fim de conhecer os temidos “caras-pretas”, pois durante anos os indígenas foram alvo de histórias preconceituosas e racistas como estratégia de extinguir os povos nativos, justificando, assim, as ações de extermínios e violência.

Watumy Ãwa propôs algumas vezes retornar para sua casa, de onde foram retirados contra a vontade do nosso povo, mas não foi possível devido à presença constante dos não indígenas que os vigiavam.

Com a captura de alguns do nosso povo, a estratégia da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1974 foi usar o líder Tutawa para fazer o contato com os demais que ainda eram livres, fazendo-os entender que ficariam com seu território. Após esse contato, meu povo realizava acampamentos temporários ora na Mata Azul, ora no Capão de Areia, sob a vigilância dos soldados indígenas da Guarda Rural Indígena (GRIN) do povo Inỹ/Javaé.

Diante da situação de perda do território em que o Estado brasileiro colocou meu povo, a única solução foi a transferência do povo Ãwa em 1976 para a aldeia Canoanã dos Javaé, povo Jê. Após o contato, alguns morreram de doenças para as quais não tinham imunidade. Ainda nos resta a incógnita sobre o destino do Kapoluaga. Até hoje há questionamentos, pois achamos que foi assassinado após o contato. A foto dele aparece no primeiro boletim oficial da Funai, mas não há nenhuma menção no segundo boletim, meses depois, sobre o desaparecimento de Kapoluaga. Tuxi teria falecido de pneumonia em Goiânia e o seu corpo nunca retornou para a família, e isso causou muita desconfiança e medo no meu povo em relação a tomar qualquer decisão, pois tinham certeza de que todos seriam mortos.

Desde então, passamos a viver em terras estranhas dos nossos inimigos históricos. Há que se mencionar que, apesar das grandes humilhações e de viver de forma marginalizada em suas terras e aldeias, eles nunca nos expulsaram.

Fomos esquecidos pelo Estado e nossos direitos, adormecidos, e toda essa violência física, moral e psicológica também foi esquecida. O crime que cometeram contra meu povo Ãwa ficou como uma página virada. Dos sobreviventes do contato forçado que marcou para sempre a vida do povo Ãwa somente Kawkmay Ãwa vive.

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3. O processo de retomada pela Terra Indígena (T.I.) Taego Ãwa

O que me conforta e dá esperança é a consciência dos direitos que nós, indígenas, conquistamos durante anos de luta através do movimento indígena, em especial o direito sobre a terra. Conforme é garantido pela Constituição Federal do Brasil em seu artigo 231, que estabelece: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Passados trinta e seis anos desde o contato forçado realizado por agentes do Estado brasileiro, entre os sobreviventes dessa atrocidade violenta que colocou em risco a saúde e a existências de alguns Ãwa, somente Kawkamy Ãwa deu continuidade ao seu povo, dando à luz seis filhos dentro do território do povo Jê.

Tutawa, que era líder e pajé do povo Ãwa, garantiu que os netos que nasceram após o contato obtivessem, através do seu cuidado, amor e dedicação, as características de um povo Tupi, assim como a garantia do retorno para a terra tradicional, que é um vínculo do corpo de um ente querido, que chama Taego Ãwa.

Embora desde o contato do ano de 1973 o meu povo Ãwa tivesse consciência do lugar de pertencimento tradicional, não obtivemos ajuda de profissionais, como fotógrafos, jornalistas e antropólogos, para a retomada de nossa terra tradicional.

As injustiças cometidas contra meu povo, incluindo tanto a violência física, emocional e moral quanto o abandono do Estado brasileiro, que causaram a invisibilidade dos Ãwa no Estado do Tocantins, só começaram a ter um percurso de justiça com o início da demarcação da T.I. Taego Ãwa.

Com o estudo de identificação da Terra Indígena Javaé/Avá-Canoeiro55. Patricia Mendonça Rodrigues, Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação: Terra Indígena Taego Ãwa (Brasília: FUNAI, 2012). realizado em 2009 pela antropóloga Patrícia de Mendonça e a ambientalista Luciana Ferraz, as duas pesquisadoras identificaram a fragilidade do nosso povo em terras estranhas e a necessidade, além do nosso desejo, de regressar à terra-mãe, de conduzir nossa história para além do conhecimento da população regional.

O mais paradoxal diante de toda essa desumanidade foi a Funai ter sido convencida da nossa existência e da necessidade de regressar à T.I. Taego Ãwa para assim aprovar um Grupo de Trabalho (GT) exclusivo ao meu povo.

No GT vivenciamos momentos de muita dor, sofrimento, ódio, tristeza e esperança, pois, através das memórias vivas dos três sobreviventes do contato forçado − nosso avô Tutawa, minha mãe Kawkamy e o meu tio Agaéky −, foram repassadas para nós as lembranças dolorosas de perseguições, assim como as indagações sobre as diversas matanças contra o nosso povo quando ainda éramos livres. O vínculo com a terra durante o estudo de identificação intensificou esses sentimentos. Passamos a acreditar que, de alguma forma, perante a justiça brasileira retornaríamos para casa, de forma justa, pois estávamos seguindo os protocolos que nos garante a Constituição de 1988.

Uma das coisas que mais me chamou atenção do que soubemos pelo GT foi a relação da Fazenda Canuanã com a história do meu povo, com a minha família. Na época, eu era estudante da escola de Canuanã da Instituição Fundação-Bradesco. Minha admiração pelo lugar que passei a viver desde os meus sete anos de idade findou ao saber que a Funai havia emitido um documento negando a nossa presença na terra em que morávamos. Este documento remetia aos interesses privados da Fazenda nas negociações com o Banco Bradesco.

Por fim, o relatório resultado do GT foi entregue em 2012 para a Funai e publicado no Diário Oficial da União. Após a publicação, tivemos que enfrentar alguns obstáculos, como a contestação do Bradesco durante o contraditório. Como forma de fortalecimento estratégico e visando dar visibilidade à nossa luta pela retomada da T.I. Taego Ãwa, aceitamos o convite de construir juntamente com os cineastas e irmãos Borela (Henrique e Marcela) um longa-metragem,66. "Estreno documental producido con VHS encontrado en UFG", Universidad Federal de Goiás, 2017, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://www.ufg.br/e/19173-estreia-documentario-produzido-com-vhs-encontradas-na-ufg?atr=es&locale=es; ou Sessão Vitrine, página do Facebook, 8 de maio de 2017, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://m.facebook.com/sessaovitrine/videos/taego-%C3%A3wa-11-de-maio-nos-cinemas/1340250719401969/?extid=SEO----&locale=ms_MY. o qual relata a luta por Taego Ãwa, além de começar a participar do movimento indígena com a ajuda do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e participar de reuniões com o Ministério Público Federal (MPF) sobre o processo da T.I. Taego.

A nossa trágica história foi divulgada em espaços importantes, como a Comissão da Verdade, tendo tido destaque como um dos casos mais emblemáticos; a Comissão de Direitos Humanos do Senado, na 6ª Câmara do MPF; a Comissão da Anistia; e em espaços acadêmicos. O relatório também foi encaminhado ao Ministério Público Federal do Tocantins (MPF-TO), dando início a ações judiciais de reparação e pela demarcação da terra indígena.

A entrega do relatório de identificação da T.I. Taego Ãwa foi uma grande conquista. Um dia antes do golpe sofrido pela ex-presidenta Dilma Rousseff, no dia 11 de maio de 2016, o Ministro da Justiça Eugênio Aragão, através da Portaria No. 566,77. "Portaria nº 566, de 11 de maio de 2016", Diário Oficial da União, 2016, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/22805509/do1-2016-05-12-portaria-n-566-de-11-de-maio-de-2016-22805458. declarou a terra indígena Taego Ãwa de posse permanente do povo Ãwa. Infelizmente, nesse dia o nosso líder, que, além de avô, é uma grande referência de resistência e de humanidade, não estava presente fisicamente no nosso povo, mas a nossa ancestralidade chorou através de nós de alegria e gratidão.

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4. Desafios da ausência de território para o enfrentamento da pandemia

Desde o início da pandemia de Covid-19, a vida dos povos originários tem sido atacada de diferentes formas: pelo genocídio propiciado pelo novo coronavírus; pela política anti-indígena do atual governo; e pela paralisia de instituições que não são consideradas serviços essenciais, como é o caso da Funai, principal responsável pelo processo de demarcação das terras indígenas e da proteção dos territórios.

Devido ao contexto histórico em que perdemos totalmente nosso território para o latifúndio na década de 1970, o nosso povo Ãwa está localizado hoje de maneira dispersa em território do povo Iny, no Tocantins, especificamente na Ilha do Bananal. A falta do nosso próprio território tem impactado totalmente a maneira de enfrentar a pandemia e os efeitos das ameaças anti-indígenas durante esse período por não termos a terra demarcada, não possuirmos autonomia nos cuidados diferenciados contra a Covid-19 ou acesso especial à saúde pública como outros povos indígenas que vivem em seu território ancestral.

Em nosso caso, vivemos sobre as regras políticas dos Javaé e Karajá, e durante esses anos emergenciais de pandemia, seguimos as medidas de prevenção que as lideranças desses povos decidiam. Um problema sério que enfrentamos diante dessa situação foi a entrada dos retireiros88. Pessoas que arrendam terras na Ilha do Bananal para criação de bovinos. que possuem terras arrendadas dentro da Ilha do Bananal, possíveis transmissores do vírus e de outras doenças. Da mesma forma, como a Funai paralisou seus trabalhos ao longo desse tempo, consideramos que possivelmente houve a entrada de invasores e a ocorrência de práticas ilegais, como pesca, caça, retirada de madeiras e outras atividades subnotificadas que constituem fator de risco dessas contaminações. Se estivéssemos em nosso território, poderíamos criar nossas estratégias de autoproteção diante dessas ameaças.

No contexto da pandemia, entendemos que nossa autonomia e protagonismo no direito à saúde foram violados, já que o nosso conhecimento ancestral medicinal seria um importante aliado para prevenir a doença e outros riscos e danos.

Por essas razões, o sofrimento do nosso povo aumentou cada vez mais desde o início da pandemia, tornando-se insuportável continuarmos separados, fragmentados e fora do nosso lugar ancestral, distantes de nós mesmos. Apesar disso, nunca paramos de lutar, de participar em eventos para dar visibilidade à nossa causa, de fazer articulações e conseguir apoio político, como também de acompanhar as reuniões com entidades indigenistas, como o CIMI, o movimento indígena como a COIAB, e com o Ministério Público Federal, sobre o território.

Para isso contamos com o trabalho da Comissão Memória de Tutawa,99. A Comissão Memória de Tutawa tem parceria com o Núcleo Estudantil de Assuntos Indígenas (NEAI) da UFT; Amazoniza-te: Construindo Redes de Afeto; os cineastas Henrique Borela e Marcela Borela; a linguista Dra. Mônica Veloso; a docente e psicóloga Carmem Hannud (CRP 23/1373); os antropólogos Patricia Rodriguês de Mendonça e Paulo Santilli; a ambientalista Luciana Ferraz; e o CIMI. criada em meados de 2020 para nos fortalecer enquanto movimento, e que conta com profissionais de diferentes áreas (psicologia, biologia, meio ambiente, antropologia, linguística e cinema) para contribuir com essas ações.

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5. Perícia antropológica para o povo Ãwa

Outro papel importante da Comissão nesse período foi o apoio para a realização da perícia antropológica, fruto de articulações e reuniões sem fim. A perícia é a fase do processo de demarcação de terras em que o juiz responsável pelo caso solicita um perito para responder às questões das partes interessadas na terra e, a partir disso, decidir sobre os encaminhamentos finais para desintrusão ou não, a depender do seu posicionamento. A equipe, que é composta por perito e auxiliares indicados pelo juiz, desenvolveu essa atividade com nosso povo em julho de 2020 em uma aldeia Javaé durante quase todo o mês, realizando desde entrevistas até genealogia. Foram registradas fotos e também vídeos. Ficamos extremamente ansiosos por esse momento, pois nos gerou a sensação de que a luta está avançando.

Entretanto, um dos desafios que foi preciso enfrentar para concretizar a perícia foi a manifestação contrária da Funai, que utilizou a pandemia como argumento para não realização da mesma, havendo ainda paralisado o levantamento fundiário que deveria ter sido finalizado em 2019.

Outra questão foi a dificuldade de arrecadar dinheiro para garantir o deslocamento de todo o povo para o local da perícia, a alimentação e os itens de higiene necessários para proteção contra a Covid-19, como álcool e máscaras. Por meio da Comissão e do CIMI foi possível alcançar uma arrecadação para cobrir esses gastos, mesmo que à distância. Foram mais de seis mil reais que a justiça brasileira não forneceu, nem a Funai deu suporte. Assim, sem a Comissão e nossa auto-organização indígena, não teríamos conseguido nem mesmo participar da perícia. Foi também uma pessoa da Comissão que esteve conosco fazendo os registros fotográficos e audiovisuais enquanto nos dedicamos a responder às perguntas do perito, ajudando a registrar essa memória da nossa luta.

Finalmente, diante do cenário caótico de pandemia e com a população Ãwa imunizada com a primeira e a segunda doses da vacina, a perícia antropológica começou no dia 15 de julho. Esta etapa do processo de demarcação foi desafiadora, pois pela primeira vez tivemos que reviver o passado do povo com a ausência de nosso avô Tutawa. Juntos com a nossa mãe Kawkamy tivemos novamente que reviver emoções de tristeza, dor, perda e sentir a injustiça que marca a nossa vida até hoje, que vem desde o século XVIII e que culminou com a nossa resistência ao homem branco no ano de 1973.

Mesmo com todo esse sofrimento e a resistência do nosso povo Ãwa, não parávamos de usar a palavra Namagaw, que quer dizer: “bom”, “estar tudo bom” ou “bem”. Pois temos esperança de que retornaremos para a nossa terra ancestral.

Por fim, a grande importância que a realização da perícia em meio à pandemia teve para nós, Ãwa, foi que nos sentimos mais cuidadas/os, esperançosas/os e fortalecidas/os. Desde a captura, a pandemia tem sido um dos piores momentos do nosso cativeiro, e a perícia foi algo que fez, por instantes, com que nos sentíssemos próximos ao ar da liberdade, da saúde e da vida. A melhor forma de nos protegermos contra a Covid-19 até agora foi continuar lutando por Taego. Não é possível pensar na prevenção, tratamento e promoção de saúde no contexto indígena separadamente dos territórios.

É preciso explicar que, com a paralisação da Funai, o processo de demarcação cessou, e foi ainda colocado em mais risco mediante a tramitação do Projeto de Lei 4901010. "Projeto de Lei No. 490 de 2007", Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), 2007, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://static.poder360.com.br/2021/06/Parecer-PL-490-2007-CCJC.pdf. e o Marco Temporal. Trata-se de projeto de lei que inviabiliza processos de demarcações, tira da Funai a autonomia para realizar novas demarcações, assim como revê as terras indígenas já demarcadas.

Os interesses por trás desse projeto são os da bancada ruralista,1111. Frente parlamentar formada por mais de 200 deputados federais de diversos partidos que defendem os interesses do agronegócio e de grandes produtores e latifundiários. que obteve apoio político no governo atual. Vale lembrar que, durante sua campanha eleitoral, o presidente Jair Messias Bolsonaro anunciou publicamente ser contra os processos de demarcação.

O Marco Temporal faz parte do PL 490, sendo um projeto de lei guarda-chuva que engloba os interesses daqueles que desde a violenta chegada de Pedro Álvares Cabral em 1500 desejam ocupar as terras indígenas. A tese do Marco Temporal é que os indígenas que não estiveram em suas terras no dia 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição brasileira, não terão direito de reivindicar suas terras ancestrais.

Sabemos que nossa história não começou no dia 5 de outubro de 1988. Nós, indígenas, ocupávamos todo o território brasileiro, e o direito aos processos de demarcações foi conquistado através do movimento indígena. Assim, temos legitimidade, pela Constituição, de retomar, perante a justiça brasileira, o que nos foi roubado. Para enfrentar estes projetos de lei que atacam o nosso bem viver de forma direta, os povos indígenas do Brasil têm se reunido na cidade de Brasília solicitando ao Supremo Tribunal Federal (STF) um olhar humano para nossos direitos e que votem “não” à tese do Marco Temporal.

Para nosso povo Ãwa, tal situação tem causado intenso sofrimento, o que revela, na defesa dos direitos humanos, o lugar central do território na garantia da saúde dos povos indígenas. A Comissão Memória de Tutawa, junto a apoiadores da causa, tem trabalhado arduamente em busca da conclusão do processo de demarcação, criando novas formas de divulgação das violências sofridas contra o nosso povo. Um exemplo disso é o blog “Nossa terra, nosso chão! Povo indígena Avá-Canoeiro”1212. "Identidade", Blog Povo Indígena Avá-Canoeiro, 2 de dezembro de 2020, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://avacanoeiro.blogspot.com/?m=1. que busca dar visibilidade à causa Ãwa. Outra função principal do blog é ser uma forma de contato contínuo com pessoas e organizações interessadas em nossa causa que queiram nos ajudar.

Dessa forma, na página estão disponibilizadas informações sobre como é possível nos apoiar financeiramente. A arrecadação financeira é fundamental para a associação continuar se organizando, participando de reuniões, se estruturando materialmente, produzindo materiais de divulgação e denúncia. Certamente, por meio disso, temos conseguido ampliar o nosso processo de visibilidade.1313. Em um mês conseguimos mais de mil visualizações no blog.

Durante a pandemia ficou mais evidente para nós que, na relação com a Comissão, quando nossos direitos são violados ou somos violentados, não podemos nos calar. A visibilidade é um caminho central indígena na busca pelo território, pela justiça, pela demarcação, e até mesmo pela nossa própria sobrevivência. Não é natural e nem mesmo normal que sejamos maltratados e negligenciados, por isso, é a memória dos ensinamentos e do afeto de Tutawa que cada vez segue firme em cada ação da Associação do Povo Ãwa (APÃWA) hoje. Nossa maior memória tem sido a nossa luta e nossa tomada de consciência cada vez mais profunda para continuar resistindo e existindo.

A história do nosso povo traz muitas questões sobre como a terra e o território são direitos, não apenas constitucionais, mas vitais. Sem o território, nós, povos indígenas, não vivemos bem e nem temos saúde. Para os não indígenas, a terra é apenas um pedaço de chão e não possui esse valor simbólico e espiritual, por isso, ainda hoje os artigos 231 e 232 da Constituição Federal são tão banalizados e ameaçados, e muitas vezes não acontecem na prática. Então, nossa história nos traz muita dor, mas também pode ser um ensinamento para os não indígenas sobre o valor da memória e da ancestralidade, sobre o direito humano que é a terra e que é a floresta, onde cabem diferentes tipos de humanidade, com a natureza preservada e as memórias vivas.

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6. Considerações finais

Este ensaio condensa um relato de uma contadora de histórias do povo Ãwa, filha de Kawmaky e neta de Tutawa, articuladora da luta pela demarcação da Terra Indígena Taego Ãwa, juntamente a outras lideranças, como o cacique Wapoxire. Trago memórias que não são apenas minhas, mas do meu povo, são memórias da resistência contra o colonizador.

Fomos capturados em 1973 durante a ditadura militar, sofrendo graves prejuízos sociais, vitais e espirituais até hoje. A única maneira de o Estado brasileiro compensar o nosso povo é reparar os danos causados por esse trauma e garantir a demarcação da terra e a possibilidade de vivermos segundo nossos costumes e forma tradicional de organização sociocultural, conforme previsto nos artigos 231 e 232 da Constituição.

Na pandemia do novo coronavírus, a demanda de demarcação se tornou mais intensa, e a ausência do território tem cada vez mais gerado um sofrimento muito forte, que deve ser um sinal de alerta para as autoridades e indigenistas sobre as ameaças ao bem viver dos Ãwa. As dificuldades que temos enfrentado são constrangimentos contra a nossa existência, mas temos a marca forte de encontrar motivo de alegria em nossa resistência mais dura.

A demarcação de terras e o bem viver dos povos indígenas são o centro de toda a vida étnico-cultural, mas a paralisia da Funai durante a pandemia é um indício da invisibilização da condição indígena. Mesmo no contexto da defesa dos direitos humanos, ainda é possível identificar uma concepção de quem é ou não é humano por parte da sociedade não indígena, elitista e eurocêntrica, que coloca meu povo até hoje em posição de marginalidade.

Na Comissão, contudo, aos poucos fortalecemos nosso desejo de seguir em frente com nossa luta, junto aos apoiadores da nossa causa, que contribuem com projetos de visibilidade, arrecadações e articulação política, ajudando nosso povo a se sentir parte da sociedade, isto é, a se sentir como pessoas e que a nossa causa é legítima.

A perícia antropológica de julho de 2021 foi um passo decisivo no processo de demarcação da terra, e foi possível graças a essa rede da Comissão Memória de Tutawa. A defesa do nosso território é a defesa da natureza, do meio ambiente e de toda a terra-mãe, e por isso deve ser uma luta de todos nós, Ãwa, e os não indígenas.

Nessa perspectiva, se faz necessário que os ministros do STF sejam a favor do direito à vida dos povos indígenas, votando “não” contra a tese do Marco Temporal e garantindo a sobrevivência dos poucos povos indígenas que ainda restam no Brasil. Assegurando que este país seja justo com aqueles que tiveram suas terras roubadas e a cultura alterada com o pensamento colonialista que devastou a existência de vários povos que aqui habitavam.

Por todo esse contexto histórico, que afetou diretamente meu povo dos tempos dos acampamentos na Mata Azul e Capão de Areia até hoje, acredito que a memória que registro neste texto é muito importante para trazer o olhar indígena para os direitos humanos, pois aborda uma necessidade humana, invisível em meio à pandemia, por não ser considerada uma demanda legítima humana. Nós, Ãwa, ao lutarmos pela nossa visibilidade e pelo nosso território, estamos lutando, no fim das contas, por sermos reconhecidos como seres humanos pelo Estado brasileiro.

Sem o território não conseguimos nos cuidar e nem nos proteger de qualquer ameaça contra a nossa existência, pois nós, Ãwa, somos Taego e enquanto ela estiver desprotegida, nós estaremos também. Assim, o olhar indígena do nosso povo para os direitos humanos resgata a humanidade para além do ser humano, abarcando tudo o que nos faz ser quem somos: a Memória de Tutawa.

Kamutaja Silva Ãwa - Brasil

Kamutaja Silva Ãwa é da etnia Ãwa, neta de Tutawa e filha de Kawkamy. Atualmente é presidenta da associação do seu povo. Cursa Licenciatura em Pedagogia na Universidade Federal do Tocantins (UFT), e atua como voluntária em projetos de outras universidades no combate ao racismo. Foi consultora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) no setor de povos indígenas isolados e recentemente passou a integrar o Conselho Fiscal do Instituto Indígena do Tocantins.

Recebido em Novembro de 2021

Original em português.