Entrevista com Usha Ramanathan
Por Rafael Zanatta e Juana Kweitel
Editada por Helena Secaf e Rafael Zanatta
Usha Ramanathan é uma intelectual e ativista indiana cujo objeto de trabalho amalgama legislação, pobreza e direitos. Seus interesses de pesquisa incluem direitos humanos, deslocamento, responsabilidade civil e meio ambiente. Ela publicou extensivamente na Índia e no exterior.
Seus textos são lidos em seu país por meio de veículos como The Wire, The Hindu e The Indian Express. Em 2011, no ensaio “A constitutional value for privacy”,11. Usha Ramanathan, "A constitutional value for privacy." The Hindu, 30 de julho de 2011, acesso em 9 de dezembro de 2021, https://www.thehindu.com/opinion/op-ed/a-constitutional-value-for-privacy/article2306023.ece. Ramanathan defendeu a distinção entre um Estado transparente e um cidadão privado, além de criticar o “momento extraordinário para conhecer o povo da Índia” e o projeto de “identificação única” (UID, no original em inglês), anunciado como a base de um processo de convergência de dados pré-existentes e estruturais para a formulação de políticas públicas no combate à pobreza.
Ao passo que o Banco Mundial, burocratas e grandes investidores comemoram a implementação de projetos de identidade civil digital, Usha construiu uma teoria de privacidade associada às liberdades e riscos de vigilância e de monitoramento político de cidadãs e cidadãos. A batalha contra a UID e o Aadhaar,22. Conforme consta no site oficial da Autoridade de Identificação Única da Índia (UIDAI, no original em inglês), o número Aadhaar "é um número aleatório de 12 dígitos emitido pela UIDAI aos residentes da Índia após a conclusão do processo de verificação instituído pela autoridade. Qualquer pessoa residente na Índia, a despeito da idade e do gênero, pode se inscrever voluntariamente para obter um número Aadhaar. Aqueles que desejarem se inscrever devem fornecer algumas informações demográficas e biométricas obrigatórias durante o processo de inscrição, que é totalmente gratuito. Para obter o Aadhaar, uma pessoa precisa fazer a inscrição apenas uma vez e, após a deduplicação, somente um número será gerado, sendo isso possível por efeito do processo de deduplicação demográfica e biométrica". Os dados biométricos coletados consistem em dez impressões digitais, dois reconhecimentos de íris e uma fotografia facial, enquanto as informações demográficas incluem nome, data de nascimento (verificada) ou idade (declarada), gênero, endereço, número de celular (opcional) e e-mail (opcional). No caso de inscrição a partir do Introducer - Nome no Introducer e número Aadhaar do Introducer; no caso de inscrição a partir do chefe de família (Head of Family-based) - nome do chefe de família, grau de parentesco e número Aadhaar do chefe de família; no caso de inscrição de filho - número de inscrição (Enrolment ID - EID) ou número Aadhaar de qualquer um dos pais e documento de comprovação de relacionamento (Proof of Relationship - PoR). De acordo com o site, o Aadhaar consiste em "(...) uma ferramenta política estratégica que fomenta a inclusão social e econômica, reformas na prestação de serviços públicos, a gestão de orçamentos fiscais, o aumento da conveniência e a promoção de uma governança descomplicada e centrada em pessoas", o que facilita a inclusão das camadas mais desfavorecidas e vulneráveis da sociedade, constituindo um mecanismo de justiça distributiva e de igualdade. É um dos principais pilares do programa do governo indiano Digital India e "(...) já alcançou vários marcos, sendo de longe o maior sistema de identificação biométrica do mundo". a qual culminou em uma decisão histórica proferida pelo Supremo Tribunal da Índia que impôs limites ao uso da biometria pelo Estado, é um exemplo do tipo de ativismo liderado por Usha. Não é sem motivo que, em 2018, ela recebeu o prêmio Human Rights Heroes da Access Now por seu trabalho de advocacy sobre o Aadhaar.
Nesta entrevista,33. A conversa durou uma hora e trinta minutos e foi editada para uma maior clareza. Usha Ramanathan analisa a história da luta contra um sistema de identificação única na Índia, as lições aprendidas a partir do processo de mobilização política e jurídica e os limites das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal da Índia, algo que costuma não ser totalmente compreensível no Brasil e na América Latina. Usha também contesta a narrativa que alega que a proteção de dados pessoais oferece soluções adequadas aos problemas contemporâneos de violação de direitos com o uso de novas tecnologias pelo Estado e pelo setor privado.
Revista Sur • Comecemos com uma pergunta básica. O que é o projeto de Identificação Única na Índia e quais são os principais riscos envolvidos?
Usha Ramanathan • O projeto UID foi considerado revolucionário, mas nenhuma explicação foi dada sobre o seu real propósito. Ele foi lançado em 2009 e, naquela época, não havia lei ou estudo de viabilidade, apenas uma nota executiva dizendo que estavam elaborando algo chamado Autoridade de Identificação Única da Índia (UIDAI, no original em inglês), a qual criaria e seria a “dona” dessa base de dados que armazenaria nossas informações.
Resumidamente, a UID tenta fazer duas coisas: atribuir um número a cada indivíduo, que será identificado “unicamente” por meio desse número, e fincar a UID como instrumento necessário para validar todas as pessoas em outros documentos e bases de dados. A UID é a única identificação que não tem um propósito além de preencher informações de diferentes sistemas de identificação e bases de dados. Quando definiram quais seriam as atribuições da UIDAI, o projeto começou a coletar as coisas sigilosamente como um cadastro nacional da população, uma (des)aventura política que ainda não havia começado. Ao longo dos anos, as ambições do projeto continuaram mudando.
Há três palavras que têm sido centrais para entender as ambições do projeto: “único”, “onipresente” e “universal”. Único porque queriam que cada pessoa fosse identificada com um número único. No início, pensávamos que o caráter singular expresso pela palavra “único” referia-se à biometria, mas então começaram a surgir relatos de dentro da UIDAI revelando que não sabiam se a biometria realmente funcionaria no país. Estavam apenas implementando, como um experimento, em toda a população. Onipresente, que significa “estar em todos os lugares”, indica que o número único estaria em todas as bases de dados, como em bancos, operadoras de telefonia móvel e serviços de assistência a pessoas com deficiência. Se eu precisasse de gás de cozinha, eu não o conseguiria a menos que eu colocasse meu número UID na base de dados do fornecedor. A UID tinha o propósito de estar em todos os lugares, uma barreira a ser transpassada para ter acesso até às coisas mais simples. Logo, de uma promessa de inclusão, transmutou-se rapidamente para se tornar algo que excluiria quem se recusasse ou, por algum motivo, fosse incapaz de fazer parte disso.
Tomemos como exemplo a questão biométrica que acabei de mencionar. Descobrimos que nem ao menos haviam testado a biometria antes de se decidirem por adotá-la. Um relatório publicado em dezembro de 2009 expôs que, para se cadastrar na base de dados, apenas as impressões digitais poderiam não ser suficientes, já que de 2 a 5% das 25 mil pessoas que passaram por esse teste não tinham impressões digitais que “funcionassem”. Portanto, tiveram a ideia de usar a íris com a impressão digital, novamente sem a aplicação de teste.
Contudo, como o diretor do projeto disse em uma entrevista em 2011, pessoas como as que executam trabalhos braçais podem enfrentar dificuldade com sua biometria devido à natureza de seu trabalho. Naquela época, a probabilidade de exclusão já era conhecida, ou seja, reconheceram que isso poderia ser um problema, mas apenas nos disseram que dariam um jeito a tempo! Isso ainda não aconteceu. A ideia era fazer um experimento com pessoas, mas acho que incomodou todos nós.
As inscrições foram inicialmente projetadas em caráter voluntário, mas, em 2012, o governo começou a tornar a UID obrigatória. O presidente da UIDAI declarou que, antes de terminar seu mandato de cinco anos, metade da população teria de estar na base de dados. E, na Índia, isso é muita gente. São cerca de 650 milhões de pessoas. A menos que uma medida emergencial pudesse ser reivindicada, por qual motivo as pessoas se inscreveriam? Então, começaram a encontrar diferentes maneiras que justificassem a obrigatoriedade de as pessoas entrarem na base de dados. Com relação às pessoas pobres, a maneira mais fácil foi recusar a concessão de auxílios alimentícios, a menos que essas pessoas desfavorecidas estivessem inscritas em uma UID e vinculassem seu número ao sistema de auxílio. A mensagem nem foi disfarçada: “se você não se inscrever, você não recebe comida”. Quero dizer, como estamos encarando a pobreza?
Essa estratégia de tornar a UID obrigatória não funcionou com o restante da população, o qual não dependia do apoio do Estado para as suas necessidades básicas. Por volta de 2016 e 2017, entrou em vigor a obrigatoriedade de verificação dos números de telefone celular com o uso da UID, o que significava que, para não perderem suas linhas de telefone, todas as pessoas tinham de vincular seus números à base de dados. Tal requisito se estendeu às contas bancárias e aos pagamentos de impostos. Logo, uma promessa de inclusão começou rapidamente a se transformar em algo que desabilitaria serviços, congelaria contas e faria de você inadimplente caso não estivesse em conformidade.
Ainda em 2010, começaram a dizer que comida, roupas e um abrigo eram preocupações ultrapassadas e que o futuro se tratava de três números: a UID, a conta bancária e o celular. Um número não poderia mais comprovar a identidade; agora você precisaria de três. O telefone celular passou a ser o número do qual a UID depende para funcionar. Então, citando um exemplo, eu não tenho celular, o tempo passa e eu envelheço. À medida que você envelhece, você perde sua biometria, ela muda ou se torna indefinida. Se eu tiver de atualizar meu nome, gênero, idade, e-mail, número de celular ou qualquer outra informação na base de dados do sistema UID, pedem que eu verifique quem eu sou por meio da minha biometria. Daí minha biometria não funciona. Então me respondem: “OK, me fale o número do seu celular que está registrado na base de dados”. Só que eu não tenho celular. Então o assunto se encerra por aí. Quando minha biometria falha e não há telefone, eu deixo de existir. Chamamos isso de “morte civil”. Se não houver um número de celular, se a biometria não funcionar ou se houver um erro na base de dados que não pode ser corrigido ou atualizado, você deixa de existir. O sistema que diz que eliminará falsificações, fantasmas e duplicatas acaba, dessa forma, criando fantasmas.
Sur • Quais eram os problemas legais em torno do projeto de Identificação Única? Como ele foi legalmente contestado em juízo?
UR • O caso UID (por motivo político, não aceito o termo Aadhaar) foi levado a juízo quase quatro anos após o lançamento do projeto em 2009. Ele foi primeiramente apresentado ao Supremo Tribunal no fim de 2012 e, em 2013, mais pessoas começaram a se acercar do tribunal para contestar o projeto, focando em aspectos distintos. Desde o início, fundamentalmente a partir de 2009, muitos de nós começamos a nos preocupar porque ninguém respondia às perguntas que estávamos fazendo.
O projeto foi lançado sem o devido cuidado (ainda acreditamos que mesmo as pessoas que conduziam o projeto não tinham ciência de sua importância por completo). Ele meio que se desenrolou por conta própria e, mesmo assim, parecia oferecer ao Estado o potencial de reduzir os gastos com subsídios. As possibilidades de vigilância começaram a aflorar e, a partir dos interesses comerciais, descobriram que seria possível fazer uso das informações pessoais para gerar lucro.
Em setembro de 2013, o Supremo Tribunal proferiu um despacho proibindo a recusa de oferta de serviços motivada pela ausência de uma UID, ou seja, foi determinado que o governo dispensasse a obrigatoriedade da UID enquanto o processo ainda estivesse em tramitação. O despacho foi ignorado pela esquerda, pela direita e pelo centro, mas, por outro lado, conseguimos algo que serviria de base para a nossa luta.
Entretanto, em sua decisão final, o voto majoritário do tribunal basicamente disse que não há problema em violar o direito das pessoas pobres à privacidade. Não alegaram que o projeto não estava violando o direito, mas que não fazia mal negar o direito às pessoas pobres. Em outros casos, disse o tribunal, o governo deve demonstrar que tem um motivo legítimo para reduzir o direito e que está em conformidade com o princípio da proporcionalidade e, mesmo assim, a restrição do direito deve estar prevista em lei. A sentença de fato endossou a vinculação dos impostos à UID, mas invalidou a vinculação da UID às contas bancárias ou celulares por infringir o direito à privacidade. É bastante difícil não enxergar a distinção de classe na forma como a sentença por voto majoritário deu seu entendimento sobre os direitos. É uma encenação da Revolução dos Bichos de George Orwell: “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”.
Nossa avaliação da decisão desse processo é que ela foi baseada no pragmatismo. A maioria teve a percepção de que o Estado estava afirmando que precisava da UID para governar e, portanto, decidiu deixar o Estado fazer aquilo que quisesse, com a boa vontade de acreditar que o governo não permitiria a violação de nenhum outro direito. Contudo, obviamente, essa era uma crença sem fundamento, pois, tragicamente, em setembro de 2017, ocorreu a primeira morte registrada em razão de uma falha no sistema. O episódio refere-se à morte de uma criança de 11 anos após oito dias passando fome. Sua família estava cadastrada na base de dados da UID, mas não conseguiu vincular o número UID à base de dados de auxílio alimentício. Negociar a tecnologia estava além do que podiam fazer.
Foi um acontecimento horrível, e devo dizer que muitos de nós sentimos uma culpa imensa, pois sabíamos que algo assim poderia acontecer. Apenas não sabíamos como parar com isso. Quando o evento aconteceu, nos abalou muito. Era uma criança que conhecíamos. Não podíamos dizer quantas outras vidas estavam passando despercebidas. Na época do evento, o caso ainda estava em juízo. Então nós dissemos: “Temos que contar ao tribunal. É necessário que saibam disso. As reportagens nos jornais não são suficientes”.
Como consequência, várias pessoas começaram a prestar declarações juramentadas por todo o país. Por exemplo, quando soubemos da ocorrência de duas mortes, uma pessoa ativista foi a cada um desses lugares, coletou as informações sobre o que havia acontecido, registrou tudo em uma declaração juramentada e a apresentou perante o tribunal. Havia casos como o de pessoas com lepra que perderam a função dos dedos. Elas estavam perdendo o apoio do Estado porque a biometria não funcionava. Suas mãos estavam lesionadas, assim como sua visão. O que iriam fazer?
Uma série de “declarações juramentadas de exclusão” foi apresentada ao tribunal para que ele tomasse conhecimento do que estava acontecendo com a população mais vulnerável em decorrência do projeto UID. O tribunal reconheceu essas declarações, mas apenas para dizer que “pessoas ativistas, da academia e outras reuniram essas declarações e as enviaram até nós, mas o governo contesta isso e não estamos em posição de decidir sobre o tema. Logo, estamos deixando nas mãos do governo o papel de assegurar que isso não aconteça”. E é isso.
O tribunal poderia ter feito mais, já que há inúmeros precedentes. Ele poderia ter montado um comitê e solicitado que “fossem conferir a situação para contar a verdade sobre os acontecimentos”. Não fizeram isso. Entre outras coisas, o tribunal precisou proferir a sentença rapidamente porque o juiz presidente, que também atuava no julgamento, iria se aposentar. Logo, a sentença teve de ser proferida antes que isso acontecesse. Entretanto, quando você pergunta “por que ignoraram as evidências?”, seu palpite é tão certeiro quanto o meu.
Ao longo dos anos, descobrimos por conta própria maneiras de compreender as sentenças dos tribunais. Às vezes, a sentença reflete a percepção do tribunal sobre seu poder de fazer o que ele acredita que deva ser feito. Às vezes, ela se baseia em um princípio discernível. Ela também pode se basear no pragmatismo quando aparentam estar afirmando que “o Estado precisa disso. Os tempos mudaram. Devemos permitir (por exemplo) a aquisição de terras em casos assim e, embora vamos negociar um pouco aqui e ali, vamos permitir que o Estado continue fazendo o que precisa fazer”.
A sentença pode ainda ser fruto de preconceito, muitas vezes fundamentado no que acreditam saber sobre o outro. No caso UID, a sentença por voto majoritário renunciou ao direito das pessoas pobres à privacidade. O tribunal disse que os direitos sociais e econômicos são mais importantes para a dignidade da pessoa do que a privacidade. Fizeram uma escolha pelo povo. Não perguntaram a quem necessitava de apoio estatal o que significava o direito à privacidade. Apenas disseram que “estamos fazendo essa escolha porque sabemos”. Talvez saibam, talvez não.
Há certos fenômenos relacionados à pobreza que eu reconheci ao longo dos 30 a 40 anos em que tenho estudado esse campo. Um é a ideia de dispensabilidade. Vislumbramos isso em projetos de desenvolvimento como barragens, indústrias e mineração. Ouvimos frequentemente que algumas pessoas precisam fazer sacrifícios para o país progredir. Inicialmente, parecia que algumas pessoas seriam marginalizadas, mas, com o passar do tempo, vimos que “algumas” tornaram-se uma multidão, sendo que termos como “deslocamentos em massa” e “pessoas e comunidades afetadas pelo projeto” fazem parte do léxico de um projeto de desenvolvimento. Traços desse fenômeno são vistos no projeto UID.
O outro fenômeno é a invisibilidade. Na verdade, é a invisibilização, isto é, tornar-se invisível. É surpreendente como dados podem ser usados para fazer com que pessoas e problemas desapareçam tão facilmente quanto para torná-los visíveis. Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, o parlamento foi informado da inexistência de dados sobre quantas pessoas migrantes morreram a caminho de casa ou sobre quantas pessoas morreram devido à falta de oxigênio. Também não há dados sobre as maneiras como a UID foi utilizada de forma indevida ou sobre como a UID dificultou o acesso das pessoas àquilo que lhes era devido. Não se trata apenas do invisível, mas sim do que foi invisibilizado.
Em contrapartida, as pessoas que trabalham são obrigadas por lei a serem visíveis por meio do cadastro em uma base de dados para quem trabalha informalmente, o que representa mais de 90% da população economicamente ativa na Índia. Essas pessoas também devem incluir seus números de UID, telefone celular e conta bancária, além de manter as informações atualizadas sobre onde estão e o que estão fazendo. Em compensação, o Estado pode manter um programa de seguro que poderá ser estendido a essas pessoas e, se o Estado optar por dar qualquer assistência em tempos de dificuldade, apenas quem tiver cadastro na base de dados receberá o apoio estatal. Agora que quem trabalha começou a se cadastrar nessa base de dados, nos dizem que a “economia formal” cresceu. E o que é essa economia formal? Enquadram-se nessa categoria as trabalhadoras e trabalhadores informais que constam das bases de dados, bem como pessoas que fazem operações digitais por causa das dificuldades em lidar com dinheiro em espécie (como aconteceu em 2016 devido à “desmonetização”) e, mais recentemente por efeito da pandemia, com um regime de “imposto sobre bens e serviços”, sendo que as pessoas que não são capazes de manobrar o mundo digital são tiradas de cena.
O terceiro fenômeno é a redundância. Ainda hoje, você descobrirá que dirão que “uma vez que a inteligência artificial entrar em cena, 80% das pessoas ficarão sem emprego. Isso não pode ser evitado”. Não é a primeira vez na história que a tecnologia fez empregos desaparecerem, mas a escala agora é outra. A mudança sistêmica deve operar de forma a reduzir os problemas de pobreza e de incapacidade, não a agravá-los.
De qualquer forma, ao ler as sentenças do Supremo Tribunal no caso UID, você encontrará um voto de discordância que reconhece praticamente tudo o que foi levantado como questão pelas partes requerentes. Quando a fase de argumentação do processo começou, o juiz vencido parecia não ter percebido imediatamente o motivo de haver tanta oposição ao projeto. No entanto, acho que quando ele descobriu que o governo, na verdade, não tinha sequer respostas para as perguntas sendo feitas (por volta de abril de 2018), ele começou a enxergar que o projeto era muito diferente do que haviam sido induzidos a acreditar.
O voto majoritário deformou a linguagem da lei e fez uso do artefato de interpretação para imputar legalidade a uma lei que era amplamente reconhecida como inconstitucional. Esse é um dos aspectos. O outro aspecto é a questão da privacidade.
Temos aqui um princípio, um princípio constitucional, de que ninguém pode renunciar aos seus direitos fundamentais. Não posso dizer que “não quero meu direito à privacidade e estou renunciando a esse direito”. Você não o quer? Tudo bem. Talvez você nunca o exerça, mas você terá esse direito de qualquer forma. Ele é inalienável. Isso é o que a sentença de privacidade, proferida pelo Supremo Tribunal em agosto de 2017, também afirmou. Ela atesta que a privacidade é um direito fundamental que não pode ser renunciado nem retirado pelo Estado.
A sentença por voto majoritário no caso UID vai contra a sentença de privacidade.
A privacidade chegou ao centro das atenções quando, em julho de 2015, a Procuradoria Geral disse ao tribunal que estava tomando conhecimento no caso UID das alegações de que o povo o indiano não tem direito à privacidade. Não se trata apenas de um direito fundamental à privacidade. Disseram que não tinham qualquer direito à privacidade. O Estado poderia então, por lei, conceder e retirar o direito à privacidade. Para sustentar essa posição, a procuradoria trouxe dois casos, julgados em 1954 e 1962, que se referiam ao direito à privacidade no âmbito da vigilância.
A questão é que nossa leitura da Constituição mudou entre 1950, quando ela foi promulgada, e 1969. Antes de 1969, o Supremo Tribunal abordava os direitos fundamentais de forma bastante conservadora. Qualquer pessoa que reivindicasse um direito fundamental teria de mostrar em qual lugar da Constituição tal direito estava previsto. O restante era responsabilidade do Estado. Isso mudou em 1969, quando o entendimento dos direitos foi ampliado e o poder do Estado foi limitado pelos direitos da população. Os direitos deixaram de ser vistos isoladamente, e aqueles que não estavam estipulados na Constituição ainda poderiam ser encontrados na penumbra dos direitos. Esse era o caso do direito à privacidade.
Voltando ao passado recente, em 2011, o Estado não apenas estava começando a montar uma base de dados de toda a população, mas também buscava a aprovação de uma lei que estabelecesse uma base de dados de DNA humano. Nem todos no governo estavam confiantes em relação a esses projetos. Bastante preocupado, o Ministro da Ciência e da Tecnologia criou um comitê, chefiado pelo Juiz AP Shah e do qual eu era membra, para preparar um relatório sobre as implicações de privacidade desses projetos. Conforme trabalhávamos no relatório, percebíamos que a privacidade ainda era um direito tênue, no sentido de que ela, bambeando, havia percorrido seu caminho ao longo das décadas, caso a caso, mas ainda não havia adquirido uma base sólida na jurisprudência. E o termo “direito à privacidade” não está na nossa Constituição. Embora parecesse um direito relativamente frágil, ainda era um direito importante que vinha evoluindo ao longo de quatro décadas e que não era difícil de estabelecer. O relatório identificou nove princípios a serem adotados para que o direito à privacidade seja respeitado, os quais, em termos de dados, teriam que abranger quais são coletados, como eles são mantidos, como eles são transferidos, quão precisos eles devem ser e quando eles devem ser destruídos.
Houve algumas tentativas anteriores de formular uma lei sobre privacidade. Em 2005, por exemplo, foi previsto um projeto de lei sobre privacidade que, um tempo depois, não chegou a lugar algum. Assim, em 2015, quando a Procuradoria Geral disse ao tribunal que não existia um direito à privacidade, tivemos de batalhar arduamente pela conquista dos direitos, sem o respaldo do Poder Legislativo para a elaboração de leis. Quanto mais tempo demorasse para que a questão do direito à privacidade fosse resolvida, mais tempo o processo que contestava o projeto UID permaneceria sem solução. Uma vez que a sentença de 1954 – citada pela Procuradoria Geral como tendo negado o direito à privacidade – foi proferida por meio de uma decisão colegiada por oito magistrados, para que houvesse uma nova avaliação da questão, pelo menos nove juízes precisariam admitir e julgar o processo. No entanto, a pendência dos processos é endêmica. Só para se ter uma ideia da escala, o número atual de ações em andamento no Supremo Tribunal é de cerca de 70 mil. Não havia como dizer quanto demoraria até que nove juízes pudessem se liberar de outros casos para ter o devido tempo para tomar conhecimento dessa questão.
Em julho de 2017, uma audiência sobre o caso UID estava acontecendo no Supremo Tribunal, e o Estado estava mais uma vez alegando que o caso teria que aguardar a resolução da questão de privacidade antes que a contestação ao projeto UID pudesse ser retomada. Essa foi mais uma tentativa de deixar a contestação pendente. Inesperadamente, o presidente do Supremo Tribunal disse: “OK, então. Vou constituir um grupo colegiado composto por nove juízes amanhã e permitirei que o caso de privacidade seja admitido”.
O colegiado foi então constituído. A audiência durou seis dias e as advogadas e advogados mergulharam nela sem pausa. Naquela semana, eu estava pulando de escritório de advocacia em escritório de advocacia para receber as devidas instruções e foi uma experiência incrível. Advogadas e advogados seniores, juniores e todas as colaboradoras e colaboradores dos escritórios trabalhavam dia e noite. Eu acho que nem percebiam quando a noite caía ou quando o sol nascia no dia seguinte. E não apenas fizeram todo esse trabalho de graça; também gastaram os próprios recursos. Preparar-se para o processo custou um belo montante e as advogadas e advogados arcaram com essas despesas. Não havia outros recursos. Também tínhamos tempo. Recusaram trabalhos que lhes teriam pagado uma quantia generosa para que mantivessem ininterruptamente seu empenho. “Por que você está fazendo isso?”, perguntei a uma dessas pessoas. “Se perdermos o caso, não haverá Constituição”, afirmou.
Sur • Como você vê a ligação entre privacidade e proteção de dados na sociedade indiana?
UR • Eu participo da discussão sobre a proteção de dados como uma estrutura, mas faço isso com cautela porque, para mim, a proteção de dados não vai proteger as pessoas. É uma batalha que devemos lutar, mas não a vejo como uma ferramenta de defesa contra a invasão de privacidade. Esse é um tópico em que minha posição difere ligeiramente da de outras pessoas.
No contexto da tecnologia, dois axiomas foram evocados por quem quer pressionar a aprovação de projetos invasivos. Um é o de que “a privacidade está morta”. Ao dizer que a privacidade está morta, você não precisa se preocupar em respeitá-la ou protegê-la. Em segundo lugar, está o axioma de que o “consentimento não funciona”. Você sabe que dirão que o Google pede para você se cadastrar e, assim, você concede uma permissão para coletarem e utilizarem os dados gerados por você no mecanismo de pesquisa. No entanto, você sabe realmente em que você está se cadastrando? Quando o The Guardian pergunta “tudo bem se usarmos cookies?”, você realmente reflete sobre a sua escolha? Isto é o que o consentimento se tornou: algo totalmente dispensável para nós. Há ainda uma terceira abordagem, a qual alega que as normas sufocam a inovação. Então, deixemos a inovação acontecer e as normas podem girar em torno da inovação. O desejo é ter a liberdade de um Facebook ou de um Amazon, porém agora conhecemos as distorções que esse pensamento causou!
Apesar do relatório do comitê criado pelo juiz AP Shah em 2012, a resistência a uma lei de proteção de dados manteve a discussão fora da mesa até que o processo judicial envolvendo a privacidade tornou difícil ignorá-la. Em 2017, quando o colegiado de nove juízes do Supremo Tribunal começou a tomar conhecimento do processo, ficou logo evidente que declarariam a constitucionalidade do direito à privacidade. Foi quando a Procuradoria Geral disse ao tribunal que o governo estava montando um comitê, chefiado por Srikrishna, um juiz aposentado do Supremo Tribunal e amplamente respeitado, para trabalhar em uma lei de proteção de dados. Após isso, o governo pediu para deixar o caso nas mãos do parecer técnico do comitê de Srikrishna, claramente pedindo que o tribunal não se pronunciasse sobre a questão da privacidade. Felizmente, o tribunal acabou de registrar a criação do comitê e passou a deliberar sobre o veredicto!
Surpreendentemente, o comitê era composto por pessoas que manifestaram apoio ao projeto UID, incluindo aquelas que foram ao tribunal e argumentaram em defesa da UIDAI e contra o direito à privacidade. O julgamento sobre o direito à privacidade estava no caminho dessas pessoas e elas não podiam apenas rezar para que ele não acontecesse. Logo, elas tentaram inverter o conceito de privacidade. A importância do direito – disseram – não reside no que o direito significa para o seu titular, mas sim no fato de o direito ser, na verdade, um bem público que a sociedade como um todo usufrui.
Não é de se estranhar, portanto, que o título do relatório seja “Uma economia digital livre e justa“. As palavras “proteger a privacidade” aparecem mais adiante no título, após dois pontos invisíveis.
Tudo tem sido uma batalha. A digitalização foi apenas a primeira etapa desse tipo de ambição tecnológica. Esse procedimento consistia em conceder uma identificação única para cada pessoa nas bases de dados e, posteriormente, o poder coercitivo do Estado foi usado para tornar a identificação onipresente, forçando cada pessoa a se cadastrar. Os dados que a digitalização poderia produzir sobre as pessoas fizeram com que ela se tornasse o próximo recurso a ser explorado em prol da economia, dos lucros e do controle. Todavia, surpreendentemente, a UID criou uma série de outras identificações, todas estabelecidas com o sufixo “único”, tais como identificação de saúde, identificação da/o agricultora/agricultor, identificação da terra e assim por diante, incluindo até mesmo identificações para vacas!
A privacidade está sendo repetidamente massacrada. Fantoches são criados para que a privacidade não se torne um direito absoluto. Tal artifício é então usado para ignorar ou negar o direito sucessivamente.
A lei de proteção de dados está em fase de elaboração há alguns anos. Há pouca dúvida acerca da necessidade da existência de uma lei, mesmo eu não tendo certeza de que ela protegerá os direitos do indivíduo. Em sua redação atual, o projeto de lei isenta o Estado. Dessa maneira, a UIDAI também está pressionando para receber a mesma exceção. Há também uma pressão para incluir os chamados “dados não pessoais” (informações pessoais que foram anonimizadas ou que estão em domínio público) e para abrir caminhos para o uso de dados pessoais pelas atividades comerciais. As empresas de tecnologia estão usando o Estado para induzir as pessoas a ingressar em diversas bases de dados. Em troca, os provedores de tecnologia para projetos como a UID criam ferramentas para o Estado vigiar as pessoas. A lei de proteção de dados não impede nada disso. Então, o que adianta esse exercício de legislar?
Sur • Qual é o papel de instituições globais como o Banco Mundial nesse processo de implementação de programas de identificação digital?
UR • O Banco Mundial, especialmente com a Estônia e a Índia como os dois grandes experimentos, criou a ID4D. Em seguida, a Microsoft, a Fundação Rockefeller, a Accenture e a Gavi, The Vaccine Alliance – em cujo nome reside uma mensagem – criaram a ID2020 para construir uma identificação digital global.
Nandan Nilekani é um czar da tecnologia e foi o primeiro chefe da UIDAI. Em uma entrevista em 2018, ao ser questionado sobre como ele se sentia sobre o sistema que ele havia implantado ter causado a morte de uma criança de 11 anos (em setembro de 2017), a conversa tomou o seguinte rumo: Entrevistador: “A morte peculiar da criança, o roubo peculiar dos dados, isso está certo?” Nilekani: “Não, eu acho, afinal, você sabe, em qualquer sistema temos de minimizar aquilo que não seja a coisa certa a fazer e então ver de uma forma abrangente se isso oferece benefícios. Sobre isso, a resposta é irrefutavelmente sim.” Ele atua na ID4D.
A ID4D reuniu seu pessoal, mas não começou a funcionar até que Bill Gates lhe deu um aporte financeiro, e aí também reside uma história.
Existem muitos indícios das ambições fomentadas por esse projeto. Em uma reunião realizada no Banco Mundial em 2013, Nilekani falou sobre o projeto UID quando Jim Yong Kim era o chefe do Banco Mundial. Enquanto Nilekani explicava o projeto, Jim Yong Kim perguntou, com muita empolgação, e eu aqui parafraseio: “Então você está me dizendo que se houver alguém em Nairóbi que esteja em um caixa eletrônico, eu posso estar aqui em Washington, e talvez eu não saiba o que essa pessoa está fazendo naquele caixa eletrônico – eu não sei se ela está sacando ou depositando dinheiro ou qualquer outra coisa –, mas eu saberei que ela está naquele lugar e naquele momento?” Nilekani: “Sim”.
Em um encontro no Centro para o Desenvolvimento Global (CGD, no original em inglês) que aconteceu na mesma época, alguém perguntou ao Nilekani: “Você acha que existe potencial para termos um sistema global até o ano de 2030?” Ele respondeu: “Não existe nada em termos tecnológicos que restrinja a opção de termos toda a população do mundo” na rede.
Quanto ao Banco Mundial, no que diz respeito ao trabalho em questões de direito e de pobreza, já ficou claro há algum tempo que a preocupação do banco é reduzir o dinheiro gasto em subsídios. As imagens de quem precisa da ajuda do Estado extraindo mais do que lhe é de direito impulsionaram projetos como a UID, tornando a exclusão a marca do projeto. E o fato de a efusão de subsídios acontecer em outro lugar não preocupa o banco. O projeto UID foi enviado para os países em desenvolvimento, constituindo os projetos de identificação uma condição obrigatória para que o Banco Mundial aceite emprestar dinheiro a cada Estado.
Por que o Banco Mundial está tão interessado em bases de dados com populações inteiras? Qual é o interesse de Bill Gates quando ele oferece recursos ao ID4D? Por que um projeto que é profundamente falho em nosso país está sendo empurrado para todos os lugares? A criação de bases de dados está se tornando um produto que está pronto para ser comercializado. E não é apenas a UID. O aplicativo CoWIN é outro. Por sua vez, ele contém dados de vacinação e está alinhado com passaportes de vacina, outro impulsionamento para a criação de uma base de dados de toda a população mundial. É possível não os enxergar como projetos de vigilância e controle? Na Índia, um artigo recente explicou que o Banco Mundial vem financiando e “fornecendo assistência técnica” – que eufemismo! – para criar sistemas que ofereçam uma visão 360° de cada pessoa em tempo real, assim, saberão quem você é, onde você está, o que você está fazendo, com quem você mora – tudo.
Hoje em dia, existem casas com GPS, com dados sobre quantas pessoas lá vivem, o trabalho que exercem, nível de educação, estado civil, se recebem auxílio do governo… A única coisa que ainda falta é um menu. E se você adquirir um refrigerador inteligente, saberão o que você come e a quantidade de leite e de água que você bebe. Existe um documento, aprovado pelo departamento de defesa do Reino Unido e da Alemanha, em que estão realmente tendo uma discussão sobre o “aumento humano”. Aumento humano! Essa é uma pauta que está além da agenda de um Estado. Por outro lado, na agenda global, consta o aumento de seres humanos. Você já viu esse relatório? É impressionante. Dizem que “não podemos planejar o aumento a menos que saibamos mais sobre as pessoas”. Por exemplo, não se sabe o suficiente sobre o quanto e quão bem dormimos, quanto e o que bebemos, nem sobre o que, quanto, com que frequência e onde comemos. Precisam ajustar a fisiologia, a bioquímica e a psicologia. Esse é o tipo de detalhe pelo qual devem nos conhecer. O aumento humano significa aumentar a capacidade humana e ser “agente de ligação entre pessoas e máquinas”. É como se a história nunca tivesse acontecido.
Sur • Como você descreveria os riscos da “era da tecnologia”?
UR • Talvez eu comece dizendo que a tecnologia tem suas ambições. Acredita-se que a era da produção industrial já passou, que a era do petróleo acabou e que agora é a era da tecnologia. Ainda, existe a crença de que a tecnologia deveria ter a oportunidade de desenvolver-se sem restrições – sem regras, sem leis, uma vez que regras e direitos sufocam a inovação. Um preço precisa ser pago pela conveniência, e esse preço pode ser um direito básico. Estranhamente, no início deste século, a tecnologia estava criando artefatos que geraram muita empolgação. Havia o celular, o computador, o notebook. Havia o Facebook, o Twitter e uma série de outras plataformas que pareciam nos conectar às milhões de pessoas. A comunicação ganhou um novo significado. A internet era uma coisa incrível. A tecnologia ajudou, inclusive, durante a Primavera Árabe, pois as pessoas se uniram, organizaram a resistência…
Acho que a Primavera Árabe foi a única vez em que a tecnologia fez algo que não trouxe arrependimentos. Desde então, o celular passou a ter duas funções além de ser uma forma de manter contato: primeiro, uma ferramenta de vigilância; e segundo, toda investigação policial começa com a apreensão do celular, desenterrando pensamentos e ações. Como o Sr. Nilekani disse, quando questionado sobre a UID, o celular é ainda mais danoso!
Há ainda o caso das mídias sociais e da existência em uma bolha. Há também o ódio; e que escalada de ódio! A liberdade de expressão é de fato extremamente importante, entretanto, como essa liberdade se tornou complicada!
Então, o que tem sido feito em nosso benefício? Com velocidade notável, rapidamente, essas ambições tecnológicas levaram o entusiasmo ao chão, trazendo-nos ansiedade diante da tecnologia. Isso é o que eu vejo ao meu redor agora. A UID foi, para nós, um ponto de partida nesse declínio.
Esta é uma nova fase em que adentramos e foi a tecnologia que nos trouxe até aqui. Nenhuma outra coisa teria a capacidade de fazer isso acontecer. Agora, você pode espiar a vida de todas as pessoas. Em um minuto, sua conta bancária pode ser congelada, sua cota de auxílio alimentício pode desaparecer. Você pode ter a assistência médica negada porque seus dados biométricos não correspondem ao que está inserido na base de dados. E não se trata de meras hipóteses; tudo isso já aconteceu.
Acho que uma pergunta que deve ser feita ao Estado e a tecnologistas é se “é essa a imaginação que vocês querem impor ao mundo?”
O episódio de Pegasus levanta muitas questões. Uma empresa privada inventa maneiras de se infiltrar nos telefones, comercializando seus achados com governos do mundo todo mediante a alegação de que eles precisam de ferramentas para lidar com o terrorismo. Desde 2019, o Citizen Lab, mais tarde acompanhado pela Anistia Internacional, descobriu que, em muitos países, os telefones das pessoas foram infectados pelo spyware Pegasus. Alguns aparelhos eram da Índia. Em 2021, um gigante esforço investigativo descobriu que mais de 50 mil pessoas em todos os continentes tiveram seus telefones comprometidos, incluindo jornalistas, ativistas e até juízas/es. Foi quando algumas pessoas levaram o caso ao Supremo Tribunal. O tribunal foi muito frugal ao fazer perguntas ao governo. Contudo, dizem que o governo não está tratando a questão com seriedade, afirmou o tribunal. Dado que a empresa NSO afirma que apenas comercializa seus programas com governos escrutinados, alguns Estados podem usá-los para vigiar pessoas na Índia ou, ainda, os programas podem estar sendo objeto de uso para violar leis. Tudo o que o tribunal pediu ao Estado foi uma explicação sobre a posição governamental. Não indagaram sobre nada que afete a segurança nacional. Apenas abordaram as preocupações levantadas. Basicamente, a pergunta era: “O governo está reconhecendo o que aconteceu e estão fazendo algo a respeito?”. Não perguntaram o quê; apenas se. O governo não responderia algo como: “Qualquer coisa que dissermos pode comprometer a segurança nacional”, relataram. Por sorte, o tribunal não aceitou essa recusa total, nem os segredos que o governo alegava ter. Como resultado, foi criado um comitê para investigar tais alegações. Isso pode se tornar significativo, caso o tribunal venha a desenvolver uma lei de revisão judicial em questões de vigilância. Os usos da tecnologia e debates que acabei de citar são um sinal dos nossos tempos.
Ao longo das décadas, o primeiro estado colonial, e posteriormente estados independentes, reivindicou o domínio sobre todos os recursos – terra, água, minerais e florestas. Atualmente, parece que é a vez dos dados, incluindo dados pessoais como impressões digitais, reconhecimento de íris, informações faciais e DNA. O verniz de “interesse público” e “finalidade pública” foi retirado. E quando o governo diz que o recurso precisa ser entregue, em sua opinião, isso simplesmente tem de ser feito, sem argumentos ou autonomia.
Nosso principal argumento na contestação do projeto UID no Supremo Tribunal girou em torno da natureza da relação entre um Estado e seu povo. A constituição, argumentamos, não se trata do poder do Estado sobre o povo. Ela refere-se aos limites do poder do Estado sobre o povo. O poder do Estado deve ser entendido de forma a reconhecer esses limites. A tecnologia tem violado todas as normas e transgredido todas as fronteiras.
Tomemos o exemplo das operações digitais. Todos os esforços foram feitos para que houvesse “apenas operações digitais, sem dinheiro em espécie”. Como consequência, pegadas digitais são geradas, as quais, como o lobo de Chapeuzinho Vermelho rosnou, “são pra te ver melhor”. Se você for na contramão e não quiser se revelar, você ficará inelegível para a obtenção de crédito. Por que alguém deveria confiar em você se não sabe quem você é e nem sabe que você não será inadimplente, ou que você não é um indivíduo gastador, ou, Deus me perdoe, que você não é terrorista? É a política de controle por meio da política de suspeita.
É muito interessante o fato de que o governo desmonetizou 86% da moeda em 2016. Isso foi um absoluto desastre. À época, as pessoas precisaram depositar todo o seu dinheiro nos bancos, e, em seguida, o governo dizia quanto elas poderiam sacar de volta, pouco a pouco, porque o objetivo era surpreender todo mundo – inclusive as ministras e ministros do gabinete – e, por isso, ainda não havia sido impressa moeda suficiente para substituir o que estava sendo depositado. Houve muita animação com o cheiro de oportunidade. Todas as pessoas, incluindo Nilekani, que estavam dando entrevistas disseram que “este é o momento em que a ausência de dinheiro em espécie, de papel e da presença física se tornará o próximo grande feito”. Há muito interesse na ideia de ausência da presença física de um indivíduo, a qual não se tornaria mais necessária; apenas a presença virtual e os dados dela decorrentes. Dados sem pessoas, que sonho!
Eu não estou aqui pedindo às empresas que sejam boazinhas. No entanto, quando elas fazem parte do poder estatal, estamos narrando uma história muito diferente.
Sur • Quais são os principais movimentos de resistência a esse processo?
UR • Na Índia, a maior parte da conscientização sobre o que esse tipo de tecnologia está fazendo com a vida das pessoas veio a partir do momento em que o governo tornou a UID obrigatória para vários serviços. Tudo começou com o combustível de cozinha, depois os auxílios alimentícios, o programa de garantia do emprego rural, as bolsas de estudo, as pensões… E continua em expansão. Foram o movimento pelo direito à alimentação e as pessoas trabalhadoras protegidas pela garantia do emprego rural que primeiramente se conscientizaram de fato da possibilidade real de exclusão. A reação desses grupos tem sido persistente e vocalizada.
O movimento pelo direito à informação (RTI, no original em inglês) tem se oposto abertamente ao projeto UID. Há pouca dúvida de que a demanda por um estado transparente foi invertida pelo projeto. Em vez de o Estado ser transparente para o povo, o projeto UID trabalha para tornar o povo transparente para o Estado, bem como para os interesses corporativos. Há uma certa incongruência que pessoas como eu enxergam quando ativistas do RTI solicitam a disponibilização das bases de dados de auxílio alimentício e de garantia de emprego para que elas possam ser monitoradas a fim de assegurar o funcionamento do sistema. Isso muito se assemelha à sentença por voto majoritário no processo UID, na qual foi dito que pessoas beneficiárias de serviços de assistência social podem viver sem o direito à privacidade. Essa é uma discussão que está atualmente em curso.
Quando a Procuradoria Geral disse ao tribunal, em 2015, que a privacidade não é um direito das pessoas na Índia, houve uma onda de ativismo pela privacidade. Aquele foi um momento impressionante.
Então, em 2017, o governo tentou tornar obrigatória a vinculação do número UID a contas bancárias, celulares e registros fiscais. Consequentemente, a UID chegou às classes médias, que até o momento achavam que se tratava apenas de uma identificação para quem precisava de ajuda do governo com alimentação e trabalho e, por esse motivo, consideraram que a identificação tinha pouco a lhes oferecer. Imagino que, a partir disso, a ingenuidade desapareceu. A UID deixou de ser apenas uma identificação inocente. A ameaça de perder a conexão telefônica ou ter as contas bancárias congeladas, ou até mesmo cometer uma infração legal ao preencher declarações de imposto de renda, fez com que as pessoas, impotentes, entrassem em conformidade. Essa tática funcionou. A ideia de desobediência que Gandhi nos ensinou ao nos depararmos com uma política pública ou uma lei deu totalmente errado. A lição não foi aprendida. Somos uma população muito complacente e, por esse motivo, não houve qualquer expressão de anarquia.
Nos últimos anos, dois grandes movimentos se engajaram na arte da desobediência civil: o protesto contra a Lei de Emenda à Cidadania, por meio da qual o governo tentava segregar apenas pessoas muçulmanas retirando-lhes o direito à cidadania, e o movimento das agricultoras e agricultores. A emenda da cidadania explicitou o espectro da exclusão pela identidade e lançou uma sombra sobre o projeto UID. Ao longo do ano, durante o protesto da classe agricultora contra três leis rapidamente aprovadas no parlamento sem debate ou consulta, o governo liberou um documento sobre como uma nova tecnologia denominada AgriStack seria introduzida no setor agrícola. De acordo com o documento, as pessoas agricultoras receberiam uma identificação única, assim como cada pedaço de terra, e seriam criadas bases de dados para essas identificações, o que gerou uma reação.
A questão é que o efeito do que fizeram com a tecnologia nesse projeto se espalha para outros espaços, despertando assim muita insegurança. Se você perguntar “de onde vem a reação?”, ela vem desses movimentos e também de um grupo de jovens que estiveram na luta pela privacidade e despenderam muito tempo e energia no processo judicial. Quando o Facebook tentou introduzir o Free Basics na Índia, essa juventude batalhou por uma internet gratuita. Ainda, quando sinalizaram alguns problemas sobre a UID, foram provocados pelo pessoal do IndiaStack, um grupo de empreendedores sob a mentoria de Nilekani que assumiram a tarefa de promover o funcionamento da UID e que são frequentemente encontrados nos corredores de poder. Esse foi o ensinamento que o povo da IndiaStack transmitiu à juventude, uma lição que não foi esquecida!
Em um conclave organizado pela UIDAI entre 23 e 25 de novembro de 2021 para definir uma agenda para a próxima fase do projeto, ouviu-se dois membros fundadores da UIDAI – o antigo diretor do projeto e seu colega –, que estavam reunidos com o chefe de um laboratório de ideias do governo, reclamando que o projeto nunca foi destinado (elaborado) para fins governamentais. O ponto era que “qualquer coisa para impulsionar a economia digital não acontecerá se estiver aprisionada pelo governo”. Essas foram as suas palavras.