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Impacto da COVID-19 para os povos indígenas da aldeia Boca da Mata – Roraima11. O artigo faz parte da minha pesquisa de mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Roraima a ser defendida em 2022.

Yara Pinho de Lima

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RESUMO

O presente artigo tem como objetivo explorar de que forma a pandemia de Covid-19 afetou, e ainda afeta, a organização social da aldeia Boca da Mata, em Roraima, tendo em vista que todas as práticas indígenas dependem de ações coletivas − desde o convívio cotidiano, compartilhando quintais, como também nas trocas de alimentos, reuniões e compartilhamento de informações, realizados de forma oral e presencial − que caracterizam a estrutura social e cultural dos povos indígenas. Através do diálogo com duas profissionais de saúde que trabalham com povos indígenas, foi possível perceber os desafios que a pandemia trouxe para esses povos em questões práticas que incluem desde o acesso às vacinas até as estratégias que tiveram que ser criadas para o seu enfrentamento.

Palavras-Chave

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1. Introdução

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 22 de janeiro de 2020, estabeleceu a primeira reunião do seu comitê de emergências para tratar do surto de um novo vírus, detectado pela primeira vez em Wuhan, na China, causador de uma síndrome respiratória aguda grave. A reunião tinha como objetivo analisar se esse surto implicaria ou não uma emergência de saúde pública de importância internacional.

No dia 28 de janeiro, o Ministério da Saúde brasileiro considerou o coronavírus como um perigo iminente para a população. No mesmo ano, a partir da deflagração da pandemia em todo o mundo e da consequente chegada da Covid-19 aos territórios indígenas, ficaram ainda mais evidentes os desafios que os povos originários já enfrentavam em relação ao acesso à saúde de qualidade.

Em 23 de março, foi publicado no Jornal de Roraima22. "Governo de Roraima decreta estado de calamidade pública devido ao coronavírus", G1 RR, 23 de março de 2020, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/03/23/governo-de-roraima-decreta-estado-de-calamidade-publica-devido-ao-coronavirus.ghtml. que o governo estava decretando estado de calamidade pública devido à Covid-19. A prefeitura de Boa Vista também restringiu o funcionamento do comércio e declarou situação de emergência na saúde pública da capital. Nesse momento, já havia dois casos confirmados de Covid-19 no Estado. O decreto municipal no 28.635/2020 proibiu o funcionamento de cinemas, teatros, shoppings, bares e academias, e somente serviços e setores essenciais, como hospitais, mercados e segurança pública, poderiam funcionar. Em razão da pandemia, as fronteiras do Brasil com a Venezuela e a Guiana foram parcialmente fechadas.

Diante desse cenário, o objetivo desta pesquisa e deste texto é explorar de que forma a pandemia de Covid-19 influenciou o modo de vida indígena na comunidade Boca da Mata, em Roraima, formada por três povos, Macuxi, Wapichana e Taurepang. Essa comunidade é basicamente movida pela filosofia do trabalho coletivo, como o ajuri.33. É uma mobilização comunitária para um trabalho em conjunto, incluindo mulheres, homens e adolescentes. O ajuri acontece quando é feito um mutirão para limpeza da comunidade, ou quando vão “abrir” uma roça, ou seja, realizar uma atividade envolvendo toda a comunidade. As reuniões, assembleias e eventos são todos realizados em conjunto. Por isso, assim que a Covid-19 chegou até a comunidade, essas relações tiveram de ser suspensas, modificando, assim, as relações sociais por um período indeterminado.

Como insumos metodológicos, utilizei entrevistas feitas na aldeia indígena Boca da Mata e na aldeia Sorocaima II, ambas situadas na Terra Indígena São Marcos, região de Alto São Marcos, município de Pacaraima, no Estado de Roraima. Trata-se de entrevistas realizadas com duas profissionais de saúde, uma Agente Indígena de Saúde (AIS) e uma Técnica de Enfermagem (vacinadora) da Secretaria da Saúde Indígena (SESAI) em julho de 2021, momento em que a Covid-19 tinha feito 419.967 vítimas fatais em todo o Brasil.44. Até novembro de 2021 somavam-se 615.179 mortes resultantes da pandemia no Brasil.

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2. O Estado brasileiro e seu descaso com os povos indígenas em contexto de pandemia

Desde o início da pandemia de Covid-19 não houve ação do governo federal para proteger os povos indígenas do Brasil, e nem a sociedade brasileira de modo geral. O atual presidente tratou a pandemia como uma “gripezinha”, não respeitando o isolamento social, declarou que o Brasil não podia parar e incentivou a aglomeração e a não utilização de máscaras de proteção.

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia55. "Relatório Final", Senado Federal, Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, outubro de 2021, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://static.poder360.com.br/2021/10/relatorio-final-renan-calheiros-cpi.pdf. demonstrou a existência de um projeto político antivacina sustentado pelo uso de fake news. A disseminação de notícias falsas em relação à pandemia, ao tratamento precoce e à vacina contra Covid-19 influenciou a tomada de decisões da população quanto às medidas corretas de proteção contra a doença, trazendo consequências negativas diretas, como o aumento do número de pessoas contaminadas e o índice de leitos ocupados, o que resultou em um grande número de mortes no país. A investigação da CPI reuniu dados que mostram a omissão do governo federal brasileiro na conscientização da população acerca da pandemia.

De acordo com o Instituto Socioambiental ISA,66. Davi Kopenawa Yanomami, "COVID-19 e os Povos Indígenas". Covid-19 e os Povos Indígenas, 2021, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://covid19.socioambiental.org/?gclid=CjwKCAiAtdGNBhAmEiwAWxGcUlvehmMutBgSHSozt1H5cT9LB5SECbl. sobre a situação indígena na pandemia da Covid-19 no Brasil, o Estado brasileiro não foi somente omisso como também ajudou o vírus a se espalhar. O estudo dá ênfase aos três casos mais comuns de contaminação: via profissionais de saúde que levaram o vírus para as aldeias; garimpeiros e grileiros, pois com a pandemia existiu o aumento de invasões nos territórios indígenas, inclusive incentivado pelo governo federal; e também casos de indígenas que se contaminaram ao buscar o auxílio emergencial nos centros urbanos.

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3. Cotidiano indígena e suas mudanças durante a pandemia da Covid-19

Neste primeiro momento, trago a experiência de uma Agente Indígena de Saúde (AIS) que mora e atua profissionalmente na aldeia indígena Boca da Mata. Da etnia Taurepang, dona Marina trabalha há mais de quinze anos no campo da saúde indígena.

Questionada se a Covid-19 teve impacto na comunidade, ela respondeu afirmativamente. Com a entrada do coronavírus, foi observada uma mudança no cotidiano social; o que era feito presencialmente foi suspenso, desde a educação das crianças dentro das escolas, até mesmo a atuação de profissionais no posto de saúde da Boca da Mata. Os moradores da aldeia fizeram uma barreira de proteção na entrada da comunidade para conter a circulação de pessoas e uma maior penetração do vírus. Sobre a barreira, nem todos os moradores da comunidade apoiaram a ideia, pois havia uma desconfiança de que o vírus não pudesse de fato chegar até a casa deles.

Nesse contexto, a Covid-19 trouxe desafios para os povos indígenas, principalmente relacionados à forma de viver em coletividade. Assembleias e festivais que eram parte da organização social das comunidades precisaram ser interrompidos devido ao isolamento social. A comunidade teve que se adaptar, mesmo que fosse por um curto período de tempo, com o uso de máscaras e álcool nas mãos, práticas que não eram comuns até então.

Na Boca da Mata existe uma vivência familiar coletiva baseada na troca de farinha de mandioca, frutas, legumes, carne de caça, peixes, entre outros insumos. De uma hora para outra se tornou um grande risco fazer troca de alimentos porque poderiam estar contaminados pela Covid-19.

Assim, a partir do início da pandemia deu-se uma suspensão dessas relações. Foi inserido um novo modelo social, no qual é necessário ficar em casa, resultando em mudanças no convívio. Importante lembrar que na aldeia Boca da Mata não existe o conceito de quintal, de propriedades delimitadas por cercas. Todos os ambientes da aldeia são comuns aos comunitários, existem núcleos familiares que se resumem a moradias próximas, porém o contato coletivo é muito enraizado. Enfrentar um isolamento devido à pandemia foi um desafio intenso para uma sociedade que tem como base o compartilhamento coletivo na sua estrutura social.

Outro ponto determinante diz respeito ao próprio processo de circulação de informações pertinentes ao cotidiano, que consiste na propagação “boca a boca”. As recomendações de isolamento social tornavam essa prática, tão necessária na forma de vida indígena, inviável devido ao grande risco de contágio.

Segundo o relato de dona Marina, muitas pessoas precisavam sair da comunidade para receberem seus benefícios financeiros,77. Benefícios como os salários de profissionais indígenas concursados ou professores da educação escolar indígena. e logo depois foi liberado o auxílio emergencial.88. O auxílio emergencial é um programa do governo federal brasileiro que provê renda aos mais vulneráveis economicamente durante a pandemia de Covid-19. Dessa maneira, as pessoas precisavam se deslocar até a sede do município de Pacaraima ou à capital Boa Vista, o que dificultou a manutenção do isolamento social. Essa foi uma das formas pelas quais muitas pessoas da comunidade foram infectadas pelo vírus.

Dona Marina contraiu Covid-19 e ficou isolada durante 20 dias. O tratamento utilizado por ela e pela família quando estava doente era chá de limão com alho. Quando questionada se os remédios caseiros podem ser considerados eficazes, ela respondeu que sim. Segundo ela, o ano de 2021 foi assustador e pior do que 2020, porque ela achava que passaria a onda da pandemia, mas todo dia via na televisão o número alto de pessoas mortas e de contaminadas, além de ficar sabendo de conhecidos que vieram a falecer.

Quando dona Marina começou a falar sobre a pandemia na sua comunidade, a sensação que ela deixou transparecer foi a de se sentir presa. Sobre as mudanças na sua vida devido ao contágio pela Covid-19, ela comentou que nunca imaginou um dia ser afetada, nem como a doença modificaria alguma coisa na sua vida, na sua casa, família, ou em relação aos seus filhos. Relatou que achou sufocante esse novo modo de viver. Porém, ela tem consciência de que tais medidas são importantes para proteção, não somente dela e da sua família, mas de toda a aldeia. Como profissional de saúde, ela reconhece o isolamento social como necessário para o cuidado de si e dos próximos.

A Covid-19 também afetou a fonte de renda de sua família. Em sua casa moram ela, seu esposo, seu filho mais novo, sua filha, quatro netas e seu genro. Ela possui seu emprego como AIS pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI); seu esposo é agricultor, trabalha na roça ajudando na manutenção da família, faz farinha de mandioca, planta banana e macaxeira. Mas ela comenta que seu salário não é suficiente para comprarem farinha, que é a base alimentar dos indígenas Macuxi, Taurepang e Wapichana, então eles mesmos produzem para conseguirem se manter. Sua filha, que é professora, ficou desempregada, e era seu genro quem ajudava por meio de trabalhos esporádicos. Ele era motorista de transporte escolar, mas, como as aulas foram suspensas, não havia mais alunos para transportar e acabou ficando sem emprego.

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4. Os desafios da vacinação contra Covid-19 em comunidades indígenas

No dia 19 de janeiro de 2021, no portal de notícias G1 de Roraima, foi publicada a seguinte matéria: “Indígena Macuxi é a primeira vacinada contra Covid-19 em Roraima: ‘Quero ser exemplo’”. 99.  Iolanda Pereira da Silva, de 45 anos, moradora do município de Uiramutã, é pajé e parteira na sua comunidade. Iolanda, primeira indígena a ser vacinada, produz remédios da medicina tradicional indígena e relatou que queria ser um exemplo para os outros parentes1010. Termo comumente utilizado entre os indígenas de etnias brasileiras. para que não resistissem à vacinação. Vale ressaltar que os povos indígenas fazem parte dos grupos prioritários para a vacinação contra a Covid-19 no Brasil.1111. "Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19", Ministério da Saúde, 28 de abril de 2021, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://static.poder360.com.br/2021/05/Plano-Nacional-de-Operacionalizacao-da-Vacinacao-contra-a-covid-atualizado-28abr2021.pdf.

A SESAI tem vacinado as pessoas indígenas aldeadas, e faz essa ação através dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Aproximadamente 305.672 indígenas no Brasil receberam a primeira dose da vacina1212. "Vacina parente", Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB, 2021, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://emergenciaindigena.apiboficial.org/vacinaparente/. e 231.609 receberam a segunda dose, sendo que, estima-se, existem cerca de 1.300.000 indígenas atualmente no Brasil. Em Roraima, aproximadamente 32.748 indígenas tomaram a primeira dose da vacina1313. "Imunização Indígena - COVID-19", Ministério da Saúde, 2021, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://infoms.saude.gov.br/extensions/imunizacao_indigena/imunizacao_indigena.html. e 27.804 tomaram a segunda dose, e estima-se que existam cerca de 56.000 indígenas no Estado.

Sobre a imunização, dona Marina comentou:

[…] eu penso que com a vacina eu poderia me proteger e proteger meu povo, que tá em casa, meus filhos, família, netos, né. Como eles não podem tomar, eu sendo protegida já não posso contaminar eles com as formas mais graves, né, porque antes da vacina a enfermeira fez uma palestra lá no posto, ela explicou o porquê da vacina, aí ela fez a palestra, ela explicou que a vacina ali era para te imunizar, isso não significa que você não ia pegar, vai pegar sim a doença, mas de forma leve, não vai precisar parar no hospital, não vai precisar de um respirador para respirar quando tiver falta de ar, então tudo isso foi explicado, então eu fui consciente que eu ia tomar, ela explicou que podia dar mal-estar, podia ter febre, isso era a reação da vacina, né. E aí quem tivesse com esses sintomas que não tomasse, ela aconselhou as pessoas, quem tiver assintomático, assim por falta de ar, muito gripado, eu não aconselho tomar, isso foi uma palestra de conscientização mesmo que ela fez.

A vacina é vista por ela como garantia de liberdade. Quando perguntei o que ela pensava em relação àquele momento de pandemia, respondeu que orava para que todas as pessoas fossem vacinadas, pois com a vacina há resultados. Ao mesmo tempo, se mostra ciente de que a pandemia não vai acabar, mas talvez ser amenizada, sendo a liberdade pós-pandêmica um cenário diferente do que tínhamos antes.

O que ela manifesta em relação ao futuro é o seu desejo de que todas as pessoas possam ser vacinadas e que voltem à vida normal. Perguntei se tinha mais alguma preocupação com a Covid-19 que ela gostaria de compartilhar, e ela ressaltou:

Minha preocupação é só com aquelas pessoas que ainda não tomaram, ainda não estão imunes ao vírus, porque a gente ouve todo tempo que tem uma tal de variante, que ela é pior do que esse vírus da Covid, então eu penso assim que as pessoas têm que ter consciência e se imunizar para que não ocorram casos graves, que leve mais pessoas que a gente conhece, porque quem sofre é a comunidade toda.

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4.1 Profissionais da saúde e a resistência à vacina no contexto indígena

Minha segunda interlocutora se chama Helena, Técnica de Enfermagem (vacinadora) indígena da etnia Pankará, de Pernambuco, Estado do Nordeste brasileiro. Mora em Roraima e atua com saúde indígena há mais de 12 anos. O contato com Helena aconteceu a partir do momento em que fui me vacinar no Polo Base da equipe de saúde na comunidade Sorocaima II, que atende todas as comunidades indígenas da região do Alto São Marcos. O que chamou minha atenção foi ela me informar que não poderia me vacinar, porque teria que seguir o protocolo de Brasília,1414. "Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19", 28 de abril de 2021. que consistia em só vacinar indígenas vivendo em território indígena. Como estou temporariamente fora da minha aldeia por cursar mestrado na capital Boa Vista, não me enquadrava nas regras do protocolo. Ela comentou que, se dependesse dela, vacinaria todos nós, indígenas, independentemente de estarmos ou não morando na aldeia.

Essa questão de nós, indígenas, não sermos grupo prioritário para vacina por estarmos vivendo em contexto urbano é uma reivindicação que fazemos ao Estado para que respeite a nossa identidade e de fato garanta nossos direitos, pois ao nos deslocar da aldeia para os centros urbanos não deixamos de ser indígenas.

Sobre a sua experiência em relação à vacina contra a Covid-19, Helena comenta que esta é diferente de outras vacinas, o que a torna um desafio para a compreensão coletiva por estarem lidando com uma pandemia. Segundo ela, trata-se de uma novidade para todo mundo: “Bem mais difícil de se entender… Porque é uma pandemia, é uma doença muito nova e que traz muito medo para as pessoas, né? E desde o ano passado que todos esperam uma vacina, ou uma solução para essa doença”.

Em algumas comunidades existe essa resistência das pessoas indígenas em relação às vacinas. Como profissional da saúde, é evidente a sua preocupação em relação a isso. Para ela, o interessante é que, embora muitas pessoas queiram logo uma solução para o novo vírus, quando a vacina é finalmente desenvolvida, elas se surpreendem com a rapidez com que foi feita e desconfiam da sua eficácia. Como profissional, ela entende e reconhece o esforço de pesquisadores e pesquisadoras preocupados com a possibilidade de erradicar o mais rápido possível a doença através da criação das vacinas.

Um ponto importante para ser analisado é que essa resistência indígena não foi somente em relação à vacina contra Covid-19, mas também em relação a outras vacinas antes ofertadas, como a vacina contra influenza.

Assim, há muito tempo né, sempre quando eu vinha vacinar aqui, eles aceitam algumas vacinas e outras não, tipo influenza, a maioria deles nunca quis por conta logo do começo do histórico da Influenza, que era para matar, isso e aquilo, mas agora algumas famílias elas querem a vacina e outros atendimentos.

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4.2 Elementos que contribuíram para o medo em relação à vacina

Por ter experiências de vacinação em outras comunidades, Helena ressaltou dois elementos que, segundo ela, influenciam na recepção às vacinas: a questão religiosa e a questão cultural. Alguns indígenas relatam ter medo de quaisquer vacinas, não só a vacina para a Covid-19, pois dizem que essas servem para “matar os indígenas”.

Helena reforça que mesmo presenciando suas palestras informativas sobre a vacina, alguns indígenas manifestavam receios. Algumas pessoas estavam morrendo com uma gripe muito forte e em muitos casos isso foi associado à vacina. Helena tentava explicar que a imunidade de cada pessoa influencia na eficácia de todas as vacinas, e que também sempre era possível a existência de efeitos adversos, mas não a morte. A causa da mortalidade não necessariamente se deve à Covid-19. É possível que uma pessoa seja vacinada com as duas doses, possua outras doenças e venha a falecer.

Outro ponto que cabe mencionar é o medo de adoecer e ter que ir ao hospital nos centros urbanos. Para alguns indígenas, esse deslocamento era o mesmo que “ir para a morte”, uma vez que esses locais estavam superlotados, com várias pessoas falecendo nos corredores. Isso faz com que as pessoas indígenas prefiram ficar doentes dentro da própria aldeia, realizando tratamento com medicina tradicional indígena e muitas vezes não tomando a vacina.

Em vários momentos da entrevista, foi perceptível a sua preocupação com a compreensão dos indígenas em relação à imunização. Ela tem consciência da necessidade de utilizar uma linguagem acessível para facilitar essa compreensão. Sobre a importância dos indígenas tomarem a segunda dose da vacina, Helena comentou:

Sempre quando eu venho e falo para eles, oh, cê tem que fazer segunda dose, porque é um esquema vacinal, se você toma a primeira e não toma a segunda, não vai adiantar nada né, o seu sistema imunológico ele tá, vamos dizer, para eles entender mais rápido, vai tá protegido só a metade, metade da doencinha que não vai proteger, para eles poder entender né, porque para explicar imunização é muito difícil, então a gente tem que utilizar uma linguagem bem mais fácil.

Outro fator importante que afetou o processo de vacinação, além do medo, foi a disseminação de fake news. As fake news sobre a vacina obstaculizaram a imunização da sociedade de modo geral. No dia 19 de julho de 2021 foi publicado no site do Ministério da Saúde uma nota com o título “Cuidado com as ‘fake news’ sobre as vacinas contra Covid-19”.1515. "Cuidado com as ‘fake news’ sobre vacinas contra Covid-19", Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa, 17 de julho de 2021, acesso em 21 de dezembro de 2021, https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/cuidado-com-as-2018fake-news2019-sobre-vacinas-contra-covid-19. Era um alerta para que a população não arriscasse a própria vida por notícias falsas, e fazendo um chamado para colocar a saúde em primeiro lugar.

O objetivo das fake news é justamente fomentar o medo em relação às vacinas, através de manipulação da informação e do uso de dados distorcidos, conduzir as pessoas à desinformação em massa. No site do Ministério da Saúde afirmava-se que as informações sobre mortes após o uso das vacinas contra Covid-19 eram falsas e não possuíam cunho científico, ressaltando que a vacina continua sendo um meio de controle da pandemia, e o grande número de pessoas imunizadas está relacionado à sua eficácia no combate à pandemia.

Para Helena, os meios de comunicação contribuem para que as pessoas tenham acesso a informações reais e falsas, o que as confunde, fazendo com que não saibam no que acreditar. Além da “questão religiosa”,1616. A esse respeito, ela se refere a muitas expressões religiosas, principalmente dentro do cristianismo, que existem em algumas comunidades indígenas. E isso está relacionado a disputas políticas em torno de vários aspectos comunitários. No cenário atual, envolve a adesão ou não à vacina contra a Covid-19. algo mencionado pela minha interlocutora como algo muito forte, ela explica a influência do que chama de “questão cultural”.1717. A questão cultural colocada neste artigo tem relação com o uso de remédios considerados tradicionais, não só para a Covid-19, mas também para outras doenças. Esses remédios são feitos de produtos naturais vindos da própria natureza, como xaropes, garrafadas, banhos e pomadas. Por exemplo, algumas pessoas indígenas não quererem tomar vacina porque sabem fazer remédios caseiros e acreditam que assim ficarão bem, ao descobrirem, por exemplo, uma planta que ameniza os sintomas da Covid-19. Ela cita o relato de um indígena: “Ah, eu não vou tomar vacina porque eu tô tomando medicação, porque estou tomando remédio caseiro e estou bem. Passei a minha vida inteira tomando remédio caseiro e nunca fiquei doente, nunca morri”.

Ao lidar com esse tipo de situação, profissionais de saúde tentam explicar a eficácia da vacina, bem como o cuidado com a família e o coletivo implicado nisso, pois com a ação de se vacinar também estarão cuidando da comunidade. Essas informações começam a despertar interesse, depois de observar que, de fato, as pessoas não estão morrendo ao tomarem a vacina.

Para Helena é evidente que combater o negacionismo é um desafio. Ela tem consciência e afirma que o vírus não acabará, e que as pessoas vão ter que lidar com o surgimento de outras cepas, prevendo que a vacina contra a Covid-19 fará parte do calendário vacinal.

Sobre a questão religiosa e a vacina, chamo atenção para um caso peculiar comentado por Helena, o da comunidade indígena Sorocaima I,1818. Cito a comunidade Sorocaima I por ela ser vizinha da minha comunidade, Boca da Mata. Além da minha interlocutora também mencioná-la, conheço alguns moradores de lá. Porém, essa comunidade não é meu foco de pesquisa. vizinha da aldeia Sorocaima II, localizada na região do Alto São Marcos. A grande maioria dos moradores é cristã, membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia. A comunidade é habitada apenas por indígenas da etnia do povo Taurepang. Em assembleia, toda a comunidade decidiu que ninguém tomaria a vacina contra a Covid-19, e as pessoas elaboram um documento. Os motivos para tal recusa não foram totalmente explicados. No entanto, segundo Helena, o documento existe,1919. Até o momento de finalização deste texto não tive acesso a esse documento. e nele se atesta que ninguém da comunidade iria tomar a vacina. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI-Leste) realizou palestras de conscientização na comunidade, porém eles continuaram firmes em não aceitar a vacina contra a Covid-19. Somente uma profissional indígena de saúde da comunidade tomou a vacina. A ligação entre a religião e a não adesão à vacina foi apontada por minha interlocutora.

A presença forte da religião no cotidiano da capital Boa Vista, em Roraima, além de estar no contexto urbano, se faz presente nas comunidades indígenas, resultando no que Ciello denomina “pentecostalização” das práticas tradicionais:

[…] como é registrado na vida cotidiana em Boa Vista, há uma presença marcante de religiões pentecostais e evangélicas de diferentes denominações, que cada vez mais tem se tornado parte da paisagem urbana e também de comunidades indígenas da região; fato que tem sido registrado como majoritário na região Amazônica como um processo de “pentecostalização” das “práticas tradicionais”, aliada à intensa migração.2020. Fernando J. Ciello, "Artes de cura e o problema do caleidoscópio: Pistas para uma antropologia da Saúde a partir do extremo-norte", in Processos identitários diferenciados: etnografias contemporâneas a partir do extremo norte brasileiro, orgs. Carlos Alberto M. Cirino e Lilian Leite Chaves (Boa Vista: Editora da UFRR, 2020): 292-293.

Nesse contexto, a pentecostalização das práticas tradicionais está relacionada às formas de cura tradicionais que já não estariam mais sendo “fabricadas” por certas comunidades, o que envolve desinteresse das novas gerações pelo que é considerado tradicional. Existindo poucas pessoas falantes das línguas indígenas, os curadores já não são mais como os de antigamente, resultando em uma diminuição da arte da cura até o seu possível desaparecimento. A sociedade busca por alívio e tratamento de certas doenças, o que envolve conhecimentos tradicionais, biomédicos e religiosos.

Como a comunidade Sorocaima I é vizinha da minha comunidade, sei que o viés religioso é de fato muito forte. Eles mantêm vivos os costumes de comer damurida,2121. Comida tradicional indígena de Roraima. É um caldo apimentado, composto de carne de caça ou peixe, podendo ser combinado com folhas de mandioca. plantar roça, fazer farinha, beiju, artesanatos, mas também desenvolvem os dogmas da religião. Dogmas como não comer certos tipos de peixes e também guardar o sábado.

Mesmo que existam indígenas que ainda não se vacinaram, algumas comunidades que estão tendo maior aceitação da vacina, de acordo com Helena, são Santa Rosa, Boca da Mata, Aleluia, Novo Destino, Cachoeirinha e Sorocaima II, todas da região do Alto São Marcos.

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Considerações finais e desafios que permanecem

Não é de hoje que a população indígena enfrenta desafios quanto ao acesso a direitos básicos que envolvem saúde, educação e direito à terra, entre outros. A chegada da pandemia só deixou mais evidente os planos do governo em relação aos povos indígenas. Se o Estado brasileiro não cria estratégias de medidas protetivas contra a Covid-19, os próprios indígenas as criam. Com a pandemia, comunidades indígenas em Roraima passaram a criar estratégias de prevenção, como barreiras de controle sanitário para monitoramento e fiscalização da entrada e saída de membros das comunidades.

As barreiras de fiscalização dos territórios serviram tanto para amenizar a disseminação do vírus dentro das comunidades, como para conter invasão de garimpeiros que aproveitam da situação pandêmica para exploração da terra, como na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, na região das Serras, onde os invasores são retirados por agentes do Grupos de Proteção e Vigilância dos Territórios Indígenas (GPVITI) e lideranças indígenas. Segundo Aleixo et al.,2222. Eriki Aleixo, Ariene dos Santos Lima e Ivo Cípio Aureliano, "Mortes, Invasões e Garimpo em Terras Indígenas no Estados de Roraima: Entre Mobilizações Étnicas e Conflitos Sociais. Pandemia da Covid-19 na vida dos Povos Indígenas", Vukápanavo: Revista Terena no. 3 (out./nov. 2020): 1-400. em Roraima, durante o período da pandemia, houve um aumento de invasões em terras indígenas, elevando os conflitos sociais, bem como as mobilizações dos povos indígenas e, consequentemente, o fortalecimento das organizações políticas na defesa de seu território e seus direitos. Para restringir o aumento dessas invasões em Roraima, algumas comunidades mobilizam os GPVITI, criados e compostos pelos próprios indígenas para a fiscalização e proteção dos seus territórios, garantindo, assim, sua autonomia. Estes grupos são constituídos por homens e mulheres que recebem treinamento sobre direitos indígenas, ambientais e fiscalização territorial para atuarem nas aldeias.

Por fim, a pandemia de Covid-19 entre as populações indígenas significou impactos na organização social, nos serviços de saúde, na educação, na saúde mental e física das pessoas, na renda familiar, nos modos de produção e consumo e nas relações de convívio familiar. Influenciou o modo de viver da comunidade Boca da Mata, em especial, também nos aspectos cultural e religioso, trazendo grandes desafios para os indígenas com a suspensão dos trabalhos coletivos e a realização de assembleias. Conforme dito no início, a coletividade é um aspecto muito relevante para a vida indígena, e a concepção de saúde também é coletiva. Portanto, em casos excepcionais, como a pandemia da Covid-19, foi preciso abdicar momentaneamente da coletividade para pensar na própria coletividade. Finalmente, não podemos deixar de ressaltar a importância do movimento indígena no Brasil na luta por seus direitos, incluindo seu direito à saúde.2323. Desde 2010, por meio de várias reivindicações, foi criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) vinculada ao Ministério da Saúde.

Yara Pinho de Lima - Brasil

Yara Pinho de Lima é indígena do povo Macuxi, graduada em Antropologia pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGANTS) da UFRR e integrante da Articulação Brasileira de Indígenas Antropólogos (ABIA).

Recebido em Novembro de 2021

Original em português.