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Equidade ambiental e justiça racial

Luis Gilberto Murillo e Marcela Angel Lalinde

Soluções Climáticas Naturais na Amazônia e o Cinturão Natural Negro/Afrodescendente das Américas

Santiago Rave Herrera

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RESUMO

Os povos afrodescendentes das Américas são desproporcionalmente afetados pela sobreposição de crises como as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a degradação ecológica, a pandemia de Covid-19, a crise de saúde pública, a extrema desigualdade socioeconômica, o racismo estrutural e o aumento da violência contra lideranças sociais. Ainda que as comunidades do Cinturão Natural Negro/Afrodescendente das Américas (CiNAA) tenham papel central na resposta integrada a essas crises, e apesar da grande riqueza de experiências e boas práticas em âmbito local e nacional, não se têm dado suficiente preponderância às comunidades afrodescendentes e ao papel fundamental que desempenham na transição socioecológica planetária necessária para superar as crises climáticas e de biodiversidade. Este artigo, entre outros pontos, debate a importância dessas comunidades na implementação do conjunto de Soluções Climáticas Naturais na região e em âmbito global nos territórios que se enquadram conceitualmente neste cinturão.

Palavras-Chave

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A humanidade enfrenta desafios de grande magnitude e interligados, como as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a degradação ecológica, a pandemia de Covid-19, a crise de saúde pública, a extrema desigualdade socioeconômica, o racismo estrutural e o aumento da violência contra lideranças sociais,11. "Defending Tomorrow: The climate crisis and threats against land and environmental defenders", Global Witness, julio de 2020, acesso em 15 de dezembro de 2021, https://www.globalwitness.org/documents/19938/Defending_Tomorrow_EN_high_res_-_July_2020.pdf. entre outros. Os povos afrodescendentes das Américas são desproporcionalmente afetados pela sobreposição destas crises e, ao mesmo tempo, estão no centro de sua solução.

A região da América Latina e do Caribe possui características privilegiadas para responder a esses desafios por meio de Soluções Climáticas e Comunitárias Naturais22. O Relatório Especial sobre Mudanças Climáticas e a Terra, publicado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) em agosto de 2019, afirmou o papel de liderança dos países latinoamericanos na identificação e implementação de Soluções Baseadas na Natureza (NBS, na sigla em inglês) que ajudam a combater às mudanças climáticas, a preservar as reservas de biodiversidade e a fortalecer a resiliência das comunidades. "Land is a Critical Resource, IPCC report says", IPCC, 8 de agosto de 2019, acesso em 15 de dezembro de 2021, https://www.ipcc.ch/2019/08/08/land-is-a-critical-resource_srccl/. para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas em um marco de transformação e desenvolvimento sustentável, conservação ambiental, gestão de riscos e resiliência. Por um lado, 42% das emissões na América Latina e no Caribe correspondem à agricultura, silvicultura e outras formas de uso da terra (AFOLU, na sigla em inglês).33. AFOLU (Agriculture, Forestry and Other Land Uses) —Agricultura, Silvicultura y Otros Usos de la Tierra, ASOUT: É um termo das diretrizes desenvolvidas em 2006 pelo IPCC que descreve uma categoria de atividades que contribuem para a emissão antropogênica de gases de efeito estufa. Por outro lado, a região conta com um grande patrimônio natural. Com apenas 16% da superfície terrestre do planeta, possui 50% da biodiversidade mundial, 23% da cobertura florestal e 30% da água. A intersecção desses fenômenos representa uma das maiores oportunidades para promover uma mudança com baixa emissão de carbono e o desenvolvimento sustentável na região.

No entanto, a riqueza natural da América Latina e do Caribe está sob fortes pressões. Estima-se que existam duzentos milhões de hectares de áreas degradadas na região e que a área florestal diminuiu de 51% do território em 1990, para 46,4% em 2015. Isto possui sérias implicações para a conservação da biodiversidade e de ecossistemas estratégicos, para os esforços de mitigação de mudanças climáticas e para justiça ambiental e racial, uma vez que grande parte das riquezas naturais da região se encontra em território de comunidades afrodescendentes. As comunidades étnicas, indígenas e afrodescendentes, têm mais de quatrocentos milhões de hectares que contêm cerca de 40% das florestas da região.44. David Kaimowitz, "Los Pueblos Indígenas y tribales y la gobernanza de los bosques. Una oportunidad para la acción climática en América Latina y el Caribe". Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, sigla em inglês), 2021, acesso em 15 de dezembro de 2021, http://www.fao.org/americas/publicaciones-audio-video/indigenas-y-gobernanza-de-bosques/es/. No caso colombiano, esse percentual chega a 50%.55. Lisneider Hinestroza Cuesta, Declaración de áreas protegidas en territorios colectivos de comunidades negras de Colombia (Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2008). Estas florestas contêm 30% do carbono armazenado nas florestas da América Latina e do Caribe (34 bilhões de toneladas métricas de carbono) e 14% do carbono armazenado nas florestas tropicais em todo o mundo.

Atualmente, 135 milhões de hectares não estão legalmente cobertos por direitos coletivos de propriedade ou de usufruto das comunidades e os progressos na titulação são lentos e insuficientes. Nos últimos trinta anos, apenas oito milhões de hectares foram titulados a povos afrodescendentes, dos 30 a 40 hectares estimados como passíveis de titulação entre Colômbia, Brasil, Equador, Nicarágua e Honduras. Ademais, os efeitos da mudança climática representam uma grande ameaça para a população afrodescendente das Américas e agravam as condições de vulnerabilidade, o risco e a exposição a desastres naturais, a perpetuação da pobreza extrema e as condições de desigualdade socioambiental.

Os eventos climáticos extremos impactaram substancialmente essas comunidades na última década. Esta situação é ilustrada pelos impactos dos furacões Katrina, Harvey, Sandy, Irma, Maria e recentemente Laura, que afetaram desproporcionalmente a população afrodescendente do Caribe e dos Estados Unidos. Da mesma forma, na América Latina e no Caribe, os recentes furacões Iota e Eta impactaram as comunidades costeiras do Caribe, incluindo Colômbia, Honduras e Nicarágua, com um efeito devastador sobre os povos afrodescendentes. Somam-se a isso as mudanças continuadas de temperatura e nas precipitações, que terão consequências negativas permanentes nos territórios dessas comunidades e cujos efeitos não foram suficientemente estudados a partir de um paradigma da justiça ambiental e racial.

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Os impactos desproporcionais nessas comunidades não são uma coincidência.66. "Afrodescendientes y la matriz de desigualdad social en América Latina. Retos para la inclusión", Comisión Económica para América Latina y el Caribe, 2020, acesso em 15 de dezembro de 2021, https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/46191/4/S2000226_es.pdf. Os primeiros africanos escravizados chegaram à América no final do século XV como resultado do infame tráfico de escravos. De acordo com o padrão populacional associado ao cimarronaje e aos palenques,77. Nota de edição: Cimarronaje se refere aos processos de resistência ao sistema colonial em que os escravos fugiam de seus senhores. Palenque era o lugar (geralmente de difícil acesso) onde escravos negros fugitivos se refugiavam. Ver Alen Castaño, "Palenques y Cimarronaje: procesos de resistencia al sistema colonial esclavista en el Caribe Sabanero (Siglos XVI, XVII y XVIII)", CS no. 16 (maio-agosto, 2015): 61-86, acesso em 15 de dezembro de 2021, http://www.scielo.org.co/pdf/recs/n16/n16a04.pdf . estas comunidades se localizavam em áreas de grande oferta natural buscando isolar-se do mundo colonial e utilizando ecossistemas naturais como mecanismo de proteção, mas eram altamente conectadas entre si. Posteriormente, a estrutura hierarquicamente racializada levou a que elas ficassem fora da tomada de decisão em um quadro de invisibilidade que permanece, dada a prevalência do racismo estrutural que continua a afetar a região. No entanto, estas mesmas condições de isolamento levaram essas comunidades a desenvolver modelos únicos de adaptação aos seus ambientes naturais que acarretam a conservação do patrimônio natural.

Essa condição de exclusão histórica se constata atualmente na exposição desproporcional a riscos e ameaças ambientais, e no acesso desigual à tomada de decisões relacionadas à proteção e conservação dos recursos naturais. Estes fatores criaram condições de enorme injustiça ambiental e racial para a população negra/afrodescendente no hemisfério ocidental. Embora tenham ocorrido avanços importantes no reconhecimento do papel das comunidades locais na conservação de ecossistemas estratégicos,88. Katie Reytar e Peter Veit, "Indigenous Peoples and Local Communities Are the World’s Secret Weapon in Curbing Climate Change". World Resources Institute, 10 de novembro de 2016, acesso em 15 de dezembro de 2021, https://www.wri.org/blog/2016/11/indigenous-peoples-and-local-communities-are-worlds-secret-weapon-curbing-climate. é importante ressaltar que a contribuição das comunidades afrodescendentes continua a ser sistematicamente ignorada. Por exemplo, nas discussões sobre a Amazônia, pouco ou nada é mencionado sobre as comunidades quilombolas do Brasil, se desconhecendo que mais ou menos 80% da população da Amazônia brasileira é afrodescendente.99. "População chega a 205,5 milhões, com menos brancos e mais pardos e pretos", Agência IBGE, 24 de novembro de 2017, acesso em 15 de dezembro de 2021, https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-populacao-chega-a-205-5-milhoes-com-menos-brancos-e-mais-pardos-e-pretos. Da mesma forma, a população Maroon1010. Nota de edição: Os Maroon, do sul do Suriname, são descendentes de africanos escravizados que fugiram das plantações e lutaram na guerra de libertação. no Suriname e na Guiana, e os grupos afrodescendentes colombianos que habitam este importante bioma, também são desconhecidos. Um fenômeno semelhante ocorre quando se trata de questões relacionadas aos ecossistemas marinhos e costeiros, especialmente no Caribe, nas Bahamas e no sul dos Estados Unidos.

Ainda que as comunidades do que denominamos Cinturão Natural Negro/Afrodescendente das Américas (CiNAA) tenham papel central na resposta integrada às crises de mudança climática e perda de biodiversidade, desigualdade e exclusão socioeconômica, tráfico de drogas, migração e violência estrutural, entre outras, e apesar da grande riqueza de experiências e boas práticas em âmbito local e nacional, não se têm dado suficiente preponderância às comunidades afrodescendentes e ao papel fundamental que desempenham na transição socioecológica planetária necessária para superar as crises climáticas e de biodiversidade. Por isso, é necessário começar a documentar as condições geográficas, ecológicas e de importância estratégica ambiental, bem como os valores culturais, os modelos de governança e as contribuições históricas para a gestão ambiental. Além do mais, deve ser ressaltada a importância das comunidades afrodescendentes na implementação do conjunto de Soluções Climáticas Naturais na região e em âmbito global nos territórios que se enquadram conceitualmente neste cinturão.

Este conceito geográfico está baseado em características socioecológicas, linguísticas e culturais em âmbito hemisférico. Dada sua escala, implica que não há solução climática efetiva sem a contribuição do patrimônio natural das comunidades afrodescendentes da América Latina e do Caribe. No entanto, o que acontece com essas comunidades é paradoxal. Por um lado, possuem uma enorme riqueza natural que presta serviços ambientais de valor inestimável para a humanidade e, por outro, vivem em meio a condições precárias e com alto grau de necessidades básicas não atendidas. Para superar estas condições, novos paradigmas são necessários a partir de uma visão do Sul Global que reflita os desafios enfrentados pelas comunidades que enfrentam desafios semelhantes. Em particular, levando em consideração que o surgimento e a evolução do movimento ambiental e conservacionista1111. Dorceta E. Taylor, The Rise of the American Conservation Movement. Power, Privilege, and Environmental Protection (Durham: Duke University Press, 2016). foram fundados sob relações de poder que tornaram invisíveis e excluídas as populações indígenas e afrodescendentes em toda a América Latina, Caribe e Estados Unidos, o novo paradigma deveria ter como eixos centrais a inclusão racial e social, o multiculturalismo e a justiça pluriversal.1212. Arturo Escobar, Pluriversal Politics. The real and the possible (Durham: Duke University Press, 2020).

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No caminho para corrigir esses desequilíbrios históricos e suas consequências contemporâneas, é necessário identificar atores-chave, conectá-los regionalmente, gerar trocas, abrir espaços de escuta em centros de poder regional e global e criar plataformas para amplificar as vozes de líderes climáticos e ambientais afrodescendentes. Isto requer o fortalecimento das redes existentes, bem como a formação de novas redes e pontos para troca de experiências e advocacy conjunto para ampliar a voz, a incidência e a participação dessas comunidades nos cenários internacional, regional e local, onde são tomadas as decisões climáticas e ambientais que as afetam diretamente. Além disso, estas ações devem ser potencializadas por desenvolvimentos tecnológicos criados conjuntamente com as comunidades afrodescendentes locais para a coleta e geração de dados e de evidências científicas. Neste sentido, é necessário implementar um enfoque diferencial e de justiça racial e ambiental na geração de dados e na análise dos impactos e contribuições ambientais dessas comunidades desde uma perspectiva sub-regional, regional e hemisférica,1313. Luis Gilberto Murillo e Caroline White-Nockleby "Climate, security, and racial justice: Biden’s opportunity to advance U.S. Policy in Latin America and the Caribbean". Global MIT, 6 de junho de 2021, acesso em 15 de dezembro de 2021, https://global.mit.edu/news-stories/climate-security-and-racial-justice-bidens-opportunity-to-advance-u-s-policy-in-latin-america-and-the-caribbean/. ao mesmo tempo em que se desenvolvam tecnologias de ponta que permitam fortalecer a eficácia da gestão ambiental e a autonomia destas comunidades na gestão de seus territórios.

Neste contexto, a justiça racial está intimamente ligada à justiça ambiental, sendo categorias indivisíveis. No entanto, ainda existem questões conceituais, instrumentais e empíricas que convidam a dar maior enfoque teórico e prático à dimensão da justiça racial e da equidade ambiental desde a perspectiva das comunidades que vivem o dia a dia das grandes desigualdades sócio/espaciais que caracterizam o hemisfério ocidental. Esse nexo crucial, mas pouco estudado, é exacerbado pela falta de uma agenda sistemática de pesquisa crítica em torno das relações entre o bem-estar das comunidades negras/afrodescendentes em escala hemisférica e o planejamento urbano e ambiental, as ações climáticas e de conservação ambiental.

Na última COP26 da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, realizada em Glasgow, um destacado grupo de líderes e inovadores comunitários da região, em colaboração com a Iniciativa de Soluções Ambientais do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), lançaram o Fórum Inter-afro-americano sobre Mudanças Climáticas (Foro Inter-Afroamericano de Cambio Climático). Este Fórum visa promover respostas eficazes às lacunas na pesquisa participativa, implementação de ações no terreno e advocacy de alto impacto, em um quadro colaborativo a partir de uma visão do Sul Global. Da mesma forma, o Fórum busca empoderar as comunidades afrodescendentes por meio da criação e fortalecimento de uma rede de lideranças afrodescendentes em nível hemisférico, da sistematização de lições aprendidas e boas práticas e da análise e produção de informação com foco na justiça ambiental e racial.

Nos próximos anos, e com o apoio da Iniciativa de Soluções Ambientais do MIT, bem como de universidades e centros de pesquisa no Sul Global, o Fórum estará focado na criação de uma agenda de pesquisa colaborativa para promover a criação conjunta de informações, inovação comunitária e advocacy de alto impacto que apoiem a implementação de Soluções Climáticas e Comunitárias Naturais como estratégias de transformação e construção de equidade, paz e bem-estar no Cinturão Natural Afrodescendente das Américas (CiNAA) e na Amazônia.

Luis Gilberto Murillo - Colômbia

Luis Gilberto Murillo foi ministro do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Colômbia, é professor visitante do programa Martin Luther King, na Iniciativa de Soluções Ambientais do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (Massachusetts Institute of Technology - MIT).

Recebido em Dezembro de 2021

Original em espanhol. Traduzido por Fernando Sciré.

Marcela Angel Lalinde - Colômbia

Marcela Angel Lalinde é Diretora do Programa de Pesquisa e dirige o Programa de Soluções Climáticas Naturais da Iniciativa de Soluções Ambientais do MIT.

Recebido em Dezembro de 2021

Original em espanhol. Traduzido por Fernando Sciré.