Dossiê SUR sobre drogas e direitos humanos

O elefante na sala: Drogas e direitos humanos na América Latina

Luciana Pol e Juan Carlos Garzón

Diante de violações sistemáticas dos direitos humanos é necessária a revisão da atual política de drogas na América Latina e no mundo.

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RESUMO

O artigo procura demonstrar como as convenções e leis de drogas estão em tensão com os direitos humanos, gerando diversos impactos negativos, multiplicando a violência e a repressão dos setores mais vulneráveis da população nos países em que foram implementadas.

Com base na análise dos efeitos da implementação do Regime Internacional de Controle de Drogas e de elementos críticos em relação a violações de direitos humanos, são apontados os desafios que a realização da Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGASS 2016, sigla em inglês) representa para a definição da política de drogas das próximas décadas, com especial ênfase na região latino-americana.

Palavras-Chave

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Na prática o Regime Internacional de Controle de Drogas (RICD) tem gerado violações sistemáticas de direitos humanos e liberdades fundamentais. Apesar das múltiplas evidências sobre os efeitos produzidos pela aplicação severa das leis de drogas, apenas recentemente começou-se a falar abertamente sobre essa problemática. Durante décadas, a aplicação e monitoramento das convenções de controle de drogas têm negligenciado a obrigação preponderante que têm os Estados em matéria de direitos humanos. As instâncias multilaterais responsáveis pela supervisão do RICD têm exercido seus mandatos, ignorando o elefante branco na sala.

Diante desta realidade, são cada vez mais fortes as vozes que demandam a revisão da atual política de drogas na antessala da Sessão Especial das Nações Unidas de 2016 (UNGASS 2016, por sua sigla em inglês), convocada para realizar uma avaliação dos progressos e retrocessos do atual regime.

Este artigo pretende analisar brevemente a tensão existente entre a aplicação do RICD e a garantia dos direitos humanos, mostrando como no contexto da chamada “guerra às drogas” as responsabilidades nesse âmbito têm sido ignoradas, ou no melhor dos casos, citadas marginalmente. Uma segunda seção apresentará evidências sobre como na prática a aplicação das leis de drogas tem produzido múltiplos efeitos e consequências negativas, com especial ênfase na América Latina. Ao final, serão expostos os rescentes avanços tendo em vista a UNGASS 2016.

O elefante na sala: o divórcio das políticas de drogas e os direitos humanos

O Regime Internacional de Controle de Drogas é baseado em três tratados: a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 e a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988. O regime como um todo tem como objetivo fiscalizar as drogas para garantir sua disponibilidade para fins médicos e científicos, além de impedir o desvio de um conjunto definido de substâncias para outros usos. Do ponto de vista dos direitos humanos, é importante destacar que as três convenções contêm em seu preâmbulo referências à “saúde” e ao “bem-estar dos seres humanos” como objetivos superiores de natureza “moral”. Por outro lado, direitos humanos só aparecem explicitamente uma vez nos três tratados – artigo 14(2) da Convenção de 1988.

Apesar das referências marginais aos direitos humanos, como ocorre com qualquer outro tratado, as convenções devem ser aplicadas e interpretadas em conformidade com as obrigações decorrentes de direitos humanos. Como aponta Rodrigo Uprimny, o dever dos Estados de respeitar esses direitos é um mandato baseado na Carta das Nações Unidas, que é um tratado que prevalece sobre qualquer outra convenção, de modo que as obrigações dos Estados em relação às drogas devem ser interpretadas de forma compatível com as obrigações internacionais de direitos humanos, e não o contrário.11. Rodrigo Uprimny, “Derechos Humanos y Derecho de las Drogas,” El Espectador, septiembre 14, 2013. No entanto, na prática houve um divórcio entre o cumprimento dos compromissos assumidos no âmbito do RICD e as obrigações em matéria de direitos humanos.

Como esse divórcio pode ser explicado? Não há uma única resposta. Por um lado, é possível argumentar que as convenções obrigam os países a adotarem sanções penais para combater todos os aspectos relacionados com a produção, posse e tráfico de drogas, o que resulta na aplicação de uma abordagem repressiva.22. Francisco Thoumi, “La normatividad internacional sobre drogas y la evaluación de los resultados de la especial,” Razón Pública, 2008, acesso 28 mar. 2015, http://bit.ly/1JBmsEs. A adoção predominantemente punitiva das responsabilidades tem resultado em violações de direitos humanos e na deterioração das liberdades individuais. Dessa perspectiva, o cumprimento das convenções tem estimulado o descumprimento das obrigações em matéria de direitos humanos.

“O problema não está nas convenções, mas em sua interpretação”

Por outro lado, tal como argumentado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, sigla em inglês), embora os direitos humanos tenham sido violados em nome do combate às drogas, nada nas convenções justifica ações como tortura, coação, humilhação durante o tratamento, ou pena de morte.33. UNDOC, Drug Policy Provisions from the International Drug Control Conventions (Vienna, 2014), 14. De fato as convenções permitem aos países responderem proporcionalmente, oferecendo alternativas para condenações por delitos menores. Nessa perspectiva, o problema não está nas convenções, mas em sua interpretação.

A realidade obriga a analisar as convenções não tanto por suas intenções, mas pelos seus resultados, os quais não estão em sintonia, nem tem privilegiado as obrigações dos Estados em matéria de direitos humanos. Como afirma Damon Barrett, o RICD desconhece os riscos decorrentes de sua aplicação, necessita de diretrizes claras e específicas sobre essa temática e não conta com uma instância para regular e monitorar seu cumprimento — como ocorre, por exemplo, no caso de atividades comerciais ou no combate ao terrorismo.44. Damon Barrett, “Reflexiones sobre los derechos humanos y el control internacional de las drogas,” en: Regulando las Guerras Contra las Drogas, ed. John Collins (London: London School of Economics, 2012).

Apenas em 2008 a Comissão sobre Entorpecentes (CND) das Nações Unidas adotou uma resolução sobre direitos humanos.55. UNODC, Commission on Narcotic Drugs, Resolution 51/12, “Strengthening cooperation between the United Nations Office on Drugs and Crime and other United Nations entities for the promotion of human rights in the implementation of the international drug control treaties,” 2008, acesso 30 jun. 2015, https://www.unodc.org/documents/commissions/CND/Drug_Resolutions/2000-2009/2008/CND_Res-2008-12e.pdf. A aprovação desse documento só foi possível depois de eliminadas as referências à pena de morte, à declaração sobre os direitos dos povos indígenas e aos mecanismos específicos de direitos humanos da ONU.66. Barrett, “Reflexiones,” 63. Desde então (2008), as garantias de direitos humanos têm aparecido com mais frequência em resoluções e declarações.

Em 2009, o Relator Especial da ONU sobre Tortura, Manfred Nowak, citou a aplicação das leis de drogas como um dos argumentos utilizados pelos governos para justificar as violações de direitos humanos. Em 2010, o Relator Especial sobre o Direito à Saúde expressou sua preocupação com “o fato de que a abordagem atual do controle de drogas causa mais danos do que os que tenta impedir”. Em 2012, uma declaração conjunta de vários organismos da ONU fez um chamado aos Estados para fechar os centros obrigatórios de reabilitação e implementar serviços de saúde baseados em direitos humanos.77. Ernstein Jensema, “Derechos humanos y política de drogas,” trans. Beatriz Martínez, Transnational Institute, octubre 15, 2013, acesso 20 mar. 2015, http://bit.ly/1Hwe2kz. Em 2010 o UNODC produziu um relatório para a CND sobre as políticas de controle de drogas e justiça criminal na perspectiva de direitos humanos.88. UNODC, Drug control, crime prevention and criminal justice: A Human Rights perspective, E/CN.7/2010/CRP.6, E/CN.15/2010/CRP.1, Mar. 3, 2010, acesso 30 jun. 2015, https://www.unodc.org/documents/commissions/CCPCJ/CCPCJ_Sessions/CCPCJ_19/E-CN15-2010-CRP1_E-CN7-2010-CRP6/E-CN15-2010-CRP1_E-CN7-2010-CRP6.pdf. Também em 2012, o UNODC publicou um comunicado com orientações para sua equipe.99. UNODC, UNODC and the Promotion and Protection of Human Rights. Position Paper, 2012, acesso 30 jun. 2015, https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/UNODC_Human_rights_position_paper_2012.pdf.

Além disso, o relatório da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE) de 2015 expressou sua preocupação com os Estados nos quais ainda se aplica a pena de morte por crimes relacionados com drogas1010. No relatório ao Conselho é mencionado especialmente o Estado de Omã, que propôs aplicar a pena de morte para crimes relacionados ao tráfico de drogas destinado a seu território. e o Comitê de Direitos Humanos da ONU fez um apelo a esses países pedindo o fim dessa prática.

Pouco a pouco as referências ao “elefante” começaram a aparecer, embora ainda haja uma significativa resistência de alguns Estados que não consideram necessário que a aplicação de leis de drogas cumpram com as obrigações de direitos humanos. Por exemplo, mais de doze países incluem em sua legislação o castigo corporal como uma opção de punição disciplinar por delitos relacionados com drogas.1111. Fundación Transform Drug Policy, “La Guerra contra las Drogas: Socavando los Derechos Humanos,” Count the Costs of the War on Drugs, 2012, 7, último acesso em 28 junho, 2015, http://www.countthecosts.org/sites/default/files/Human_rights_Spanish.pdf. Além disso, países como Rússia e China se opõem abertamente a essa discussão. No entanto, o debate sobre os abusos tem se intensificado, enquanto persistem as consequências negativas. A perspectiva punitiva continua a ser a norma, com o uso excessivo do direito penal para responder a problemas diretamente relacionados à saúde pública e ao desenvolvimento.

 

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02

“A Guerra contra as drogas”: uma história de abusos aos direitos humanos

A criação e o desenvolvimento do regime internacional de fiscalização de drogas tem relação com vários abusos e impactos negativos. Em 2008, no Relatório Mundial sobre Drogas elaborado pelo UNODC1212. ONUDD, Informe Mundial de Drogas 2008, acesso 28 jun. 2015, https://www.unodc.org/documents/wdr/WDR_2008/wdr08_execsum_spanish.pdf. foi identificada uma série de “consequências negativas não-intencionais” das ações de controle de drogas. Nesse mesmo ano, em um guia para os seus funcionários, o UNODC admitiu que “há um risco, menor mas presente, de que as atividades do UNODC tenham um impacto negativo sobre os direitos humanos.”1313. UNODC, UNODC and the Promotion. Na prática o RICD resultou em um sistema de riscos, em que os “danos colaterais” terminaram se tornando a regra.

No relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), publicado recentemente, afirma-se que “em muitos países ao redor do mundo, os esforços de controle de drogas resultam em graves violações aos direitos humanos”.1414. UNDP, Perspectives on the Development Dimensions of Drug Control Policy (New York, 2015), 8. Além disso, o PNUD afirma que “as comunidades também enfrentam grandes violações de direitos humanos por parte das organizações de tráfico de drogas”.1515. UNDP, Perspectives, 8. Sob o regime atual, os Estados não se abstiveram de interferir no gozo dos direitos humanos (respeitar os direitos), assim como também não adotaram as medidas necessárias para garanti-los e protegê-los.

A lista de impactos é extensa e suas implicações são profundas. Em suas manifestações mais rigorosas, a aplicação das leis de drogas resultou em torturas, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados por parte de agentes do Estado. Em nome da “guerra às drogas” e do combate ao crime, as instituições têm ignorado suas obrigações frente a violações sistemáticas e não raramente massivas. Essas ações têm atingido especialmente populações vulneráveis – jovens pobres e em situação de marginalidade.1616. CIDE, En busca de los derechos: usuarios de drogas y las respuestas estatales en América Latina (México, 2014).

“As intervenções realizadas sob o RICD exacerbaram a violência e a insegurança que pretendiam evitar”

Nos países onde o combate ao tráfico de drogas tem sido mais intenso, como é o caso da Colômbia, Brasil, México e Honduras, para citar alguns exemplos, a repressão levou literalmente em uma “guerra”, com um inimigo definido (produtores, consumidores, portadores de pequenas quantidades ou grandes “chefes”), com utilização de dispositivos armados (vinculando as forças militares a trabalhos de segurança pública) e milhares de vítimas.1717. Juan Carlos Garzón, Cómo reparar un sistema que no funciona. Modernización de la aplicación de las leyes sobre drogas en América Latina (Países Bajos: Transnational Institute e International Drug Policy Consortium, diciembre, 2014), 4 (Serie Reforma Legislativa, n. 29).

As intervenções realizadas sob o RICD exacerbaram a violência e a insegurança que pretendiam evitar. A luta contra o tráfico de drogas tem impactado muitas comunidades que são afetadas diretamente, seja por sua localização em relação às rotas de tráfico, seja pelas dinâmicas da violência associadas ao tráfico ou ao varejo da droga.

Uma meta-análise conduzida por Werb et al. concluiu que a violência armada e as altas taxas de homicídios poderiam ser uma consequência da proibição.1818. Dan Werb et al., “Effect of drug law enforcement on drug market violence: A systematic review,” International Journal of Drug Policy, 22, no. 2 (2011): 87–94. No México, um estudo recente elaborado por Valeria Espinosa e Donald Rubin apontou que as intervenções realizadas pelo Exército no marco da repressão ao narcotráfico provocaram um aumento nas taxas de homicídio.1919. Valeria Espinosa and Donald Rubin, “Did the Military Interventions in the Mexican Drug War Increase Violence?,” The American Statistician 69, no. 1 (2015): 17–27, doi:10.1080/00031305.2014.965796. Na Colômbia, algumas estimativas mostram que as atividades de produção de drogas resulta na morte de 4.000 a 7.000 pessoas a cada ano e geram entre 180.000 e 277.000 pessoas deslocadas.2020. Daniel Mejía and Pascual Restrepo, Do Illegal Markets Breed Violence?: Evidence for Colombia (Colombia: Universidad de los Andes, 2011), acesso em abril de 2015, http://academiccommons.webmeets.com/files/papers/LACEA-LAMES/2011/78/IDMbV%20May%202011.pdf.

A severidade das leis de drogas tem privilegiado o uso do direito penal como resposta, com a aplicação de sanções desproporcionais e o aumento progressivo das penas. No caso específico da América Latina, tanto as penas mínimas como as máximas se multiplicaram até 20 vezes nos últimos 50 anos.2121. Rodrigo Uprimny, Diana Guzmán and Jorge Parra, La adicción punitiva, La desproporción de leyes de drogas en América Latina (Bogotá: DeJusticia, 2012). A imposição da pena de morte em 33 países e territórios por delitos relacionados com drogas2222. Patrick Gallahur and Rick Lines, The Death Penalty for Drug Offences: Global Overview (London: IHRA, 2010). requer atenção especial. Centenas de pessoas foram executadas em países como China, Irã, Paquistão, Indonésia e Tailândia. Além disso, meio milhão de pessoas se encontram em centros de detenção, como medida para seu tratamento, em países como Camboja, Vietnã e Laos.2323. Kasia Malinowska, “The United Nations general assembly special session on drugs in 2016,” BMJ Blogs, febrero 17, 2015, acesso 25 mar. 2015, http://blogs.bmj.com/bmj/2015/02/17/kasia-malinowska-sempruch-the-united-nations-general-assembly-special-session-on-drugs-in-2016/.

Em alguns países, a repressão ao mercado ilegal de drogas tem justificado a introdução de diferentes legislações excepcionais, contrárias ao devido processo. Sob o argumento da excepcionalidade do crime organizado e complexidade de sua persecução, aplicam-se leis e figuras que vem ampliando de forma excessiva as possibilidades do Estado para prender uma pessoa, ameaçando o próprio senso de justiça. É assim que os custos da guerra às drogas também incluem custos constitucionais, ou seja, o abandono de certos compromissos básicos das democracias, manifestados principalmente na redução ou abandono dos princípios de direitos fundamentais ou na reestruturação das responsabilidades governamentais, alterações introduzidas nos sistemas jurídicos como uma necessidade para combater a ameaça das drogas e do narcotráfico.2424. Alejandro Madrazo Lajous, “The Constitutional Costs of the ‘War on Drugs’,” In Ending the Drug Wars: Report of the LSE Expert Group on the Economics of Drug Policy, ed. John Collins, (London: London School of Economics, 2014), 55–60.

O uso excessivo das medidas de caráter repressivo, na maioria das vezes relacionadas com pequenos delitos, teve como impacto o crescimento da população encarcerada, agravando o problema de superlotação em vários países. Somente nos Estados Unidos o número total de pessoas encarceradas cresceu de 330.000 em 1972 para quase 2,3 milhões de pessoas em 2011.2525. Bryan Stevenson, “Drug Policy, Criminal Justice and Mass Imprisonment,” (working paper prepared for the first meeting of the Global Commission on Drug Policy, Geneva, January 24-25, 2011), 3. 50% dos presos estão em prisões federais e 20% dos que estão em prisões estatais foram condenados por venda ou consumo de drogas.2626. Gary S. Becker and Kevin M. Murphy, “Have We Lost the War on Drugs? Wall Street Journal, January 4, 2013.

No caso do Brasil, durante a vigência da Lei de Drogas (Lei n° 11.343/06) aumentou-se a pena mínima do tráfico ao mesmo tempo em que se descriminalizou a posse para consumo pessoal. No entanto, a lei não estabelece uma distinção objetiva entre essas categorias. Como resultado, a incidência de crimes no sistema de justiça aumentou consideravelmente, ampliando sua participação no número total de presos. Em 2006, 47.472 pessoas foram detidas por tráfico de drogas, o que representou 14% dos presos por todos os crimes. Dados oficiais de 2013 demonstram que 30% da população carcerária cometeram crimes de tráfico de drogas.2727. Luciana Boiteux, “El antimodelo brasileño: Prohibicionismo, encarcelamiento y selectividad penal frente al tráfico de drogas,” Nueva Sociedad 255 (2015): 132–44. Os presos por delitos de drogas formam um grupo muito significativo na maioria dos países latino-americanos, 45% na Bolívia, 34% no Equador, 24% no Peru.2828. Penal Reform International, Global Prison Trends 2015 (London: PRI, 2015). Autores como Loic Wacquant identificam o encarceramento como o mecanismo de controle de grupos marginalizados (substituindo inclusive os guetos sociais), com a guerra às drogas como o aparato de apoio e justificativa para a persecução penal.2929. Loic Wacquant, Las cárceles de la miseria (Buenos Aires: Ed. Manantial, 2004).

Um motivo de preocupação especial é o encarceramento de mulheres por crimes relacionados com drogas. Na América Latina, a população prisional feminina quase dobrou entre 2006 e 2011, passando de 40.000 para mais de 74 mil, a maioria vinculada a delitos relacionados com drogas, com impactos devastadores para as presas, seus filhos, famílias e comunidades.3030. Corina Giacomello, “Women, Drug Offenses and Penitentiary Systems in Latin America,” International Drug Policy Consortium, Oct. 2013.

Por outro lado, os programas de erradicação forçada e fumigação de plantações tiveram impactos negativos sobre as populações. Em alguns casos, essas ações provocaram deslocamento de pessoas, deterioração de seu bem-estar, insegurança alimentar e conflito social. No caso específico da Colômbia, há evidências de que a utilização de glifosato para pulverização teve efeitos negativos para a saúde humana e ao meio ambiente.3131. Daniel Mejía y Adriana Camacho, “Consecuencias de la aspersión aérea en la salud: evidencia desde el caso colombiano,” in Costos económicos y sociales del conflicto en Colombia ¿Cómo construir un posconflicto sostenible? María Alejandra Arias et al. eds. (Bogotá: Ediciones Uniandes, 2014), 107–128. ISBN: 978-958-695-934.

Além disso, a criminalização do consumo e os obstáculos para implementar programas de redução de danos têm estimulado comportamentos de alto risco, tais como a partilha de seringas e agulhas, e em alguns países a propagação do HIV e hepatite C.3232. Global Commission on Drugs Policy, The negative impact of the war on drugs on public health: the hidden hepatitis C epidemic, 2013, acesso 20 mar. 2015, http://bit.ly/1DrlBCO. O tratamento punitivo de um problema de saúde pública, como a dependência e o uso nocivo de drogas, também tem impedido o acesso a tratamentos de saúde de qualidade e aumentado a probabilidade de overdose de drogas.3333. Global Commission on Drugs Policy, Asumiendo el control: Caminos hacia políticas de drogas eficaces, 2014, acesso 20 mar. 2015, http://bit.ly/1DrlS8z.

Em suma, os impactos negativos da aplicação punitiva do modelo proibicionista têm sido extensos e graves. Quanto a seus próprios objetivos, o RICD tem obtido avanços modestos. Apesar dos progressos parciais em alguns países, como o declínio dos níveis de consumo de cocaína nos Estados Unidos e na Europa, acompanhado por um declínio na produção,3434. UNODC, World Drug Report 2015, acesso 30 jun. 2015, http://www.unodc.org/wdr2015/. a magnitude da demanda por drogas não foi substancialmente alterada no âmbito mundial. Além de apresentar baixos níveis de eficiência, em alguns países, o RICD na prática gerou uma verdadeira crise humanitária, afetando as camadas mais vulneráveis da população. Isso ocorreu com maior ênfase em países que adotam medidas repressivas em contextos de fragilidade institucional, caracterizados por baixos níveis de transparência e baixa capacidade do Estado para fornecer serviços públicos para seus cidadãos.

As reiteradas violações aos direitos humanos e a restrição de liberdades constituem um problema sistemático difícil de ocultar. Apesar das evidências, continua sendo forte a resistência em observar a implementação das políticas de drogas desde a perspectiva dos direitos humanos. O RICD tende a se auto-proteger e preservar seu hermetismo, com o argumento de que alterações nas políticas de drogas poderiam corroer o sistema e colocar em risco sua legitimidade.3535. Ann Fordham, “UN Debates on Drugs: 'There Must Be No New Thinking and No New Ideas,’” The Huffington Post, April 1, 2015. Diante dessa realidade, a UNGASS 2016 e seu processo preparatório, com diferentes espaços de discussão multilateral, representam uma oportunidade para tornar evidente o divórcio entre o RICD e os direitos humanos e a necessidade de incorporar diretrizes que orientem a implementação das políticas de drogas.

Photo by Salva Barbera / CC BY-NC-SA 2.0

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03

Perspectivas para o futuro: os direitos humanos e a UNGASS 2016

Nos últimos anos, o debate sobre a política de drogas tornou-se mais intenso com posições críticas de especialistas, organizações não-governamentais e, mais recentemente, líderes políticos e ex-mandatários, que não apenas questionam sua eficácia, mas também seus graves efeitos colaterais. Dentre esses apontamentos incluem-se os efeitos negativos que o RICD tem gerado quanto ao respeito e a garantia dos direitos humanos, um debate que tem tido especial força na América Latina.

No âmbito multilateral destaca-se em 2012 a declaração conjunta de três países da América Latina – Colômbia, Guatemala e México – que chamaram os Estados-membros das Nações Unidas para avaliar o alcance e as limitações da atual política de drogas.3636. “México, Guatemala y Colombia urgen a la ONU a analizar política de combate a las drogas,” Centro de Noticias ONU, oct. 2, 2012, acesso em junho de 2015, http://www.un.org/spanish/News/story.asp?NewsID=24648. Nessa mensagem os líderes solicitaram uma conferência internacional com o objetivo de tomar as decisões necessárias. Em resposta a esse pedido, o Secretário-Geral das Nações Unidas convocou uma sessão especial da Assembléia Geral (UNGASS) para 2016. Desde então, tem havido uma intensa discussão sobre como garantir que os direitos humanos ocupem um lugar central nesse debate.

O processo preparatório para a UNGASS está em curso em Viena, na Comissão de Narcóticos (CND por sua sigla em inglês), órgão da ONU responsável pela definição da política internacional em relação a substâncias ilícitas. Embora a CND tenha sido historicamente resistente à inclusão de outras agências e participação de atores externos, recentemente aprovou uma resolução3737. United Nations, Commission on Narcotic Drugs (CND), Special session of the General Assembly on the world drug problem to be held in 2016, E/CN.7/2015/L.11, Mar. 17, 2015, acesso em junho de 2015, http://www.unodc.org/documents/commissions/CND/CND_Sessions/CND_58/draft_resolutions/ECN72015_L11_17_March_420pm_clean.pdf. que permite que as organizações da sociedade civil e a academia participem da preparação e realização da UNGASS.

Ao mesmo tempo, em sua última sessão (2015), o Conselho de Direitos Humanos da ONU deu um passo fundamental para assegurar que a perspectiva de direitos humanos esteja presente na UNGASS, ao aprovar por consenso uma resolução – co-patrocinada por 47 países da Europa, América Latina, Ásia, África e Oceania – que determina a produção de insumos para subsidiar essa discussão.3838. Human Rights Council, Contribution of the Human Rights Council to the special session of the General Assembly on the world drug problem of 2016, A/HRC/28/L.22, March 23, 2015. A resolução convoca um painel de especialistas para discutir as políticas de drogas e seu impacto sobre os direitos das pessoas. Essa resolução também solicitou ao Alto Comissariado para os Direitos Humanos a produção de um relatório técnico sobre o tema.

“Sem dúvida, a América Latina tem um papel destacado nesse debate, mas não só deve enfrentar suas diferenças internas, como também a forte resistência de outros blocos ou países”

Espera-se que na pauta de discussão da UNGASS seja incluído um segmento especial para tratar desse tema, que constitui uma grande oportunidade para corrigir a ausência histórica dos direitos humanos nas discussões sobre políticas de drogas. Damon Barrett sugere que, tal como acontece em outros campos, como por exemplo o comércio, os países deveriam adotar um Procedimento Especial sobre direitos humanos e controle de drogas.3939. Barrett, “Reflexiones,” 64. Esse poderia ser o caminho para estabelecer critérios que assegurem que o RICD incorpore as obrigações existentes no campo dos direitos humanos.

Uma boa referência nesse sentido é a Resolução da XLIV Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA): “A promoção e proteção dos direitos humanos na busca de novos enfoques e soluções efetivas, no desenvolvimento e implementação de políticas para atender ao problema mundial das drogas nas Américas”, em que os Estados-membros reafirmam que “as políticas sobre drogas devem ser realizadas com pleno respeito às leis nacionais e ao Direito Internacional, inclusive o devido processo, e irrestrito respeito aos direitos humanos”.4040. OEA, La promoción y protección de los derechos humanos en la búsqueda de nuevos enfoques y soluciones efectivas, en el desarrollo e implementación de políticas para atender el problema mundial de las drogas en las Américas, AG/RES. 2868 (XLIV-O/14).

Sem dúvida, a América Latina tem um papel destacado nesse debate, mas não só deve enfrentar suas diferenças internas, como também a forte resistência de outros blocos ou países. China e Rússia compõem uma linha dura contra a reforma do sistema; a União Europeia tem uma atitude de cautela e às vezes não muito interessada no debate; e a África vem mantendo o status quo e a necessidade de combater as drogas. Os Estados Unidos recentemente moderaram suas posições e se mostram mais abertos para discussão, em parte devido à crise carcerária que enfrentam, e em parte pelas reformas legislativas de legalização da maconha que ocorreram em vários estados do país. O fim de 2015 e início de 2016 serão os momentos de preparação da UNGASS, que poderá (ou não) trazer mudanças concretas para o atual regime.

Mas para além do que ocorrer em 2016 na UNGASS, é necessário que essa mudança também seja impulsionada a partir da base, com uma participação mais ativa das organizações de direitos humanos, especialmente em países que tem assumido os custos mais elevados na implementação das políticas de drogas. É importante dar voz às milhares de vítimas da “guerra às drogas”, ao mesmo tempo em que medidas sejam tomadas para que não se reproduzam as consequências negativas da abordagem punitiva.

Luciana Pol - Argentina

Luciana Pol é pesquisadora sênior de Políticas de Segurança e Direitos Humanos do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS).

Recebido em abril de 2015.

Original em espanhol. Traduzido por Akemi Kamimura.

Juan Carlos Garzón - Colômbia

Juan Carlos Garzón é pesquisador do Woodrow Wilson Center e pesquisador associado da Fundación Ideas para la Paz.

Recebido em abril de 2015.

Original em espanhol. Traduzido por Akemi Kamimura.