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Propriedade intelectual e desigualdades globais na pandemia de Covid-19

Alan Rossi Silva, Clara Alves Silva, Felipe de Carvalho Borges da Fonseca, Pedro Villardi e Susana Rodrigues Cavalcanti van der Ploeg

A luta pelo direito à saúde em tempos emergenciais

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RESUMO

A pandemia de Covid-19 potencializa desigualdades de direitos no mundo. O sistema de propriedade intelectual intensifica essa assimetria ao limitar o acesso a vacinas e outras tecnologias de saúde a poucos produtores. Este artigo aborda os impactos desse sistema, apresenta e analisa alternativas para ampliar a oferta desses bens de saúde − como a licença compulsória − e argumenta a favor da importância de se defender o mecanismo TRIPS Waiver no combate ao coronavírus.

Palavras-Chave

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1. Introdução

A pandemia de Covid-19 tem imposto ao mundo impactos sem precedentes, instaurando um cenário de crise com implicações de dimensões políticas, econômicas e sociais.11. “Everyone Included: social impact of COVID-19”, Nações Unidas, 2021, acesso em 15 de julho de 2021, https://www.un.org/development/desa/dspd/everyone-included-covid-19.html. Entretanto, embora global, a presente emergência sanitária impacta diferentemente cada região e cada população do planeta, pois potencializa as suas desigualdades pré-existentes. Assim sendo, para aqueles que já enfrentavam contradições sociais substanciais, a pandemia representou uma ameaça intensificada aos direitos humanos básicos, como o direito à vida, suprimindo cerca de 4 milhões de vidas ceifadas pelo coronavírus.

Somada à crise sanitária e social, a resposta à pandemia tem enfrentado obstáculos que colaboram e acentuam essa assimetria. Como era possível antecipar, o sistema de propriedade intelectual representa uma barreira primordial para o controle da Covid-19, visto que confere monopólios a transnacionais farmacêuticas e impede a distribuição de produtos genéricos acessíveis. Uma vez mais, essas regras comerciais são responsáveis por condenar milhões de pessoas à morte.22. “Dossiê ABIA – HIV/AIDS e COVID-19 no Brasil”, Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 2020, acesso em 15 de julho de 2021, https://abiaids.org.br/dossie-abia-hiv-aids-e-covid-19-no-brasil/34379. Embora os efeitos deletérios da propriedade intelectual possam ser sentidos em todos os países, sua expressão mais perversa tem sido vivenciada nos países do Sul Global, refletindo sua situação de vulnerabilidade.

Os direitos à vida, à saúde e ao acesso às ferramentas necessárias para responder à crise sanitária estão sob contínua violação. Para muitos países, especialmente no continente africano, o acesso às tecnologias de saúde utilizadas no combate ao coronavírus é ainda mais difícil e a expectativa de imunizar toda a população não passa de um sonho distante com previsão mínima para 2024.33. Katherine Aguirre et al. “Three Years Is Too Long to Wait for a Global Vaccine Rollout”. Foreign Policy, 21 de junho de 2021, acesso em 15 de julho de 2021, https://foreignpolicy.com/2021/06/21/global-vaccination-covax-gavi-covid-19-pandemic-impact-hubs-public-private-funding-united-nations/.

Com o intuito de reverter esse cenário, inúmeras iniciativas têm surgido no mundo. Internacionalmente, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), ganhou espaço uma mobilização pela suspensão temporária de determinados direitos de propriedade intelectual relacionados ao enfrentamento da Covid-19 − conhecida, em inglês, como TRIPS Waiver.44. Jamil Chade, “Em carta, mil especialistas criticam Brasil por postura sobre patentes”. UOL, 14 de outubro de 2020, acesso em 15 de julho de 2021, https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/10/14/em-carta-mil-especialistas-criticam-brasil-por-postura-sobre-patentes.htm. Neste artigo, apresentam-se os impactos do sistema de propriedade intelectual em países mais empobrecidos gerados pela disparidade de acesso mundial à imunização e a outras tecnologias de saúde utilizadas no enfrentamento da Covid-19, e a importância da defesa de iniciativas como o TRIPS Waiver para a garantia dos direitos humanos na pandemia.55. Ibid.

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2. O sistema de propriedade intelectual e a desigualdade no acesso a tecnologias de saúde contra a Covid-1

As regras relacionadas aos direitos de propriedade intelectual foram globalmente padronizadas pelo acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, sigla em inglês) da OMC, em 1994. Desde então, todos os países membros da OMC se comprometeram a adotar os mesmos parâmetros mínimos sobre direitos de propriedade intelectual. Entre as novas determinações, ficou estabelecido, por exemplo, o reconhecimento de patentes para todos os campos tecnológicos, inclusive para bens essenciais que podem salvar vidas.

Na área da saúde, sob o pretexto de garantir o retorno econômico do seu investimento, a indústria farmacêutica tem um histórico de prática de preços exorbitantes, que são possíveis mediante o monopólio proporcionado pela propriedade intelectual. No contexto da atual pandemia de Covid-19, quando a demanda por tecnologias de saúde é sem precedentes, os direitos de exclusividade limitam a maximização da oferta, gerando desigualdade de acesso a esses bens em todo o mundo.66. Felipe Carvalho, Yuanqiong Hu e Leena Menghaney, “Will history repeat itself? Rebutting pharma’s rejection of a global COVID-19 IP waiver”. MSF Access Campaign, 18 de janeiro de 2021, acesso em 09 de julho de 2021, https://msf-access.medium.com/will-history-repeat-itself-87b62251aa91. Ou seja, o monopólio estabelecido pela propriedade intelectual inviabiliza metas de tratamento ou imunização em massa, pois gera uma escassez de vacinas e medicamentos, bem como uma barreira de preço, fazendo com que se tornem um luxo apenas para os países mais ricos.

Não bastasse a incoerência política entre os objetivos de propriedade intelectual e os objetivos de saúde pública, o sistema de propriedade intelectual paira como uma ameaça geral aos direitos humanos. Dados disponibilizados pelo projeto Our World in Data,77. Edouard Mathieu et al., “A global database of COVID-19 vaccinations“, Nature Human Behaviour 5, no. 7 (17 jun. 2021): 956-959, acesso em 19 de agosto de 2021, https://www.nature.com/articles/s41562-021-01122-8. da Universidade de Oxford, indicam que 31,4% da população mundial recebeu ao menos uma dose de vacina e 23,6% está completamente vacinada. Contudo, quando se trata de países pobres, apenas 1,3% da população recebeu ao menos uma dose da vacina. Tal discrepância favorece o surgimento de novas variantes e impossibilita uma recuperação mais rápida e justa em relação aos impactos socioeconômicos da pandemia.

O projeto de pesquisa Launch and Scale Speedometer, do Centro de Inovação em Saúde Global da Universidade de Duke, monitora todas as semanas, desde novembro de 2020, a distribuição de vacinas em todo o mundo. Os dados sistematizados apontam que os países de alta renda, como os Estados Unidos e o Reino Unido, realizaram as primeiras compras em maio de 2020, antes mesmo do desenvolvimento das vacinas e em número muito superior ao de suas populações.88. “Tracking COVID-19 vaccine purchases across the globe”, Launch & Scale Speedometer, 2021, acesso em 15 de agosto de 2021, https://launchandscalefaster.org/covid-19/vaccinepurchases.

As primeiras compras de países de baixa renda ocorreram em janeiro de 2021, por meio de uma abordagem conjunta da União Africana. Contudo, países da América Latina, África e Ásia ainda não conseguiram comprar vacinas suficientes para cobrir suas populações. Embora a demanda esteja muito superior à oferta de vacinas contra a Covid-19, há, atualmente, 17,6 bilhões de doses reservadas para países do Norte Global.99. Ibid. Para atender a demanda global, a produção de vacinas precisa aumentar em uma escala nunca antes vista. A exclusividade conferida a alguns laboratórios, entretanto, apresenta-se como uma forte barreira para a produção e distribuição desses produtos.

No regramento da propriedade intelectual, a definição de prioridades está sujeita à lógica de mercado e da privatização do conhecimento, que sistematicamente exclui milhões de pessoas do acesso a bens essenciais de saúde. A crise sanitária da Covid-19 se soma a diversas evidências passadas que constatam que o próprio funcionamento regular do sistema de propriedade intelectual contradiz os interesses globais de saúde pública, por dificultar o acesso universal à imunização e ao tratamento, bem como por prolongar a duração da emergência e dos riscos inerentes a ela.

Diante dessa realidade, é imperativo desenvolver alternativas aos obstáculos estabelecidos pelos direitos de propriedade intelectual, garantindo o direito à saúde das populações de todos os países. Com esse intuito, grupos da sociedade civil, populações afetadas por diversas doenças e ativistas de saúde e de direitos humanos atuam em rede pela emissão de licenças compulsórias. Desde o início da pandemia, essa mobilização, fruto de uma longa trajetória de luta política e que se convencionou chamar de “movimento global pelo acesso a medicamentos”, tem ido além e defendido a adoção do TRIPS Waiver como alternativa para reverter esse cenário.

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3. Salvaguardas de saúde pública: a licença compulsória, seus limites e potenciai

O licenciamento compulsório (LC) de patentes, previsto legalmente, refere-se ao uso do objeto da patente pelo governo ou por terceiros autorizados pelo governo sem a autorização do seu titular. Na prática, significa que o governo pode comprar versões genéricas ou biossimilares de tecnologias de saúde para as quais a única opção era a compra de versões de marca. A medida visa diminuir o impacto negativo das regras de propriedade intelectual, especialmente no âmbito sanitário, em razão dos altos preços desses bens.1010. “O peso das patentes no preço dos medicamentos”, Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2017, acesso em 14 de julho de 2021, https://www.inesc.org.br/o-peso-das-patentes-no-preco-dos-medicamentos/. O monopólio conferido ao titular da patente não deve se sobrepor ao direito à saúde e à vida das pessoas, assim o licenciamento compulsório viabilizaria a sustentabilidade de importantes políticas públicas.

O acordo TRIPS, em seu artigo 31, estabelece condições procedimentais para o uso da licença compulsória, dispondo que o seu uso deve ser analisado com base no mérito individual e autorizado predominantemente para atender ao mercado interno do governo que o concedeu. O acordo também prevê a temporariedade deste mecanismo, indicando que o licenciamento será interrompido quando as circunstâncias que o fundamentaram deixarem de existir. Destaca-se que o licenciamento exige a remuneração do titular e possibilita que qualquer decisão sobre a remuneração seja revista. Neste mesmo sentido, o próprio acordo TRIPS determina que a validade legal do licenciamento também está sujeita a recurso judicial ou no âmbito da OMC.1111. “Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”, WTO – World Trade Organization, 1994, acesso em 15 de julho de 2021, http://www.inpi.gov.br/legislacao-1/27-trips-portugues1.pdf.

Embora o licenciamento compulsório de patentes seja uma importante salvaguarda da saúde pública e um elemento fundamental para o acesso a tecnologias de saúde em todo o mundo, sua utilização é, ainda, muito limitada.1212. Matthieu Dhenne, “Compulsory licensing: you said ‘taboo’?”. Kluwer Patent Blog, 2020, acesso em 20 de julho de 2021, http://patentblog.kluweriplaw.com/2020/11/25/compulsory-licensing-you-said-taboo/. A baixa utilização da licença compulsória se relaciona, em especial, com as pressões contrárias da indústria farmacêutica, uma prática totalmente repreensível, uma vez que o mecanismo é absolutamente legítimo e regulamentado.

Além disso, durante a pandemia de Covid-19, ficaram evidentes as limitações deste mecanismo para lidar com as necessidades que se apresentam em tempos emergenciais. Afinal, quando se está enfrentando uma grande crise sanitária, o que menos se precisa são obstáculos que dificultam ainda mais o acesso a tecnologias capazes de atenuá-la ou, até mesmo, superá-la definitivamente.

O caso emblemático envolvendo o governo da Bolívia, a Biolyse, pequena empresa farmacêutica do Canadá, e a transnacional Johnson & Johnson (J&J), que produz sua própria vacina contra a Covid-19, demonstra os entraves que a licença compulsória pode enfrentar em um contexto de crise sanitária. Diante da escassez de vacinas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) solicitou aos laboratórios que fechassem acordos com empresas dispostas a usar suas instalações para produzir vacinas, para aumentar a capacidade fabril e acabar com o hiato de imunização entre os países ricos e pobres.1313. “Director-General’s opening remarks at the media briefing on COVID-19”, WHO, 17 de maio de 2021, acesso em 15 de agosto de 2021, https://www.who.int/director-general/speeches/detail/director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19-17-may-2021.

A Biolyse, que fabrica drogas injetáveis estéreis, buscou contato com diversos produtores de vacina, entre eles a J&J, para oferecer sua colaboração em face da demanda global, sob o argumento de que desejava ser parte da solução para o problema da falta de vacina nos países pobres. A transnacional, porém, respondeu negativamente, informando que a produção envolve processos de fabricação complexos demais e que, de toda forma, trabalha para ampliar a sua produção.1414. Icíar Gutiérrez, “La batalla de Bolivia y una farmacéutica canadiense para fabricar e importar vacunas de Janssen”. El Diario, 21 maio 2021, acesso em 16 de julho de 2021, https://www.eldiario.es/internacional/batalla-bolivia-farmaceutica-canadiense-fabricar-e-importar-vacunas-janssen_1_7955909.html.

Em razão do esgotamento da tentativa de negociação, a Biolyse solicitou ao governo do Canadá o licenciamento compulsório para exportação de uma versão genérica da vacina da J&J. Também, a farmacêutica canadense assinou um acordo com o governo boliviano, com a opção de compra de até 15 milhões de doses da vacina genérica, a serem produzidas futuramente, caso o governo canadense venha a conceder as licenças compulsórias pleiteadas.1515. Ibid.

O licenciamento compulsório, contudo, envolve um procedimento lento e burocrático. E, ademais, ele está restrito às patentes e não envolve a transferência de toda a tecnologia necessária para produzir a vacina. Assim, ainda que licenciada, a Biolyse teria dificuldades para iniciar a produção, que seria mais célere se houvesse a colaboração da J&J.

Este caso ilustra como o monopólio das vacinas, conferido pelos direitos de propriedade intelectual, constitui uma barreira para o acesso a tecnologias relacionadas ao combate à Covid-19, bem como os limites do licenciamento compulsório para garantir o aumento da produção e distribuição das vacinas.

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4. A defesa do TRIPS Waiver como alternativa para desigualdade de acesso a tecnologias de saúd

No contexto internacional, emergiram diversas proposições para lidar com a crise sanitária mundial. Entre essas, destaca-se o TRIPS Waiver, que foi inicialmente proposto pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020. Trata-se de uma ferramenta que busca sanar os limites do licenciamento compulsório e reconhece, de forma mais ampla, o direito de propriedade intelectual como uma barreira ao direito à vida e à saúde de bilhões de pessoas.1616. “Waiver from certain provisions of the TRIPS agreement for the prevention, containment and treatment of COVID-19: communication from India and South Africa”, IP/C/W/669, WTO, outubro de 2020, acesso em 14 de julho de 2021, https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W669.pdf&Open=True.

A proposta do TRIPS Waiver oferece aos países membros da OMC a opção de, temporariamente, escolher não aplicar, implementar ou fazer cumprir a proteção conferida às patentes, aos segredos industriais, aos desenhos industriais, aos direitos autorais e aos demais direitos de propriedade intelectual relacionados a medicamentos, vacinas, diagnósticos e demais tecnologias de saúde utilizadas no combate à Covid-19.1717. Ibid.

Os países que adotassem o TRIPS Waiver estariam isentos de serem processados ou de receberem sanções pela não aplicação integral do acordo TRIPS em tempos pandêmicos. A medida possibilitaria que a propriedade intelectual deixasse de ser uma barreira para que os países pudessem exportar, importar ou produzir determinadas tecnologias, sem ter que passar pelos procedimentos limitantes e demorados relacionados ao licenciamento compulsório,1818. “Compulsory licenses, the TRIPS waiver and access to COVID-19 medical technologies”, Médecins Sans Frontières, 2021, acesso em 12 de julho de 2021, https://msfaccess.org/compulsory-licenses-trips-waiver-and-access-covid-19-medical-technologies. como negociações prévias com o detentor do monopólio, restrições à transferência do uso das tecnologias de saúde, restrições inadequadas à comercialização transnacional e obrigações de remunerar o titular do direito de propriedade intelectual suspenso.

Com efeito, o TRIPS Waiver é uma medida adicional para suspender a aplicação de determinados direitos de propriedade intelectual durante a pandemia de Covid-19, o que possibilitaria a produção ininterrupta e o fornecimento de produtos essenciais até que a imunidade global fosse alcançada. Se adotado da forma que está, o TRIPS Waiver poderia permitir a fabricação e distribuição desimpedida de vacinas, kits diagnósticos e tecnologias terapêuticas sem os embaraços fatais causados pelos direitos de propriedade intelectual.1919. Ibid.

O primeiro comunicado da Índia e da África do Sul ao Conselho TRIPS, encaminhado em outubro de 2020, requereu aos membros da OMC que trabalhassem juntos para garantir que os direitos de propriedade intelectual não criem barreiras que dificultem o acesso à saúde e a medidas essenciais para o combate à Covid-19.2020. “Waiver from certain provisions….”, IP/C/W/669.

O documento salientou que o impacto entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento é desproporcional, apontando que uma resposta eficaz à pandemia requer uma medida global e multilateral, para possibilitar o acesso rápido a produtos médicos acessíveis; e solidária, para viabilizar o compartilhamento desimpedido de tecnologias, bem como a disponibilização de vacinas em quantidade suficiente e a um preço acessível para atender a demanda global.2121. Ibid.

Além disso, o documento chamou a atenção para o fato de que a escassez dos produtos e a distribuição desigual levaram a mortes evitáveis e ameaçam prolongar indefinidamente a pandemia. Aliás, no que se refere especialmente ao aspecto econômico, também ressaltou que quanto mais longa a crise sanitária global, maior será a repercussão socioeconômica.2222. Ibid.

Em maio de 2021, o texto foi revisado e foi novamente encaminhado ao Conselho TRIPS. Na ocasião, somavam-se, à Índia e à África do Sul, outros 60 países membros da OMC situados no Sul Global, como Quênia, Moçambique, Paquistão, Bolívia, Venezuela, Zimbábue, Egito, Maldivas, Fiji e Namíbia. O novo texto salientou a urgente necessidade de acesso global, bem como de diversificação da produção e fornecimento de vacinas em razão das mutações contínuas e das novas variantes de SARS-CoV-2.2323. “Waiver from certain provisions of the TRIPS agreement for the prevention, containment and treatment of COVID-19: revised decision text communication from the African Group, the Plurinational State of Bolivia, Egypt, Eswatini, Fiji, India, Indonesia, Kenya, the LDC Group, Maldives, Mozambique, Mongolia, Namibia, Pakistan, South Africa, Vanuatu, the Bolivarian Republic of Venezuela and Zimbabwe”, WTO, 2021, acesso em 12 de julho de 2021, https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W669R1.pdf&Open=True.

A proposta atual possui uma abrangência sem precedentes, bem como contribui para o reforço do reconhecimento de que a propriedade intelectual impede o acesso a bens de saúde e de que soluções baseadas em ações voluntárias de empresas não são suficientes. Até o ano passado, o reconhecimento de que a propriedade intelectual era parte do problema só estava presente no discurso de países em desenvolvimento, tanto que os países desenvolvidos fizeram forte oposição à proposta, com respaldo de alguns poucos países em desenvolvimento, tais como Brasil, Colômbia, Chile e Equador.

No entanto, a partir de abril de 2020, o governo dos EUA começou a sinalizar uma mudança de posição que culminou em um anúncio do presidente Joe Biden, em 5 de maio de 2021, de que o país apoiaria as negociações do TRIPS Waiver, entendendo que “circunstâncias excepcionais exigem medidas excepcionais”.2424. “Statement from Ambassador Katherine Tai on the Covid-19 Trips Waiver”, Office of the United States Trade Representative, 2021, acesso em 19 de julho de 2021, https://ustr.gov/about-us/policy-offices/press-office/press-releases/2021/may/statement-ambassador-katherine-tai-covid-19-trips-waiver.

Na sequência deste anúncio, outros países também anunciaram apoio às negociações, inclusive o Brasil, que já estava sob pressão da sociedade civil nacional, que exigia a mudança de posição do Itamaraty.2525. Chade, “Em carta, mil especialistas criticam Brasil...”. A proposta conta atualmente com aval de mais de 100 países e está em processo de negociação de texto, tendo o bloco europeu como principal opositor. O fato de que este debate esteja instalado na OMC, com amplo apoio e com avanço da fase de debate para a fase de negociação, representa, em si, um episódio histórico na agenda dos movimentos sociais que, há décadas, mobilizam-se para que os interesses da saúde pública estejam acima dos interesses comerciais.

Embora ainda existam riscos reais da negociação naufragar, ter um resultado aquém do esperado ou mesmo ser concluída com demasiada demora, é preciso notar que a relevância política dada ao TRIPS Waiver se origina em um processo de pressão popular em nível global que inclui não apenas movimentos sociais de saúde, mas de diversas outras áreas; especialistas em propriedade intelectual; ex-chefes de Estado; personalidades; autoridades religiosas; autoridades científicas; profissionais de saúde; e da população em geral, que tem se manifestado por meio de petições, cartas e protestos.2626. “U.S. Senators and Representatives Join Civil Society Leaders Delivering Two Million Petitions to Urge Biden: Support COVID-19 WTO Waiver”, Public Citizen, 2021, acesso em 27 de agosto de 2021, https://www.citizen.org/news/u-s-senators-and-representatives-join-civil-society-leaders-delivering-two-million-petitions-to-urge-biden-support-covid-19-wto-waiver-to-hasten-the-pandemics-end-secure-administration/.

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5. Conclusão

Ao longo da história, no âmbito das relações geopolíticas, os países mais ricos têm imposto suas vontades em matérias comerciais e negligenciado a concretização global dos direitos humanos, vulnerabilizando populações inteiras, especialmente no Sul Global. Neste contexto, a luta por acesso a tecnologias de saúde tem ocupado um lugar central nas tensões entre países do Sul e do Norte Global.

Está cada vez mais claro que a intensificação das contradições sociais evidenciadas pela crise sanitária tem origem no atual modelo de acumulação capitalista, que concentra renda, poder e tecnologias nas mãos de poucos, explorando corpos e trabalhos periféricos. O próprio sistema de propriedade intelectual tem parte nessa dinâmica ao permitir que, por meio de monopólios, grandes corporações farmacêuticas lucrem à custa de vidas. Não à toa, testemunhamos os novos nove bilionários das vacinas.2727. “Vacinas contra a Covid-19 criaram 9 novos bilionários”, Oxfam Brasil, 2021, acesso em 21 de julho de 2021, https://www.oxfam.org.br/noticias/vacinas-contra-a-covid-19-criaram-9-novos-bilionarios/.

A pandemia de Covid-19 evidencia que o atual sistema coloca o lucro acima das vidas e que as saídas adotadas pelos países do Norte Global, de concentrar as vacinas em seus territórios e defender a propriedade intelectual das transnacionais farmacêuticas, ampliam as desigualdades e impedem o fim de um vírus que não respeita fronteiras.

O TRIPS Waiver e a busca por licenças compulsórias podem corrigir distorções e promover direitos no curto prazo. Esses dois processos devem fazer parte da agenda política de todos os movimentos sociais comprometidos com a justiça social e com um enfrentamento à pandemia baseado nos direitos humanos. Esse nível de conscientização tem muito a contribuir para que mudanças sistêmicas mais profundas sejam levadas adiante, independentemente da aprovação desta proposta na OMC.

Talvez possamos afirmar que o processo político deflagrado pela proposta do TRIPS Waiver seja a maior contestação ao atual regime de propriedade intelectual desde sua fundação na década de 1990. No entanto, para vislumbrar caminhos promissores, que venham a desafiar decisivamente o atual modelo econômico e seus mais perversos resultados, teremos de ser mais audazes e capazes de imaginar um mundo sem monopólios farmacêuticos.

Alan Rossi Silva

Alan Rossi Silva é doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Recebido em Agosto de 2021.

Original em português.

Clara Alves Silva

Clara Alves Silva é internacionalista e mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e assistente de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Recebido em Agosto de 2021.

Original em português.

Felipe de Carvalho Borges da Fonseca

Felipe de Carvalho é jornalista e mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua na Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) como coordenador do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual. É especialista em temas como acesso a medicamentos, diagnósticos e vacinas, propriedade intelectual, pesquisa e desenvolvimento, saúde global e cooperação multilateral.

Recebido em Agosto de 2021.

Original em português.

Pedro Villardi

Pedro Villardi é coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip) e de projeto da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA). Graduado em Relações Internacionais pela PUC-Rio, mestre em Bioética e Ética Aplicada pelo PPGBIOS e doutor em Ciências Humanas e Saúde pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (IMS/UERJ).

Recebido em Agosto de 2021.

Original em português.

Susana Rodrigues Cavalcanti van der Ploeg - Brasil

Susana Rodrigues Cavalcanti van der Ploeg é mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e advogada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), com atuação no Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

Recebido em Agosto de 2021.

Original em português.