Sur 31 – Carta às leitoras e aos leitores

Maryuri Mora Grisales

Editora Executiva da Sur | Revista Internacional de Direitos Humanos

Com a colaboração de:

Eliana Sousa Silva11. Eliana Sousa Silva é fundadora e diretora da ONG Redes da Maré, curadora e organizadora do Festival Mulheres do Mundo – WOW Rio. Doutora Honoris Causa pela Queen Mary University of London e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio). Atuou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) por mais de 30 anos. Em 2007, Silva fundou – ao lado de outras lideranças locais – a ONG Redes da Maré, que executa 19 projetos em diferentes áreas que vão de educação a cultura, de capacitação profissional e empoderamento feminino a direitos humanos e segurança pública, de desenvolvimento territorial a memória coletiva. Ao longo de sua trajetória, Silva recebeu diversos prêmios, entre eles o Itaú Cultural 30 anos (2018), o Mulher do Ano - área social, do Rotary Club do Rio de Janeiro (2005), o Mulher Claudia - trabalho social, da Editora Abril (2004) e o Ashoka Empreendedores Sociais (2000).
Usha Ramanathan22. Usha Ramanathan é uma ativista indiana dos direitos humanos e especialista internacionalmente reconhecida em direito e pobreza. Ela estudou direito na Universidade de Madras, na Universidade de Nagpur e na Universidade de Delhi. Ela é pesquisadora do Centro para o Estudo de Sociedades em Desenvolvimento, na Índia. A Dra. Ramanathan ensina direito ambiental, direito do trabalho e direito do consumidor no Instituto de Direito Indiano. Ela é professora convidada regular em muitas universidades ao redor do mundo, membro do Painel Consultivo de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Anistia Internacional e também Editora do Sul da Ásia do Law, Environment and Development Journal (LEAD Journal), um periódico acadêmico com revisão por pares publicado em conjunto pela Escola de Direito da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS), da Universidade de Londres, e do Centro de Pesquisa em Direito Ambiental Internacional (IELRC).
Luis Gilberto Murillo Urrutia33. Luis Gilberto Murillo-Urrutia tem mais de 30 anos de experiência em formulação, implementação e advocacy de políticas públicas; particularmente, nas áreas de desenvolvimento regional sustentável, recursos naturais, proteção ambiental, inclusão social e construção da paz. Murillo-Urrutia é Engenheiro de Minas com mestrado em Engenharia. Atualmente é acadêmico visitante e fellow na cadeira Martin Luther King Jr. no MIT Environmental Solutions Initiative. É conselheiro e lidera pesquisas de políticas aplicadas na interseção de soluções comunitárias e baseadas na natureza para mudanças climáticas e justiça ambiental. Ele também é filiado ao Centro de Estudos Latinos e Latino-Americanos (CLALS) da American University em Washington DC como Pesquisador Fellow. Ele foi uma figura central na liderança da formulação e implementação da estrutura da política nacional de mudança climática sob o Acordo de Paris, a lei nacional de gestão da mudança climática, o imposto nacional sobre o carbono e o mercado voluntário de carbono orientado para a comunidade durante seu mandato como Ministro de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Colômbia. Através de suas várias funções no governo e na sociedade civil, Murillo-Urrutia tem estado na linha de frente da concepção e realização de um futuro melhor para o povo da Colômbia.
Rafael Zanatta44. Diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. É mestre pela Faculdade de Direito da USP e doutorando pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP. Mestre em direito e economia pela Universidade de Turim. Alumni do Privacy Law and Policy Course da Universidade de Amsterdam. Research Fellow da The New School (EUA). Membro da Rede Latino-Americana de Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits) e do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (Iberc). e Bruno Bioni55. Diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. Doutor em Direito Comercial e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Trainee do European Data Protection Board e do Departamento de Proteção de Dados do Conselho da Europa. Membro da Rede Latino-Americana de Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits).

Direitos Humanos no contexto de pandemia: impactos e respostas

A pandemia de Covid-19 provocou uma crise sanitária global, mas também evidenciou, de modo fundamental, uma crise econômica, política e ética: a desigualdade de acesso à saúde, e o monopólio de países ricos sobre a tecnologia e os insumos para produção de material sanitário e para atenção médica de qualidade; uma desigualdade marcada pelo racismo, pela necropolítica, pela agenda lucrativa da indústria farmacêutica internacional e por uma defesa intransigente das liberdades individuais sobre os direitos coletivos.

Ao fim de 2021, a equação do número de óbitos por Covid-1966. Número atualizado em janeiro de 2022: 5.554.786 mortes. versus a quantidade de pessoas vacinadas contra o vírus (por continente) atesta a profunda desigualdade entre o Norte e o Sul Global. Embora 60,2% da população mundial tenha recebido ao menos uma dose da vacina,77. "Coronavirus (COVID-19) Vaccinations", Our World in Data, 2022, acesso em 26 de janeiro de 2022, https://ourworldindata.org/covid-vaccinations?country=OWID_WRL. apenas 9,4% das pessoas em países de baixa renda receberam pelo menos uma dose. A América Latina, graças à sua forte cultura de vacinação criada no século passado, conseguiu iniciar, tardiamente, uma campanha bem-sucedida de aplicação das vacinas, mobilizando o direito social à saúde.88. Chase Harrison, Luisa Horwitz e Carin Zissis, "Timeline: Tracking Latin America’s Road to Vaccination". AS/COA, 18 de janeiro de 2022, acesso em 27 de janeiro de 2022, https://www.as-coa.org/articles/timeline-tracking-latin-americas-road-vaccination.

Além da falta de acesso às vacinas e da lentidão no cronograma de vacinação, países pobres têm enfrentado os impactos da pandemia de Covid-19 principalmente sobre as pessoas com menos acesso a direitos: mulheres e meninas, migrantes, população negra e indígena, entre outras. Aliados a uma forte queda na produção econômica, e a uma capacidade diferenciada (também desigual) de resposta à crise, os índices de desemprego, pobreza, violência e fome foram triplicados nesses países.

O conteúdo desta edição da Revista Sur reflete o nosso interesse em discutir os impactos da pandemia no Sul Global, reconhecendo-se tais impactos como sendo diferenciados sobre povos indígenas, comunidades negras/afrodescendentes e o meio ambiente, mas também pela forma em que contextos de incerteza política e sanitária como o atual potencializam o uso e abuso de tecnologias de vigilância que ameaçam a liberdade, a privacidade e outros direitos humanos.

As contribuições desta edição da Sur também refletem a resiliência, a criatividade e o trabalho constante de articulação da sociedade civil, especialmente das populações mais afetadas, para enfrentar não apenas a crise causada pela Covid-19, mas um sistema global desigual.

Bolsas de escrita

Buscando ampliar e diversificar as vozes presentes na revista e fortalecer a política interna de ações afirmativas, em agosto de 2021, a Conectas divulgou o seu segundo edital de Bolsas de Escrita voltadas à publicação de artigos e ensaios na Sur 31 e direcionado especificamente a pessoas negras e indígenas residentes no Brasil. Durante o período de concessão das bolsas, cada bolsista recebeu apoio financeiro99. Cada bolsa teve um valor total de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). assim como mentoria da Professora Dra. Vera Rodrigues (UNILAB/ ABPN).1010. Vera Rodrigues é professora no Programa Associado de Pós-graduação em Antropologia UFC-Unilab. Professora no seminário especializado “O Brasil contemporâneo sob a ótica de pensadores(as) negros(as): o que temos a dizer sobre democracia, fascismo e racismo” promovido Certificado em Estudios Afrolatinoamericanos/Universidade de Harvard. Coordenadora do projeto de extensão “Mulheres Negras Resistem: processo formativo teórico-político para mulheres negras”. Membro do Comitê de antropólogos(as) negros(as) da ABA – Associação Brasileira de Antropologia. Diretora de Áreas Acadêmicas da ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores Negros(as).

Sobre o processo de seleção, foram recebidas 1.203 inscrições de pessoas negras e 216 de pessoas indígenas, totalizando 1.419 inscrições – um aumento de aproximadamente 40% em comparação com o edital de bolsas da edição 28 da Sur, em 2018. Por trás desse impressionante número, observamos candidaturas oriundas das cinco regiões do país, abordando diferentes vivências e linhas de pesquisa dentro do escopo temático dos direitos humanos, vigilantismo e questão ambiental em meio à pandemia da Covid-19.

Esperamos, portanto, que os quatro textos publicados nesta edição da Sur resultantes desse processo representem a riqueza de perspectivas – geográficas, raciais e de gênero – observada nas propostas selecionadas. Dito isso, as quatro bolsas concedidas representam a ponta final de um processo enriquecedor e desafiador para a Conectas e para a equipe da Sur, de maneira especial. Para tanto, foram de suma importância a colaboração e o empenho internos do Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo da Conectas, a quem deixamos aqui nosso especial agradecimento.

Para complementar esta breve análise, a Profa. Vera Rodrigues destaca que, para além das questões práticas de uma mentoria de escrita, o processo também significou a formação de redes afetivas, teóricas e políticas, provocando reflexões sobre a sua própria trajetória: “Eu, como mulher negra e professora em universidade pública, tive a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento de reflexão e escrita de mulheres negras e indígenas. Muitas vezes, desejei ter vivido algo assim. Algo que não me foi oportunizado na minha formação acadêmica, por exemplo, mas que agora se deu na concretude de outro espaço de encontros. A publicação delas é um ato político, como diria Conceição Evaristo”.

COVID-19 E DIREITOS HUMANOS

Impactos

No primeiro texto, Felipe González Morales (Chile) e Renato Zerbini Ribeiro Leão (Brasil) chamam atenção para as ameaças que a pandemia trouxe para as pessoas migrantes, assim como aos desafios que a exacerbação da vulnerabilidade em que esta população já se encontra coloca para os mecanismos internacionais de proteção. Os autores destacam a criação de um GT Covid-19 e os esforços dos Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU para instar os governos a se comprometerem com urgência a seguir as recomendações e tomar medidas concretas para mitigar o impacto da pandemia na população migrante.

Vivek Divan, Gargi Mishra, Disha Verma, Siddharth Peter de Souza, Varsha Aithala, Naomi Jose, Conor McGlynn, Teresa Sebastian e Vaibhav Bhawsar (Índia) apresentam o projeto “Linha do tempo da Covid-19 e constituição”, que documenta as respostas jurídicas e políticas da Índia à pandemia por meio de uma ferramenta on-line e à luz dos direitos fundamentais garantidos pela constituição. Trata-se de um projeto que situa, numa linha cronológica, as principais ações do governo indiano para lidar com a emergência sanitária provocada pela pandemia. Um diferencial é o cruzamento com narrativas de vida, em sua maioria ilustradas ao estilo de cartazes, que visam mostrar o impacto da Covid-19 de uma maneira mais humana, acessível e dinâmica.

Yara Pinho de Lima, indígena do povo Macuxi (Brasil), uma das quatro autoras bolsistas desta edição, relata o que tem sido a experiência da pandemia para os povos indígenas da Boca da Mata (Roraima). No texto, além de mostrar como as medidas de isolamento e distanciamento social afetaram profundamente valores e práticas fundamentais para o cotidiano nas comunidades, a autora descreve os desafios que a agenda de vacinação enfrentou dentro das aldeias.

Respostas locais

De modo geral, e a despeito de uma crise sanitária global sem precedentes, temos acompanhado nos últimos dois anos a resiliência dos movimentos sociais e o surgimento de diversas formas de organização coletiva, tanto para mitigar os efeitos negativos recaídos sobre comunidades periféricas e empobrecidas, quanto para buscar soluções estruturais em nível regional e internacional. Aqui, trazemos três experiências de resposta à pandemia a partir do fortalecimento da capacidade local e da escuta ativa do território.

De um lado, Lizeth Sinisterra (Colômbia) nos apresenta o projeto Pacifico Task Force, uma aliança da sociedade civil que trabalhou de maneira articulada no enfrentamento das desigualdades e injustiças que a pandemia recrudesceu entre a população negra no Pacífico colombiano. Ao incorporar um enfoque diferencial de raça, e através de uma metodologia que dialoga diretamente com as especificidades do território, o projeto conseguiu, além do fortalecimento material, consolidar a capacidade instalada das comunidades, gerando processos que lhes possibilitam uma adaptação e capacidade de resposta futura a contextos parecidos.

De outro, temos a experiência do enfrentamento à pandemia no Rio de Janeiro, especificamente nas Redes da Maré. Num formato que mistura perfil e reflexão institucional, o texto elaborado em colaboração com Eliana Sousa Silva (Brasil) descreve as principais linhas de ação de uma bem-sucedida campanha contra a Covid-19, em termos de alcance e eficiência, no maior conjunto de favelas cariocas. Para além dos resultados positivos decorrentes de um trabalho árduo e de uma trajetória de muitos anos de luta por acesso a direitos na periferia, são destacados os impactos institucionais e os desafios vividos pela organização durante a pandemia. Numa outra perspectiva, mas ainda no território da Maré, Angélica Ferraz (Brasil), autora bolsista desta edição, propõe uma visão diferenciada em seu texto ao trazer relatos espelhando vozes e experiências de mulheres que constroem o dia a dia da favela, tanto pelo viés dos impactos da pandemia, quanto das respostas que são imaginadas e vivenciadas de dentro para fora das janelas.

ARTE

Expressões artísticas também fazem parte das respostas ou das estratégias para lidar com as experiências desses novos tempos. Nesse sentido, a fotografia pode ser um meio privilegiado de retratar o cotidiano pandêmico, mas também de elaborar e ressignificar aspectos como sofrimento, morte, memória e esperança. A partir dessa compreensão, temos o prazer de incluir uma obra da artista Zarra (Brasil) que consiste numa colagem enigmática de fotografias intitulada “A cruz em amarelo”. A polissemia do signo capturado na lente da câmera – uma inscrição em X numa calçada, originalmente marcando o distanciamento social no espaço público – se justapõe à interpretação da artista, que faz uma homenagem às vítimas da Covid-19 no Brasil a partir de um olhar crítico, racializado e empático.

Geopolítica das vacinas

Em dezembro de 2020, o Reino Unido se tornou o primeiro país do Ocidente a iniciar a vacinação contra o novo coronavírus, tendo vacinado quase 70% da população após um ano. Enquanto isso, o continente africano registrava, em dezembro de 2021, um índice de aproximadamente 7% da sua população vacinada. Desigualdade na produção, distribuição e no acesso às vacinas, em suma, um problema que autoridades sanitárias e a comunidade científica tentaram desde o começo da pandemia explicar: índices baixos de vacinação significam uma ameaça, a possibilidade do surgimento de novas variantes em qualquer lugar do mundo e um desafio para a imunização global.

Dois textos nesta edição discutem de maneira crítica o problema das vacinas no cenário internacional. Alan Rossi Silva, Clara Alves Silva, Felipe de Carvalho Borges da Fonseca, Pedro Villardi e Susana Rodrigues Cavalcanti van der Ploeg (Brasil) mostram como o sistema de propriedade intelectual tem representado uma barreira primordial para o controle da Covid-19 no mundo e, portanto, uma ameaça à saúde pública, e reafirmam a importância da defesa de iniciativas como o TRIPS Waiver para a garantia dos direitos humanos neste contexto. Na mesma direção, .Fatima Hassan (África do Sul), em entrevista à Sur, critica o que ela denomina como sendo o apartheid de vacinas, decorrente de um contexto desigual cujas razões sistêmicas negligenciam o seu continente, por exemplo. Ela chama a atenção para a gravidade, em termos de direitos humanos (o alto custo humano), da não liberação temporária da propriedade intelectual das patentes das vacinas por parte de grandes farmacêuticas e dos países ricos como Estados Unidos, Reino Unido e alguns países da União Europeia. Na entrevista, fica evidente que a luta pelo acesso às vacinas contra Covid-19 representou, desde o começo, uma luta contra as regras do sistema de comércio global e sua desigualdade e, por isso mesmo, uma questão de justiça e direitos humanos.

Agendas estruturais em meio à pandemia

Pautas de direitos humanos como a questão climática e ambiental, os direitos indígenas e a crise migratória global continuam sendo urgentes e foram especialmente desafiadas, nos últimos dois anos, pelo agravamento de violações resultantes da pandemia. Kamutaja Silva Ãwa (Brasil), também bolsista desta edição da Sur, nos conta, em primeira pessoa, a luta do seu povo Ãwa pelo direito a existir num país que lhe negou desde sempre tal direito. A Covid-19 se somou à política genocida do Estado brasileiro e à dificuldade histórica de acesso às suas terras ancestrais, aprofundando a situação de vulnerabilidade do seu povo, a quem, na ausência de território, foi negada autonomia para enfrentar a crise sanitária. Apesar da realidade de sofrimento e dor que a luta indígena no Brasil pressupõe, o texto mostra a potência de um povo que não desiste do bem viver, nem da memória e do território como direitos fundamentais.

A Conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas (COP 26) de 2021 ocorreu em meio a desafios planetários urgentes. A luta pela justiça climática tem o potencial de congregar a preocupação com a natureza e o reconhecimento das múltiplas formas de opressão, incluindo questões de gênero e de raça. Para Luis Gilberto Murillo e Marcela Angel Lalinde (Colômbia), a justiça racial está intimamente ligada à justiça ambiental, sendo categorias indivisíveis. Numa reflexão sobre a sua participação em Glasgow, o texto questiona a falta de importância concedida às comunidades afrodescendentes e ao papel fundamental que desempenham na transição socioecológica planetária necessária para superar as crises climáticas e de biodiversidade, assim como destaca a criação de um Fórum Inter-afro-americano sobre Mudanças Climáticas.

A questão migratória, como já mencionado pelo primeiro texto apresentado nesta carta, também é uma agenda de direitos fortemente afetada pela atual crise global da Covid-19. O texto de Margarida Lunetta (Brasil) e Ilan Vuddamalay (Suíça), da Laudes Foundation, contribui com uma reflexão sobre o papel da filantropia para conseguir mudanças significativas junto à sociedade civil. Reconhecendo o advocacy como um dos meios mais eficazes para transformar sistemas, atitudes e comportamentos estruturais dominantes, as autoras destacam a nova Lei de Migração de 2017 como uma conquista histórica para o Brasil e para a luta pelos direitos dos migrantes, e como um exemplo do potencial da ação colaborativa entre financiadores e sociedade civil.

SEGURANÇA E VIGILANTISMO

O desenvolvimento acelerado de tecnologias e softwares especializados em rastreamento e vigilância tem facilitado, cada vez mais, o acesso ilimitado a dados e a centralização de informação por parte de governos e do setor privado, sem mecanismos de fiscalização efetivos. Usha Ramanathan (Índia), em entrevista à Revista Sur, relata em detalhes o que foi o árduo trabalho – perante o Supremo Tribunal – contra o sistema de Identificação Única na Índia, que, segundo ela, funcionava para vigiar e controlar a cidadania ao mesmo tempo em que excluía e invisibilizava a população mais pobre. Na conversa, Usha Ramanathan compartilhou, de forma aprofundada, sua crítica à tecnologia e a sua capacidade de ultrapassar todos os limites, assim como dividiu fortes suspeitas em relação à eficácia da lei de proteção de dados para evitar a violação do direito à privacidade.

Nessa seara, faz parte das reflexões desta edição a análise de leis que, sob pretexto de enfrentamento ao terrorismo – e, mais recentemente, à Covid-19 – geram regimes excepcionais de coletas de dados e formas de vigilância e investigação especialmente invasivas. Nessa direção, e também em diálogo com a Sur, Jamila Venturi e Michel Souza (Brasil), da organização Derechos Digitales (Chile), explicam os riscos que as tecnologias de reconhecimento facial representam em contextos como o latino-americano, o qual conta com um histórico de desigualdade social, violação de direitos e criminalização de movimentos sociais. Na entrevista são destacadas a falta de transparência na aquisição dessas tecnologias de vigilância, problemas envolvendo políticas de uso e armazenamento de dados, assim como as implicações econômicas e políticas da relação entre os desenvolvedores/vendedores (majoritariamente do Norte Global) e os compradores destas tecnologias, no Sul. Como parte de uma organização que defende direitos humanos no ambiente digital, Venturi e Souza demonstram uma preocupação com o uso indiscriminado dessas tecnologias e os riscos envolvendo vigilantismo, repressão, rastreamento cidadão e, principalmente, o preconceito racial presente nos algoritmos usados para reconhecimento facial.

Embora o uso de softwares e tecnologias de controle e vigilância não seja uma novidade, a pandemia suscitou o debate sobre recursos tecnológicos que passaram a ser mais usados nesse contexto, como é o caso do eProctoring, um software que mistura reconhecimento facial, biometria e inteligência artificial para fazer avaliação remota on-line de estudantes no âmbito da modalidade de educação virtual. Em seu artigo, Carlos Guerrero (Peru) analisa o impacto do uso do eProctoring e a ameaça que pode representar em termos de direito à privacidade e à proteção de dados das/os estudantes, principalmente na América Latina, onde existe pouca regulamentação aplicável a esses programas.

Finalizando este segmento sobre vigilantismo e segurança, Mariah Rafaela Silva (Brasil), também bolsista nesta edição da Sur, apresenta um artigo interseccionando a discussão sobre tecnologia, reconhecimento facial, sistemas de controle e vigilância cidadã com a experiência generificada e racializada de pessoas historicamente subalternizadas. Para ela, as tecnologias baseadas em algoritmos não apresentam riscos apenas às democracias ao redor do mundo, como também colocam sob exame e vigilância constante corpos e subjetividades, reiterando padrões discriminatórios pelos vieses de raça e de identidade de gênero. Ao superar análises convencionais, a autora introduz novos conceitos para uma crítica das tecnologias de controle social e dos corpos.

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Vale ressaltar que esta edição 31 da Sur foi planejada e produzida durante o segundo ano da pandemia de Covid-19, o qual imaginávamos que seria melhor do que o anterior, pois estaríamos em melhor adaptação às condições que tal “realidade” nos impôs. Infelizmente, os signos desse 2021, foram, entre outros, instáveis formatos de isolamento social; uma exposição exacerbada à informação (gerando uma espécie de “infodemia”); a necessária reinvenção dos modos de viver, trabalhar e experimentar a morte e o luto; as tentativas de tornar rotineiro o caos global em meio a um esgotamento físico e mental; e as esperanças constantemente frustradas. Este número da revista carrega, inevitavelmente, esses signos.

Assim, gostaríamos de deixar o nosso reconhecimento e agradecimento a todas as pessoas que, em meio às marcas da crise planetária em curso, contribuíram com o seu conhecimento, trajetória, trabalho, voz, tempo e contatos para possibilitar esta publicação.

Nenhum número da Sur seria possível sem o apoio e colaboração de alguns financiadores, agradecemos especialmente à Open Society Foundations, Sigrid Rausing Trust, Oak Foundation; assim como aos doadores particulares e anônimos que apoiam a defesa de direitos humanos no trabalho da Conectas.

Agradecemos, também, às seguintes pessoas que colaboraram nesta edição: Arquias Sófocles Guimarães Soares Cruz, Carla Cole, CA Beltrán Acero, Celina Lagrutta, Gustavo Hupes, Helena Secaf, Fernando Campos Leza, Fernando Sciré, Jane do Carmo, Karen Lang, Letícia Coelho, Lucas Gomes, Luis Misiara, Marina Meira, Marina Rongo, Naiade Rufino Silva, Pedro Maia Soares, Raissa Belintani, Sandrio Cândido, Saulo Padilha, Sebastián Porrua Schiess, Valéria Pandjiarjian e Vitor Henrique Pinto Ido.

Por fim, um agradecimento especial a toda a equipe da Conectas pelo apoio e colaboração constantes nesta edição, com destaque à equipe de Comunicação e ao GT de Combate ao Racismo.