Ensaios

A Arte da Proteção

Oren Yakobovich

Velha Sabedoria, Novas Estratégias

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RESUMO

A proteção e a resiliência de defensoras e defensores dos direitos humanos são essenciais para a preservação e o avanço da justiça social. Ao nos depararmos com adversários com recursos significativamente superiores, o segredo para o sucesso reside em nossas estratégias. A realidade pós-Covid-19 é uma oportunidade para que reavaliemos nossa abordagem, usufruindo do conhecimento ancestral para percorrermos novos terrenos em segurança.

Palavras-Chave

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1.Introdução

Em tempos de Covid-19, iniciar uma história com um voo soa nostálgico. Semelhantemente, por se tratar de uma história sobre a proteção de defensoras e defensores dos direitos humanos, parece ser importante começar a partir do reconhecimento da pandemia e dos impactos significativos que ela tem tido — e continuará tendo — sobre os direitos humanos, sobre as liberdades civis e sobre a nossa capacidade de nos unir. Ainda mais oportuno é que analisemos como a sociedade civil manterá a sua resiliência e segurança e evoluirá neste novo mundo.

Então… Em uma manhã de fevereiro de 2020, meu voo estava pronto para pousar no Aeroporto Internacional Phnom Penh [Camboja]. Era o início de uma longa jornada que minha equipe e eu estávamos prestes a iniciar: trabalharíamos nos próximos 18 meses com organizações pelos direitos dos trabalhadores do setor têxtil, com o propósito de ajudá-las a ter mais segurança e resiliência no trabalho incrível que fazem.

Assim que o avião tocou o chão, me vi contemplando os relatos que esses ativistas nos deram durante as nossas chamadas e entrevistas preparativas. Havia inúmeras histórias de que eles eram alvo das autoridades, incluindo detenções por falsas acusações, ataques por capangas contratados por donos de fábricas contrários aos sindicatos, intimidação por meio de ameaças e perseguições a eles e às suas famílias, incluindo ameaças de morte. Algumas dessas frases que realmente mexeram comigo falavam sobre a necessidade de melhorar a segurança e sobre a falta de um roteiro e recursos para atingir esse fim:

Todos nós estamos preocupados com a nossa segurança e como nós devemos manejá-la, especialmente depois do que passamos. A parte difícil é saber como se encarregar dela corretamente, além de ter tempo, recursos e capacidade de melhorá-la.11. Funcionário da organização durante uma entrevista.

Nós deveríamos ter feito esse processo de segurança 10 anos atrás.22. Funcionário da organização durante uma entrevista.

Eu me lembro de pensar: “Eu sei como eles estão se sentindo”. Eu já estive nessa situação antes. Quando eu cofundei a Videre Est Credere33. Videre Est Credere, Homepage, 2020, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.videreonline.org. em 2008 (uma ONG que denuncia casos de violência em massa e outras violações graves dos direitos humanos, equipando comunidades perseguidas e marginalizadas com ferramentas, treinamento e tecnologia para documentar abusos, exigir responsabilização e assegurar a justiça), eficiência na segurança era claramente uma necessidade. Dado o risco inerente à exposição dos atos ilícitos de gente poderosa, a segurança e a proteção dos envolvidos no trabalho era primordial.

Eu sabia que nós precisávamos construir uma operação em que pudéssemos dar suporte aos ativistas no terreno e gerar impacto sem comprometer a sua segurança. Visando ao sucesso e à sustentabilidade do trabalho, precisávamos de estratégias de segurança práticas, pragmáticas e altamente eficientes. Caso não fôssemos capazes de analisar extensivamente e mitigar nossos riscos, não seria plausível cumprir a nossa missão.

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Consideramos prudente trazer um especialista em segurança para trabalhar conosco. Não se tratava de apenas algumas horas de capacitação. Precisávamos construir um método sistêmico com uma visão de longo prazo. Entretanto, era quase impossível encontrar o encaixe perfeito. Havia diversos prestadores de serviços por aí. Entretanto, era como se a maioria oferecesse apenas um treinamento pontual ou o HEAT (curso que visa capacitar profissionais sujeitos a situações críticas e de emergência em ambientes hostis) direcionado a trabalhadores humanitários ou estrangeiros, sendo geralmente conduzido por ex-militares do sexo masculino. Por eu mesmo ser um ex-militar, não pretendo homogeneizar um grupo tão diverso, mas creio ser justo afirmar que algumas abordagens são incompatíveis com as prioridades operacionais da sociedade civil ou com seus recursos restritos.

Ao menos daquela vez, de acordo com a minha experiência, foi difícil encontrar integrantes da sociedade civil com a experiência em segurança necessária. Em linhas gerais, a sociedade civil carece do entendimento sobre a psicologia, a metodologia e as capacidades operacionais dos oponentes, como as forças de segurança. Para algumas pessoas, os protocolos pareciam mais embasados em paranoia ou possível trauma oriundo de experiências pessoais, o que obscurece a capacidade de priorizar e distinguir claramente risco e suposições, fator com o potencial de comprometer as operações.

Para deixar claro, havia e ainda há ótimas pessoas fazendo um trabalho excelente na área de segurança para defensoras e defensores dos direitos humanos. Vêm à minha mente organizações como Frontline Defenders,44. Front Line Defenders, Homepage, 2020, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.frontlinedefenders.org. Protection International55. Protection International, Homepage, 2020, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.protectioninternational.org. e Access Now,66. Access Now, Homepage, 2020, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.accessnow.org. assim como inúmeros agentes locais. No entanto, a especialidade desses agentes e instituições é o principal motivo de estarem sob grande demanda, além do fato de a procura estar cada vez maior. O trabalho para fornecer soluções e respostas de emergência a ativistas em perigo é de imenso valor. Todavia, naquele momento, queríamos focar uma prevenção estruturada de longo prazo em nosso gerenciamento de riscos, com a consciência de que isso ajudaria a reduzir a chance de cenários que desencadeiam o surgimento de respostas emergenciais.

Por fim, a Videre desenvolveu internamente protocolos de gerenciamento de segurança próprios e uma abordagem extremamente operacional com base na pluralidade de experiências de sua equipe, contando com a consultoria técnica ocasional de especialistas externos que poderiam nos manter atualizados sobre as táticas de nossos adversários. Tenho bastante orgulho de como nossa equipe conseguiu manter as pessoas em segurança ao longo dos anos enquanto realizavam trabalhos impressionantes, tais como a documentação de corrupção e violência sistemáticas; a exposição de grupos extremistas da extrema direita e de seus laços com agentes do governo; o fornecimento de provas à ONU que demonstraram o conluio entre tropas do governo e grupos rebeldes armados, incluindo a comprovação do uso de crianças-soldado; a obtenção de provas de atrocidades em massa e o compartilhamento com mecanismos legais e de imputabilidade, a fim de responsabilizar os autores, revelando fluxos de dinheiro que alimentavam propagandas racistas e antidemocráticas.

Na realidade, sem um gerenciamento de segurança robusto, nada disso seria possível. Foi a partir do reconhecimento da importância do gerenciamento de risco para um impacto mais amplo e para a resiliência de organizações de direitos humanos eficientes que nasceu a ideia da minha atual empresa social, a Kamara. Ao fornecer soluções de gerenciamento de risco, investigação e ações estratégicas para apoiar as pessoas na linha de frente dos trabalhos em direitos humanos e mudança social, acreditamos que podemos ajudar a contribuir para um ecossistema da sociedade civil mais forte.

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De volta ao Camboja. Enquanto eu me acercava da “linha de frente” da imigração no aeroporto de Phnom Penh, refletia sobre a natureza dessas linhas de frente e como elas mudaram durante meus 20 anos de atuação em direitos humanos. A linha de frente do balcão de imigração é literalmente uma fila de profissionais com uniformes ao estilo militar, todos cumprindo uma parte diferente do processo: uma pessoa apanha o passaporte, outra coleta o dinheiro, uma imprime o visto, outra carimba e algumas parecem apenas assistir. É como um sistema analógico em um mundo que migrou quase em sua totalidade para o digital. Não posso deixar de fazer a comparação de que, às vezes, nós, agentes da sociedade civil, representamos o analógico em contraste com o digital dos nossos adversários. Além disso, ao passo que estar guarnecido de recursos seja inegavelmente um problema em nossas batalhas de Davi e Golias, seria imprudente não questionarmos se realmente nos adaptamos de forma adequada e estratégica às mudanças no cenário de ameaças em que operamos.

Um dos meus primeiros projetos em 2005 foi o “Shooting Back”, desenvolvido no B’Tselem,77. B’Tselem, Homepage, 2020, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.btselem.org. centro israelense de direitos humanos na Cisjordânia. Provi os palestinos que residem nos lugares mais arriscados dos Territórios Ocupados com câmeras e treinamento sobre como documentar a própria realidade e os abusos sofridos nas mãos de soldados e colonos.88. “Shooting Back: The Israeli Human Rights Group B’Tselem Gives Palestinians Video Cameras to Document Life Under Occupation,” Democracy Now!, 26 de dezembro de 2007, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.democracynow.org/2007/12/26/shooting_back_the_israeli_human_rights. Naquela época, imagens evidentes das violações poderiam ser usadas ​​para alterar a realidade. A câmera era um instrumento de proteção (e, em alguma medida, ainda o é atualmente). Ela provou, nesse contexto, ser uma ferramenta extraordinária para transferir o equilíbrio do poder das mãos do soldado que carregava a arma para as mãos do cidadão que portava a câmera. Foi nesse momento que aprendi sobre a limitação do poder e como, com estratégias inteligentes, você pode ganhar a opinião pública, mudar o paradigma de vítima para defensor e fazer a transição de um papel passivo-reativo para um engajamento proativo como meio de proteção e progresso.

Por meio desse projeto, fui testemunha de como as comunidades de South Hebron Hill [ao sul de Hebron] — espalhadas por quilômetros de morros, habitando cavernas e providas de parcos recursos — conseguiam trabalhar juntas para se protegerem dos agressores, que eram integrantes ou apoiados por um dos exércitos mais poderosos do mundo.99. “Southern Hebron Hills: Settler Violence and Army Harassment, 2005,” B’Tselem, agosto de 2005, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.btselem.org/video/2005/08/southern-hebron-hills-settler-violence-and-army-harassment. Foi a primeira vez que implementei, à época sem saber, o que hoje chamamos de medidas de proteção coletiva, por meio das quais comunidades, indivíduos e organizações dispersados em um território extenso operam coletivamente, desempenhando diferentes papéis para a proteção geral. Independentemente de eles atuarem como observadores que, com o uso de suas câmeras, notificam os outros sobre os movimentos de colonos violentos; como acompanhantes de agricultores nos campos, resguardando-os como testemunhas; na coleta de provas para ações judiciais; ou no clamor às autoridades e à mídia por conscientização, todos desempenharam um papel relevante. E não foi fácil. Foi uma luta incessante, porém deu resultado e barrou a destruição das vilas mais de uma vez.

A realidade hoje é que, em uma esfera global, as linhas de frente são ainda mais perigosas do que antes. Embora tenhamos celebrado a Primavera Árabe e o movimento Ocuppy Wall Street há apenas dez anos, o espaço cívico estreitou-se e as regras de engajamento mudaram. Principalmente em relação à mobilização da legislação e da tecnologia, a sociedade civil tem sido vítima de ataques de vários ângulos: restrição ou interferência no financiamento de ONGs, assédio, abuso e incriminação de ativistas, leis draconianas que restringem a liberdade de expressão, proliferação de tecnologias de vigilância, a ascensão da direita e o controle de narrativas nas redes sociais.1010. “Human Rights Are Under Attack. Who Will Protect Them?,” World Politics Review, 1º de julho de 2020, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.worldpoliticsreview.com/insights/27856/human-rights-are-under-attack-who-will-protect-them. Devemos aprender a nos proteger e seguir adiante em nossas missões, seja no mundo físico ou digital, de novas formas em relação ao passado.

Não existe uma solução mágica. Não há um jeito único de resolver as coisas, por isso é fundamental dispor de capacidade para diversificar e se adaptar a circunstâncias específicas. Contudo, ao compartilhar meus pensamentos abaixo sobre as mudanças que acho que precisamos ver, acredito que os princípios estratégicos podem, de fato, ser aplicados em todos os cenários. Muitos desses conhecimentos já existem na sociedade civil. Trata-se de reuni-los de um modo mais estruturado e sintetizado.

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2.“Ataque é o segredo da defesa; a defesa é o planejamento de um ataque”1111. Sun Tzu, The Art of War (Colorado: Shambhala Publications, 2005).

Ao longo da história, aqueles que derrotaram oponentes maiores e com melhores recursos o fizeram por meio de uma estratégia eficiente, com coordenação e disciplina na execução. Os princípios fundamentais de Sun Tzu, retirados de sua obra A Arte da Guerra, são úteis a defensoras e defensores de direitos humanos da mesma forma que eram oportunos ao general e filósofo chinês há mais de 2.500 anos. Embora o uso da analogia militar possa soar um pouco provocativo nesse contexto, devemos sempre permanecer abertos à aprendizagem para progredirmos nas nossas causas, independentemente de nos identificarmos ou não com as origens de tais dizeres.

A melhor forma de defesa é o ataque: se você não estiver lutando no território do inimigo, você estará se defendendo dele em seu próprio espaço. Para que isso dê certo, você deve estudar e conhecer seus adversários tão bem quanto conhece a si próprio. Pesquisar o oponente é uma ótima ferramenta para obter insights. Quando não possuímos os mesmos recursos, precisamos encontrar o calcanhar de Aquiles para sermos eficientes. Podemos criar a alavancagem necessária como um catalisador de mudança: na física, uma alavanca posicionada no ângulo correto pode mover um peso muito mais pesado.

Escolha o seu terreno: o tamanho de sua força e a profundidade de seus recursos são fatores de menor importância quando você está em um terreno que potencializa os seus pontos fortes. Para alguns, esse terreno é o tribunal; para outros, a mídia ou o uso da opinião pública. Ainda, é possível obter melhores resultados quando contamos com aliados em diversos terrenos, agindo em uníssono e por meio de diversas linhas de frente.

Redes de informações eficientes: obter informações oportunas por meio de redes de aliados a fim de usufruir do conhecimento (por exemplo, pesquisas da oposição) pode fornecer insights valiosos sobre as vulnerabilidades dos seus oponentes ou seus próximos movimentos. Assim, a coleta de inteligência e o monitoramento do contexto são essenciais.

Coordenação do movimento: para avançar com mais velocidade, especialmente em grandes números, devemos estar bem coordenados e dotados de estrutura e linhas de comunicação claras. Não há como sermos democráticos em todos os níveis, mas devemos coordenar por meio de esferas de influência/envolvimento pré-acordadas, fóruns designados para discussão e mecanismos de tomada de decisão claros.

Escolhendo com quais batalhas se vencerá a guerra: não venceremos todas as batalhas, mas devemos nos concentrar em vencer a guerra. Precisamos ter uma visão estratégica de longo prazo forte (a nossa guerra), mas com a capacidade de, às vezes, reduzir nossas perdas e colocar recursos em novas fronteiras quando surgirem oportunidades (as nossas batalhas). As estratégias nefastas de agentes como os irmãos Koch1212. Nota da edição: Milionários do ramo do petróleo cuja família possui grande influência política nos Estados Unidos, especialmente entre movimentos da extrema direita. não visavam apenas a vitórias imediatas. Eles miravam a educação da próxima geração de maneira bastante eficiente, estando dispostos a investir no jogo em longo prazo. Um impacto duradouro requer investimentos ao longo do tempo, com flexibilidade para se adaptar rapidamente e manter essa perspectiva mais abrangente.

Objetivos claros e unificados: um dos elementos mais importantes para garantir a harmonia da equipe e as chances de sucesso. Infelizmente, os grupos de causas sociais frequentemente sucumbem às diferenças semânticas, o que impede um ambiente colaborativo coeso, enquanto seus adversários parecem bastante estimulados a deixar de lado suas variações para se unirem sob um objetivo comum (geralmente dinheiro e/ou retenção ou expansão de poder). Colabore com diversas partes que tenham um objetivo comum. Ainda que você não concorde plenamente com tudo o que elas representam ou lutam, encontre forças no tecido conjuntivo das áreas em que vocês de fato têm um objetivo unificado.

Controle a narrativa: por meio da liderança das nossas próprias narrativas (especialmente no espaço digital) e do combate às campanhas de desinformação feitas por adversários. Essa tem sido a área cada vez mais vantajosa para suprir com recursos – o poder das narrativas não deve ser subestimado – não apenas publicamente, mas também internamente.

Cuide do bem-estar da sua equipe: “[e]stude cuidadosamente o bem-estar de seus homens e não os sobrecarregue. Concentre sua energia e acumule sua força.”1313. Tzu, The Art of War., 1414. Nota da tradutora: tradução livre.

Essa última ressalva está indubitavelmente entre as mais importantes observações e é a razão pela qual o gerenciamento de risco deve ser um elemento fundamental para qualquer pessoa que defenda os direitos humanos. Cuidar do nosso bem-estar é parte integrante de nossas ações de proteção e preservação. É como a nossa água, sustenta nossa resiliência. Existe uma riqueza de conhecimentos e orientações sobre bem-estar disponíveis. Os ingredientes não são secretos: equilíbrio entre vida pessoal e profissional, unidade de propósito, liberação de estresse, motivação, alimentação saudável, exercícios regulares e horas de sono suficientes. Por outro lado, nossos desafios são representados pela nossa disciplina e consistência na implementação. Geralmente, monitorar o nosso próprio equilíbrio é difícil, motivo pelo qual um esforço coletivo se faz necessário. Precisamos ouvir e observar nós mesmos e uns aos outros. Devemos projetar sistemas de apoio e uma infraestrutura que integre o bem-estar, inclusive nas iniciativas financiadas por doadores. Ademais, precisamos ter uma liderança que tenha isso como prioridade.

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Enquanto atravesso lentamente o trânsito cambojano, passo por mais de um caminhão pequeno carregando uma carga de trabalhadores apinhados e em condições inseguras, certamente a caminho de uma das muitas fábricas têxteis que desempenham um papel indispensável à economia do país. Penso que não seriam necessários muitos esforços, em uma perspectiva geral, para fazer algumas mudanças que transformariam a jornada desses trabalhadores e trabalhadoras de perigosa para razoavelmente segura. O conceito por trás dessa transformação sustenta a razão de eu estar aqui. Fomos financiados por uma fundação pioneira para trabalhar com alguns de seus donatários na mitigação de riscos, pois ela reconheceu o papel importante que o bem-estar de seus donatários e o exercício do seu dever de cuidar desempenham no sucesso de seus objetivos combinados.

É esse o tipo de liderança do qual precisamos: uma liderança que compreenda e invista em manter os mais expostos e, portanto, mais vulneráveis de forma mais segura possível enquanto desempenham o seu trabalho. A implementação da mitigação básica de riscos para defensoras e defensores de direitos humanos deve se tornar a norma, não a exceção. Os doadores devem aportar recursos para a proteção e segurança daqueles que estão na linha de frente como uma prática padrão. O mesmo tipo de esforço empreendido no gerenciamento de impacto e nas análises e balanços financeiros deve ser aplicado à mitigação de riscos. É a partir de um espaço de risco bem mitigado que podemos efetivamente voltar nossas mentes para as nossas fronteiras estratégicas.

Durante a minha estadia no Camboja, trabalhamos na preparação de outra equipe da Kamara para voar até a Amazônia brasileira, no estado do Pará, com o objetivo de realizar uma avaliação das necessidades locais e entender como poderíamos apoiar as defensoras e os defensores dos direitos humanos ambientais naquela região. Para ser sucinto, vou me referir a ativistas, comunidades indígenas e organizações que estão fazendo um trabalho incrível na linha de frente para proteger a Amazônia (e o meio ambiente de forma mais ampla) coletivamente como “DDHAs” (Defensores e defensoras dos Direitos Humanos Ambientais), mas reconhecendo que não é a nomenclatura preferida para muitos que se identificam de outras maneiras. Dentro de um contexto de ameaças crescentes e significativas provenientes de interesses estatais, comerciais e criminosos, as quais intentam silenciar as lutas de defensoras e defensores, buscamos ouvir diretamente dos DDHAs se achavam que o nosso acervo de estratégias poderia ajudá-los. Escolhemos o Pará por ser considerado uma das regiões mais letais do mundo para essa categoria de defensores.1515. Em termos absolutos, o Brasil é o local mais letal no mundo para uma defensora ou um defensor dos direitos humanos: em 2017, 57 DDHAs foram assassinados no Brasil (o pior ano registrado para qualquer país) e 90% dessas mortes aconteceram na Amazônia: “At What Cost? Irresponsible Business and The Murder of Land and Environmental Defenders in 2017,” Global Witness, 24 de julho de 2018, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/at-what-cost/. O Pará apresenta a taxa mais alta de violência contra os ativistas do país. Sue Branford e Thais Borges, “Dismantling of Brazilian Environmental Protections Gains Pace.” Mongabay, 8 de maio de 2019, acesso em 15 de julho de 2020, https://news.mongabay.com/2019/05/dismantling-of-brazilian-environmental-protections-gains-pace/. Levando-se em consideração que 1.500 DDHAs foram assassinados nos últimos 15 anos em todo o mundo e que, durante esse período, a taxa de assassinatos dobrou, essa escolha foi bastante significativa.1616. Jonathan Watts, “Environmental Activist Murders Double in 15 Years.” The Guardian, 5 de agosto de 2019, acesso em 15 de julho de 2020, https://www.theguardian.com/environment/2019/aug/05/environmental-activist-murders-double.

Todos os DDHAs que entrevistamos no Pará em 2019 (pouco antes do Dia do Fogo1717. Leandro Machado, “O que Se Sabe Sobre o ‘Dia do Fogo’, Momento-chave das Queimadas na Amazônia.” BBC News Brasil, 27 de agosto de 2019, acesso em 23 de julho de 2020, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49453037#:~:text=O%20dia%2010%20de%20agosto,maior%20floresta%20tropical%20do%20mundo.) enfrentam ameaças graves e expressaram a necessidade e o desejo claros de obter um apoio à segurança, no tocante não apenas ao gerenciamento de risco mais tradicional, mas também ao apoio às investigações dos autores dos ataques e das redes por trás deles. O reconhecimento de que as investigações poderiam ser uma ferramenta altamente benéfica à mitigação de riscos, se manejada corretamente, foi uma observação interessante e perspicaz das pessoas que conhecemos. A investigação dos autores e a pesquisa dos opositores, com o uso da OSINT (inteligência de código aberto) e da HUMIT (inteligência humana) para entender como nossos adversários operam, pode constituir um componente de proteção incrivelmente valioso. É crucial garantir, primeiramente, a segurança própria e dos outros por meio de redes fortes e da proteção coletiva. No entanto, saber quem está atacando e estudar o máximo possível sobre eles para prever suas táticas e trabalhar para elevar o custo político a ser pago em razão dos danos por eles cometidos é imperativo para que possamos seguir em frente.

A habilidade que temos de repensar a maneira como trabalhamos para superar quaisquer impedimentos obtusos e estruturais existentes e construir mecanismos de apoio eficientes em torno das pessoas que defendem os direitos humanos é imprescindível. Precisamos redefinir nossa percepção sobre proteção e nosso envolvimento com os riscos. As capacidades de nos mantermos resilientes e de gerarmos impacto estão essencialmente interligadas e devemos começar a reconhecer o papel fundamental que a mitigação de riscos, com o aproveitamento do conhecimento e a colaboração em rede, tem em nossa habilidade em manter a sociedade civil mais segura e torná-la mais eficiente.

Quando deixei o Camboja para regressar à minha casa, a Covid-19 havia esvaziado o aeroporto de Bangkok. Devido à pandemia, ainda não tenho certeza de quando conseguiremos retornar ao país do Sudeste Asiático para o próximo capítulo de nossa jornada juntos. Todos nós fomos forçados a revisar nossas metodologias em nível global e encontrar maneiras alternativas de nos mantermos conectados e unificados dentro da conjuntura atual. Precisamos nos adaptar ao novo terreno, seja o nosso ou de nossos adversários. É uma oportunidade não apenas de reflexão, mas também de crescimento. Acredito que agora seja ainda mais indispensável, em razão da pandemia, que nós, no espaço da sociedade civil, tomemos ações rápidas. Nosso mundo pós-Covid se parece muito com a combinação dos impactos das recessões pós-11 de Setembro e pós-crise financeira de 2008, ocasiões em que as circunstâncias levaram a uma extensão dos poderes dos governos, ao aumento da desigualdade social e à supressão das liberdades civis que continuam a ecoar ainda hoje. Enquanto todos nós lutamos para lidar com o impacto em nossas rotinas diárias e no trabalho, devemos trabalhar em conjunto para garantir a proteção das pessoas na linha de frente e para manter a nossa perspectiva abrangente.

Oren Yakobovich - Israel

Oren Yakobovich é empreendedor social. Atua há 20 anos em casos de violação de direitos humanos de alto risco. Após trabalhar na organização B’Tselem, cofundou a ONG Videre Est Credere. Kamara, seu novo empreendimento social, fornece estratégias de gerenciamento de risco, extensa capacidade de investigação e consultoria para agentes de impacto social.

Recebido em julho de 2020.

Original em inglês.
Traduzido por Naiade Rufino.