Experiências

Uma maré de esperança

A Redes da Maré e sua resposta à pandemia no Rio de Janeiro

Aaron "tango" Tang

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Por Sara Batista

Em anos como 2020 e 2021, quando as dificuldades decorrentes da pandemia de Covid-19 se impuseram de forma ainda mais dura no Brasil, a Redes da Maré conseguiu minimizar os impactos no conjunto de 16 favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Com a campanha “Maré diz NÃO ao Coronavírus”, a instituição garantiu condições mínimas de sobrevivência para 69.542 pessoas.

A perda de mais de 600 mil vidas no Brasil é a faceta mais trágica da combinação entre uma doença praticamente desconhecida e uma gestão governamental ineficaz e omissa. No entanto, para além do luto pelas mortes, especialistas acreditam que os efeitos econômicos e sociais dessa crise serão sentidos por muitos anos. E o principal motivo para isso é a profunda desigualdade que assola o país.

No Brasil, questões econômicas, de gênero, raça e território impactaram a sociedade de modo crucial. Nesse cenário, se fez imperativo acionar as redes necessárias para efetivar os direitos dos moradores da Maré. Confrontadas com a inércia do Estado, a sociedade civil e algumas empresas tomaram a frente na tentativa de ajudar os grupos mais vulneráveis.

Já em março de 2020, a Redes da Maré começou a buscar inspiração no que estava sendo feito no Brasil e, principalmente, em outros países para ajudar aquelas pessoas que não poderiam trabalhar para se sustentar durante o período de isolamento social. Com as referências e o apoio necessário, a organização criou a campanha com seis frentes de atuação.

Todo o trabalho feito na região foi posteriormente reconhecido com os prêmios Empreendedor Social, da Folha de S.Paulo, e Carolina Maria de Jesus de Direitos Humanos, da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré, atribui o sucesso da campanha ao fato de já existir um processo de organização pré-existente: “Eu entendo que o êxito das diferentes frentes da campanha tem muito a ver com o modo como a gente já trabalha ou já atua na Redes da Maré. Somos uma organização que tem uma perspectiva de pensar, de fato, estratégias que levem a respostas estruturantes para a realidade que a gente tem”.

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Um conjunto de favelas maior do que 96% dos municípios brasileiros

Organizar uma campanha social nas 16 favelas da Maré não é uma tarefa fácil, uma vez que mais de 140 mil pessoas vivem na região. Se fosse uma cidade, a Maré seria maior do que 96,4% dos 5.570 municípios brasileiros.

Para dar conta de atender os moradores de forma adequada, a Redes da Maré se baseou no Censo da Maré,11. "Censo Populacional da Maré", Redes da Maré, 2019, acesso em 14 de dezembro de 2021, https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/CensoMare_WEB_04MAI.pdf. que vem sendo realizado pela própria entidade desde 2010 a fim de produzir conhecimento sobre como vive a população.

A partir desses dados, foram identificados inicialmente seis mil domicílios em situação mais vulnerável e que, portanto, teriam prioridade no atendimento da campanha. Porém, já no primeiro mês, em abril de 2020, a demanda ultrapassou esse número. Ao longo de toda a campanha, foram atendidas 18 mil famílias.

A experiência de atuação em um lugar com dimensões únicas foi explicada pela própria Redes da Maré em um relatório sobre a campanha publicado em 202022. "Campanha Maré Diz NÃO ao Coronavírus: Relatório de Atividades da Campanha 2020", Redes da Maré, 2020, acesso em 14 de dezembro de 2021, https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/RdM_Relatorio_campanha.pdf, p. 6.: “Conseguir mobilizar um conjunto de possibilidades e parcerias, num momento tão difícil, nos causa um misto de sentimentos. Por um lado, reconhecemos a importância de atender as necessidades emergenciais de muitas famílias, mas, por outro, constatamos algo triste: o abandono quase completo e a falta de políticas de proteção social para uma parte significativa da população brasileira”.

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Seis frentes contra o vírus

Logo na primeira semana após ser decretada a pandemia, em março de 2020, a Redes da Maré se reuniu com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para entender o cenário em curso. “Isso foi muito determinante para as respostas que nós tivemos. A gente queria dar uma resposta que tivesse coerência com toda a nossa trajetória e com tudo o que construímos até aqui”, explica Eliana Sousa Silva sobre a parceria com a entidade que se estendeu para ações práticas como testagem e vacinação em massa33. Vacina Maré, Homepage, 2021, acesso em 14 de dezembro de 2021, https://www.vacinamare.org.br. até a realização de pesquisas no campo da saúde e efeitos da vacina produzida pela Fundação. Foram imunizadas 37 mil pessoas com mais de 18 anos ao longo de seis dias com a primeira dose e cerca de 20 mil vacinas na rodada da segunda dose da vacinação.

Sobre isso, a diretora da organização resume: “A resposta do Estado [para a pandemia na Maré] foi através da Fiocruz. Eles passaram a dar e criar protocolos pra gente poder estar na rua como agentes de saúde”.

No entanto, ao preparar a campanha, a entidade identificou que os problemas que afetavam as famílias da Maré iam muito além da questão sanitária. Por isso, foram definidos seis eixos de atuação: Segurança alimentar e nutricional; Atendimento às populações em situação de rua; Geração de trabalho e renda; Acesso a direitos, cuidados e prevenção em saúde; Produção e difusão de informações e conteúdos seguros; Apoio a artistas, produtores e grupos culturais locais.

A primeira frente, de segurança alimentar e nutricional, consistiu na entrega de cestas básicas com alimentos e itens de higiene pessoal e limpeza. Posteriormente, foi criada uma nova modalidade em que o valor das cestas era entregue em cartões com crédito para garantir maior autonomia às famílias, bem como fortalecer o comércio local. Entre 2020 e 2021, foram 22.433 famílias atendidas com as cestas.

Já para a população em situação de rua foram distribuídas refeições prontas. Foram mais de 75 mil refeições entregues ao longo de todo o tempo de atuação da campanha. A distribuição foi realizada por uma equipe especializada em redução de danos, que acompanha pessoas em dependência química e faz encaminhamentos e articulações com outras organizações e instituições públicas.44. Redes da Maré, Maré diz não ao coronavírus : a jornada da Redes da Maré por saúde e direitos em meio à pandemia, coords. Eliana Sousa Silva e Luna Arouca. 1a. ed. (Rio de Janeiro: Mórula, 2021), acesso em 14 de dezembro de 2021, https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/MareCoronavirus_livro-min.pdf. É importante destacar que por estarem em situações ainda mais vulneráveis, essas pessoas eram testadas semanalmente. Nenhuma delas morreu.

Além de receber as refeições, a população em situação de rua também se engajou na campanha trabalhando nas outras frentes. Para algumas dessas pessoas, isso representou um ponto de virada, porque muito mais do que apenas sobreviver, o envolvimento na campanha possibilitou que elas se organizassem financeiramente para sair das ruas.

Na frente de geração de trabalho e renda, a Redes da Maré envolveu 20 mulheres ligadas à Casa das Mulheres da Maré, outro projeto da organização, que preparavam as refeições diárias entregues à população de rua; 53 costureiras que confeccionaram em torno de 300 mil máscaras que foram entregues nos domicílios; e 20 motoristas que atuavam nas entregas de cestas de alimentos e kits de higiene às famílias que se encontravam em situação de insegurança alimentar.

Na ausência do Estado, a entidade garantiu que os moradores tivessem atendimento on-line todos os dias para o acolhimento de questões relacionadas à saúde, violações e dúvidas sobre como acessar direitos.

Foram arrecadados Equipamentos de Proteção Individual (EPI), como máscaras e luvas, para as unidades de saúde da região − “A Maré tem sete clínicas da família e elas estavam completamente sem EPI”, conta Eliana − e foram distribuídas máscaras e álcool em gel para a população. A organização também fez a desinfecção das quase 900 mil ruas, vielas e becos das 16 favelas da Maré com aplicação de produtos específicos que dificultam a aderência do coronavírus.

Ainda neste quarto eixo de atuação, foram implementados projetos de testagem, de atendimento médico on-line e de isolamento domiciliar seguro. Quando alguém testava positivo para o vírus, a Redes da Maré levava um oxímetro para que a pessoa pudesse acompanhar sua saturação sanguínea e entregava duas refeições por dia, para que ela se mantivesse isolada, através do projeto chamado “Isolamento Seguro”.55. "Guia do Isolamento Domiciliar para Pessoas com Covid-19", Conexão Saúde, 2020, acesso em 14 de dezembro de 2021, https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/RdM_guia-isolamento-domiciliar.pdf.

Em tempos de fake news e o que ficou conhecido como “infodemia” (a pandemia da desinformação), também foi preciso trabalhar na produção e difusão de informações e conteúdos seguros. Assim, foram divulgados conteúdos que instruíam os moradores sobre a situação da pandemia nas favelas e periferias e mostravam como se proteger. Destacam-se o “Guia de Isolamento Domiciliar” e os boletins “De Olho no Corona!”.

Por fim, a Redes da Maré atuou apoiando a produção de conteúdo jornalístico sobre a pandemia, bem como desenvolvendo projetos que visavam reconhecer e fortalecer artistas locais, fortemente afetados pela impossibilidade de realizar suas atividades artísticas.66. "Chamada pública: Novas formas de fazer arte, cultura e comunicação nas favelas", Redes da Maré, 2020, acesso em 14 de dezembro de 2021, https://www.redesdamare.org.br/br/info/56/novas-formas-de-fazer-arte-cultura-e-comunicacao-nas-favelas.

De imediato, foi possível perceber uma aceitação muito grande da campanha, com uma grande participação de moradores. “Muitas pessoas da Maré se envolveram na campanha. Pessoas que nunca se envolveram com nenhuma atividade coletiva e comunitária começaram a ir todos os dias para estar junto com a gente”, relatou Eliana.

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Para além da campanha

Como as dificuldades decorrentes da pandemia de Covid-19 permaneceram, a campanha foi estendida para 2021. Além disso, ela se desdobrou, dando origem a outros dois projetos, o “Impacto de Vida” e o “Conexão Saúde”.77. "Guia do Isolamento Domiciliar para Pessoas com Covid-19", 2020.

O “Impacto de Vida” atende hoje 300 famílias. A intenção é agir de forma regular, contribuindo de formas variadas para que as famílias consigam ter acesso a seus direitos. São feitas as entregas de cestas básicas, tablets e pacotes de dados para jovens em idade escolar, além de apoio psicossocial.

O projeto também fornece um apoio ao isolamento domiciliar para aqueles que testarem positivo para Covid-19, além de contar com atendimento jurídico e psicossocial. O objetivo é levar o Impacto de Vida para duas mil famílias em 2022.

Outro desdobramento da “Maré diz NÃO ao Coronavírus” é a campanha “Conexão Saúde”. Esta é uma parceria com seis organizações, entre elas a Fiocruz, com o objetivo de oferecer apoio por meio de testagem em massa, telessaúde, auxílio no isolamento domiciliar e ações de comunicação.

Além desses projetos, a Redes da Maré usou o conhecimento acumulado sobre as comunidades para atuar intensamente auxiliando a vacinação em massa que aconteceu em julho no conjunto de favelas. A ação foi uma parceria da Secretaria Municipal de Saúde com a Fiocruz e a Redes da Maré.

É evidente que em um contexto de calamidade pública, não foi possível apenas com a força das instituições da sociedade civil e suas parcerias blindar completamente a Maré dos horrores da pandemia. Em homenagem às vidas perdidas, a Redes da Maré inaugurou um memorial. “Isso é um trabalho feito com as famílias para ressignificar essa dor, esse sofrimento”, explica Eliana.

O painel, de cerca de 20 m² feito de azulejos, traz os nomes de 72 vítimas e está localizado na Rua Bittencourt Sampaio, na favela Nova Holanda. Até o momento de escrita deste texto morreram 388 moradores nas favelas da Maré em decorrência da Covid-19 e todos serão homenageados em um painel maior que será instalado na Fiocruz.

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Uma nova Redes da Maré

Do lado da Redes da Maré, destaca-se o fato de que a entidade expandiu suas escutas e, consequentemente, sua atuação. Até então, o trabalho da ONG era muito focado nas violações mais óbvias no contexto da favela, aquelas decorrentes de operações policiais. Ao longo desta experiência, a Redes da Maré abriu canais para receber denúncias, relatos e dúvidas sobre outros problemas vivenciados pela população da região, inclusive por meio do aplicativo WhatsApp.

Eliana Sousa Silva. Créditos: Douglas Lopes

No entanto, os impactos da campanha vão além e, como define a própria Eliana Sousa, as mudanças mais profundas talvez ainda nem sejam perceptíveis. Fato é que os moradores não foram os únicos impactados. A organização como um todo, assim como seus membros individualmente, saem dessa experiência transformados.“Tem esse impacto imediato que a gente de fato conseguiu fazer diferença, mas eu acho que, do ponto de vista institucional, ainda estamos tentando perceber o quanto essa pandemia nos mudou, o quanto ela nos deslocou daquele lugar, que às vezes é até confortável, que tínhamos institucionalmente. A gente não é mais a mesma depois dessa experiência”, explica a diretora da Redes da Maré.

Na soma final, entende-se que todo o trabalho realizado ao longo da campanha “Maré diz NÃO ao Coronavírus” foi resultado direto de um conhecimento e uma trajetória de longa data, e que produziu efeitos ainda maiores do que os esperados.

Quando perguntada sobre o impacto pessoal desse trabalho, Eliana Sousa Silva resume: “Eu sei que a gente realizou muita coisa, mas essas coisas só foram possíveis por causa dessa sensibilidade, desse cuidado. É como se eu tivesse me preparado a vida inteira para viver aquilo”.

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Este texto foi elaborado a partir de entrevista concedida por Eliana Sousa Silva (Diretora da Redes da Maré) à equipe de Revista Sur em novembro de 2021; do relatório da campanha “Maré diz NÃO ao Coronavírus”; e de outros materiais produzidos pela Redes da Maré sobre a sua atuação antes e durante a pandemia e que estão disponíveis no site da organização.88. Redes da Maré, Homepage, 2021, acesso em 14 de dezembro de 2021, https://www.redesdamare.org.br.

Original em português.