Dossiê SUR sobre drogas e direitos humanos

ONU em 2016: Um divisor de águas

Anand Grover

Como os Estados-membros das Nações Unidas podem mudar a orientação da política internacional sobre drogas rumo a uma melhor proteção dos direitos humanos?

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RESUMO

Diante da próxima Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU (UNGASS, na sigla em inglês) sobre drogas, em 2016, o autor insta os representantes dos países presentes na UNGASS a considerar uma série de alternativas para alinhar a atual política mundial sobre drogas aos direitos humanos.

Palavras-Chave

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A abordagem mundial predominante em relação ao controle de drogas tem sido – e continua a ser – um fracasso inegável.

Diante da próxima Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU (UNGASS, na sigla em inglês) sobre drogas, a ser realizada no início de 2016, os Estados-membros da ONU possuem atualmente uma oportunidade histórica para mudar esse sistema ineficaz. As sessões especiais da ONU proporcionam um fórum para discussões de alto nível sobre questões de importância mundial. A UNGASS 2016 oferece a oportunidade de que medidas decisivas sejam tomadas em oposição ao objetivo estabelecido na última sessão especial sobre drogas realizada em 1998, qual seja: eliminar ou reduzir de forma significativa a demanda e oferta de drogas até 2008. Hoje, essa abordagem proibicionista mostra-se completamente irrealista.

Os números falam por si só. Nos últimos quarenta anos, estima-se que 1,5 trilhão de dólares americanos foram gastos ao redor do mundo em políticas repressivas contra as drogas. No entanto, entre 2003 e 2012, as autoridades de aplicação da lei ao redor do mundo relataram um aumento no consumo pessoal e no tráfico de drogas. Entre 1994 e 2014, a rede de cultivo de produção da papoula do ópio no Afeganistão mais do que triplicou. Somente no México, estima-se que, desde 2006, 100 mil pessoas tenham sido mortas em casos relacionados com a “guerra contra as drogas”.‬

Estatísticas como estas levaram um crescente número de Estados-membros a questionar a validez da política existente – tanto em termos financeiros, quanto práticos. Originalmente planejada para 2019, México, Colômbia e Guatemala solicitaram, em uma resolução copatrocinada por 95 países, que a UNGASS fosse antecipada para 2016. Isto ilustra como os políticos do mais alto nível estão determinados a ter um debate franco sobre abordagens alternativas para o controle das drogas – e que isto deve ocorrer o mais rápido possível.

A Comissão Global de Políticas Sobre Drogas solicita que os representantes dos países presentes na UNGASS considerem as alternativas apresentadas abaixo em seus debates. Elas permitirão a definição de alternativas viáveis ao sistema atual – alternativas que devem estar alinhadas aos direitos humanos, com a agenda de desenvolvimento pós-2015 e que reflitam uma verdadeira mudança de paradigma.‬

Foto por Palazzo Chigiz / CC BY-NC-SA 2.0

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Em primeiro lugar, a saúde e segurança das pessoas devem ser colocadas acima de qualquer outra consideração política. Isto significa investir em proteção comunitária, prevenção, redução de danos e tratamento como fundamentos da política sobre drogas. Uma política proibicionista provoca o uso ilegal de drogas, que resulta em um uso perigoso de drogas. Por exemplo, até 40% dos novos casos de HIV e Hepatite C são decorrentes da prática insegura de injeção intravenosa de drogas, sem as devidas precauções. Isto pode ser traduzido em quase 2 milhões de anos de vida perdidos por mortes prematuras como consequência de infecções pelo HIV.‬

Em segundo lugar, o acesso a medicamentos essenciais e de controle da dor deve ser assegurado. Limites excessivamente rigorosos sobre a dosagem e métodos de preparação, bem como sobre as práticas de prescrição e distribuição de medicamentos, supostamente voltados a impedir seus desvios e entrada no mercado ilegal, devem ser removidos. Não fazer isto gera dor e sofrimento desnecessários, especialmente em países mais pobres. A Organização Mundial de Saúde estima que 5,5 bilhões de pessoas não têm acesso a medicamentos à base de opioides, incluindo 5,5 milhões de pacientes em fase terminal.‬

Em terceiro lugar, a criminalização e prisão de pessoas que usam drogas deve acabar. Isto é fundamental para qualquer política verdadeiramente baseada em critérios de saúde. A criminalização do uso de drogas não apenas estigmatiza as pessoas que usam drogas como párias sociais, bem como desencoraja os usuários a procurarem ajuda e acesso a tratamentos. Em diversos países, os usuários de drogas temem ser denunciados às autoridades e ter seus nomes colocados nos chamados registos sobre o uso de drogas ou de reabilitação forçada. Essas medidas podem restringir gravemente direitos em áreas como saúde, emprego e vida familiar e, frequentemente, são contraproducentes. As pessoas que se tornam dependentes de drogas respondem a medidas baseadas em cuidados especiais e a criminalização impede a criação de uma resposta compassiva.

Em quarto lugar, as políticas de aplicação da lei devem estar focadas no crime organizado. Uma aplicação da lei mais focada – que não dê prioridade aos atores não violentos e secundários do mercado – vai garantir a paz e segurança. Atualmente, as políticas punitivas focadas, por exemplo, nos cultivadores de drogas e nas “mulas”, afetam desproporcionalmente os mais pobres e mais vulneráveis. Isto resulta na superlotação das prisões, estimula a corrupção das autoridades locais e ameaça a unidade da família e comunidade, sem ter qualquer efeito real na disponibilidade de drogas ilegais.‬

Por fim, os mercados de drogas devem ser regulados para deixar os governos no controle dos mesmos. Ao adotar essas medidas, os danos sociais e à saúde serão reduzidos e o crime organizado será enfraquecido. Enquanto os métodos mais eficazes para a regulamentação ainda são uma questão a ser debatida, a escolha entre a regulamentação em si ou desregulamentação é simples – existe um mercado de drogas controlado por governos ou por grupos criminosos. Não há uma terceira opção na qual o mercado de drogas possa simplesmente desaparecer.‬

Embora o princípio predominante do regime mundial atual de controle das drogas seja “a saúde e bem-estar da humanidade”, na realidade, ele levou a incomensuráveis violações de direitos humanos, ainda que não intencionais. O que está por trás dessa questão é o fato de que os atuais tratados internacionais de controle de drogas não fazem qualquer referência aos direitos humanos e os seus órgãos de implementação fracassaram repetidamente em priorizar os direitos humanos.‬

As conferências internacionais anteriores sobre drogas apenas reafirmaram essa abordagem. A UNGASS 2016 precisa estabelecer um divisor de águas, definindo uma nova orientação na política internacional sobre drogas com foco baseado integralmente nos direitos humanos.

Anand Grover - Índia

Atualmente, Anand Grover é membro da Comissão Global de Políticas Sobre Drogas (Global Commission on Drug Policy, no nome original em inglês). Além de ser um renomado advogado com vasta experiência, que litiga no Supremo Tribunal da Índia, e Diretor de Projetos da organização Lawyers Collective (Índia), Grover também foi, de agosto de 2008 a julho de 2014, Relator Especial da ONU sobre o direito de toda pessoa a desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental.

Recebido em julho de 2015.

Original em inglês. Traduzido por Fernando Sciré.