A importância da prática curatorial na perspectiva decolonial das mulheres negras.
Uma vez que práticas científicas de saber no campo das artes legitimam padrões de beleza, quem merece e não merece ser visto, assim como noções de verdadeiro e falso, é importante entender e questionar quais corpos e geografias a história da arte ocidental contempla e a quais ela impõe limites e categorias. Este texto visa abrir uma reflexão tendo em vista a necessidade de pensarmos outros parâmetros estéticos e éticos para os corpos racializados, vulneráveis e dissidentes; e, dessa maneira, propor o que estamos chamando, a partir de nossa experiência, uma prática curatorial na perspectiva das mulheres negras, aquela que leva em consideração outras perspectivas de conhecimento, performando seu discurso no campo estético mas também instaurando uma ética nas estruturas institucionais. Tendo a curadoria uma posição estratégica dentro do sistema da cultura e da arte, o texto traz como reflexão a experiência de três projetos curatoriais: a exposição Diálogos Ausentes (2016/2017), o programa AfroTranscendence (2015 -) e a curadoria de “Não me aguarde na retina” para o Valongo Festival Internacional da Imagem (2018).
Desse lugar de onde vejo,
O principal desafio de instaurar uma prática curatorial em perspectiva passa pela compreensão de que o que estamos fazendo é política.
Desse lugar de onde vejo,
A curadoria como uma atividade que mobiliza diversas narrativas para montar uma totalidade não estaria somente a serviço de um desenho plástico, mas, antes de tudo, na possibilidade de performar um discurso, em especial, dentro das estruturas institucionais, que acreditamos ser antes mesmo de uma audiência externa, o nosso público primeiro.
Feitas tais observações, o objetivo desse texto é provocar uma reflexão sobre o que venho chamando de “uma prática curatorial em perspectiva decolonial”, aquela que leva em consideração outras perspectivas de conhecimento, performando seu discurso no campo estético mas também instaurando uma ética nas estruturas institucionais.
Uma vez que práticas científicas de saber no campo das artes legitimam padrões de beleza, quem merece e não merece ser visto, assim como noções de verdadeiro e falso, é importante entender e questionar quais corpos e geografias a história da arte ocidental contempla e a quais ela impõe limites e categorias. Este texto visa abrir uma reflexão tendo em vista a necessidade de pensarmos outros parâmetros estéticos e éticos para os corpos racializados, vulneráveis e dissidentes; e, dessa maneira, propor o que estamos chamando, a partir da nossa experiência, de uma prática curatorial na perspectiva das mulheres negras.
O feminismo negro produzido na América Latina e nos Estados Unidos nos fornece fundamentos para discutir essas outras perspectivas de conhecimento. Djamila Ribeiro traz o pensamento da feminista Lélia Gonzalez na sua crítica à hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população em uma equação que nos mostra que quem possui o privilégio social, possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco.11. Djamila Ribeiro, O Que É Lugar de Fala? (Belo Horizonte: Letramento, 2017): 24.
No campo das artes, descolonizar o conhecimento é refutar os próprios padrões e valores, que, baseados nesse princípio hegemônico de uma universalidade ocidental, determinou as noções de beleza e, portanto, do que merece ser validado (regimes de verdade) e ser visto (regimes de visibilidade).
Os campos da estética e das imagens têm sido fundamentais e estruturantes para entendermos como o projeto moderno ocidental de conhecimento e governança se difundiu sobre a ideia de raça. Plasmados como discursos nas instituições que criam, organizam e disseminam a cultura visual, valores subalternizantes estão presentes nos objetos das artes ou das mídias. No plano da expressão e do conteúdo, isto confirma a superioridade da branquitude e o status do Negro como corpo racializado.
Essa crise de alteridade que se instaura por meio de uma política de estereótipos é própria de um discurso colonizador no qual, por meio de imagens, pinturas, jornais, propagandas, mapas e livros, dissemina todo um sistema de representação que, ao se cristalizar, forma a cartografia da diferença. São as construções visuais e os estudos da visualidade – enquanto processos comunicacionais – que constroem um jogo de discursos vereditórios que criam efeitos de verdade sobre um conjunto de crenças sobre o outro.
A partir desse entendimento, a produção da cultura e da arte está fundamentada em um conjunto de saberes atravessados por relações de poder e seus regimes de visibilidade e verdade. Assim, a prática em perspectiva traz como desafio combater a desvalorização, a negação e o ocultamento das contribuições de outros saberes e epistemologias ao mesmo tempo em que fomenta a produção de conhecimento artístico e cultural fundamentais para assegurar a dignidade humana. Dessa forma, tenta garantir a visibilidade, o direito à diferença e a liberdade de expressão e experimentação de artistas, pensadoras/es, ativistas, educadoras/es e curadoras/es que também trabalham em perspectiva interseccionando questões políticas contemporâneas urgentes como as pautas de gênero, classe, raça, entre outras; propõe, por fim, o combate ao racismo estrutural nas instituições de arte e cultura que notadamente criam sistemas de controle e restringem as oportunidades, precarizando as relações de trabalho aos corpos racializados e/ou dissidentes.
Tendo a curadoria uma posição estratégica dentro do sistema da cultura e da arte, é possível enxergar, a partir dela, como se organizam as relações de poder tanto no campo estético quanto a nível institucional. Considerando a generalizada ausência de mulheres negras assumindo essa posição, falamos de uma prática curatorial que, além de trazer um arcabouço de saberes contemporâneos e ancestrais próprios das culturas afro-diaspóricas, se dá na experiência vivida. O conhecimento é incorporado na própria vivência a partir do que as nossas presenças deflagram nesses espaços de poder. É isso que chamamos de “performar o discurso” e que se aproxima da própria definição do que é ser uma intelectual, da feminista afro-americana bell hooks: aquela que une pensamento e prática para entender a sua realidade concreta.
Assim, seria possível articular o conceito de lugar de fala e do feminist standpoint (ponto de vista feminista) de Djamila Ribeiro e Patricia Hill Collins, pois eles nos mostram que o lugar social que o indivíduo ocupa determina o seu acesso a determinados espaços:
Não poder acessar certos espaços acarreta em não se ter produções e epistemologias desses grupos nesses espaços; não poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação, política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos indivíduos desses grupos sejam catalogadas, ouvidas, inclusive, até de quem tem mais acesso à internet. O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.22. Ribeiro, O Que É Lugar de Fala?, 64.
A perspectiva leva em consideração o ponto de vista e o lugar de fala de quem sofre as violências e a invisibilidade, na vida e nas relações de trabalho, do campo da arte, espaços onde se disputam narrativas visuais e construções de imagens que nos definem no mundo.
É importante destacar que a curadoria na perspectiva decolonial das mulheres negras não hierarquiza opressões. Ampliando o olhar, coloca-se interseccionalmente, considerando outros lugares de fala. Destitui, desorganiza e transcende a autorização discursiva branca, masculina, cis, heteronormativa e falocêntrica, vislumbrando com suas ruínas a desestruturação do seu sistema de opressão, subalternização e poder normativamente singularizado na figura do homem branco curador. Como nos fala Ribeiro,
a teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala nos faz refutar uma visão universal de mulher e de negritude, e outras identidades, assim como faz com que homens brancos, que se pensam universais, se racializem, entendam o que significa ser branco como metáfora do poder, como nos ensina Kilomba. Com isso, pretende-se também refutar uma pretensa universalidade. Ao promover uma multiplicidade de vozes, o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal. Busca-se aqui, sobretudo, lutar para romper com o regime de autorização discursiva.33. Ibid., 70
Para exemplificar a prática curatorial a partir dessa perspectiva, trago como reflexão a experiência de três projetos. O primeiro deles aconteceu nos anos de 2016 e 2017 e chamou-se “Diálogos Ausentes”, um programa que aconteceu durante um ano e meio no Itaú Cultural. O programa surgiu depois de protestos que ocorreram nas redes sociais, em maio de 2015, com o advento do uso do blackface44. Maquiagem usada por não negros sendo um reconhecido e recorrente recurso na história da dramaturgia para representar, caracterizar e reforçar estereótipos racistas atribuídas aos negros. na peça de teatro A Mulher do Trem, inserida na programação do Itaú Cultural. O evento ganhou grande repercussão na internet e na mídia e acabou levando a instituição a rever sua estrutura racial em seus modos de produção, gerando a primeira ação realizada com foco na cultura afro-brasileira em 30 anos de instituição e a primeira curadoria realizada por duas mulheres negras.
O objetivo do Diálogos foi, por meio de mais de 18 ciclos de encontros, discutir a presença de negros e negras nas artes visuais, cinema, teatro, dança, literatura e música, encerrando suas atividades com a exposição “Diálogos Ausentes”, que aconteceu no final de 2016, no Itaú Cultural, em São Paulo, e em 2017, em uma nova montagem no Galpão Bela Maré, no Rio de Janeiro. Dessa exposição fui a curadora juntamente com a artista Rosana Paulino. Também no Itaú Cultural, desenvolvi um programa de seis meses com foco em conscientização racial que nomeei “A.gentes – Um programa de não-ficção artístico-científico para conscientização racial e descolonização do pensamento”, que aconteceu durante seis meses no Auditório do Ibirapuera e era formado por aproximadamente de 20 a 25 colaboradores de todos os setores da instituição.
Ainda como parte das ações do Diálogos, na ocasião, escrevi o texto “Diálogos Ausentes e a Curadoria como Ferramenta de Invisibilização das Práticas Artísticas Contemporâneas Afro-Brasileiras”55. É possível acessar este texto no link disponível em: Diane Lima, “Diálogos Ausentes e a Curadoria como Ferramenta de Invisibilização das Práticas Artísticas Contemporâneas Afro-Brasileiras.” Itaú Cultural, 2016, acesso em maio de 2016, http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2017/01/di%C3%A1logosausentes_dianelima-rev_02.pdf., no qual debatia como a curadoria estaria a serviço de um projeto colonizador, que vem determinando o contínuo apagamento da produção cultural afrodescendente a partir da sua marginalização e invisibilização, tendo como parâmetros valores cunhados no seio da produção de conhecimento intelectual das instituições.
Acredito que o Diálogos tenha sido um momento importante para a compreensão do que hoje chamo de uma prática curatorial em perspectiva decolonial, pois possibilitou experimentar soluções pensando estética e ética, além de ampliar a compreensão sobre a figura do curador.
O segundo projeto ao qual gostaria de compartilhar chama-se “AfroTranscendence” ou “AfroT”,66. Mais informações sobre o projeto no site: “AfroTranscendence,” NOBRASIL, 2017, acesso em 7 de dezembro de 2018, http://nobrasil.co/afrotranscendence. projeto que criei em 2015 e que começou como um programa de imersão em processos de criação para promover a cultura afro-brasileira contemporânea. Pioneiro por trazer a lei 10.639/2003 que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana para o domínio das artes, no “AfroT”, durante uma semana, 20 artistas de todo o Brasil participam de uma programação composta por palestras, laboratórios e vivências com diversos especialistas do Brasil e do mundo. Ao fim da experiência de pesquisa, o resultado foi apresentado para o público numa noite de encontros, celebração e fomento das epistemologias e práticas artísticas afrodiaspóricas por meio de ativações, exposições, apresentações, leituras e performances.
Hoje, o “AfroTranscendence” se concretiza também como um conceito e uma prática para criação de um espaço-tempo. O tempo como unidade ligada à revisão histórica, aos traumas coloniais e epistemicídios, à reunião de saberes e tecnologias, ao legado ancestral, à energia vital, ao espiritual, ao pensamento crítico e à produção de conhecimento. O espaço como os processos de criação e de aprendizado coletivo, de experimentação de metodologias, ritos e passagens para conexão com as memórias; das trocas, dos afetos e encruzilhadas; de expansão da consciência e dos exercícios de imaginação, produção de sentido, rupturas e projeção de futuro.
Dessa forma, compreendo então que o “AfroT” é uma experiência que vem possibilitando exercitar a pespectiva decolonial no campo da produção de conhecimento e educação, não como um projeto que discute tematicamente essas questões, mas, antes de tudo, as performa, possibilitando reunir os conhecimentos ancestrais e contemporâneos das culturas afro-diaspóricas de modo a estarem disponíveis como referência de criação. Assim, produz conhecimento ao mesmo tempo em que combate a desvalorização, a negação ou o ocultamento das contribuições de nossas epistemologias (epistemicídio) que não encontram lugar na história e no sistema da arte tal como conhecemos.
Por fim, gostaria de apresentar o projeto curatorial mais recente que realizei e que se chama “Não me aguarde na retina”, título do Valongo Festival Internacional da Imagem,77. Para saber mais sobre toda a programação, fotos, vídeos e textos curatoriais, acessar Valongo, Homepage, 2018, acesso em 7 de dezembro de 2018, https://valongo.com; ou VALONGO (@valongofestival), 2018, instagram/valongofestival. festival de arte contemporânea que chega, em 2019, na sua quarta edição e que aconteceu na zona portuária de Santos no último mês de outubro, em São Paulo. A razão de apresentar de forma mais completa esse projeto se dá pelo fato de que ele consegue reunir alguns dos principais desafios que traçamos quando pensamos uma curadoria em perspectiva decolonial, sendo para nós um bom estudo de caso e referência.
Santos, em especial o bairro Valongo, atualiza em suas paisagens distintas camadas temporais (humanas e não humanas) deflagrando uma complexa cartografia de contextos, situações e narrativas caras ao tempo presente: amnésias históricas, portos de passagem, insurreições diaspóricas, travessias, fluxos migratórios e povoamentos distintos. Essa complexidade do território determinou o contorno das pesquisas desenvolvidas. O primeiro passo foi elaborar um vocabulário que desse conta das nossas inquietações. Ao invés de palavras direcionadas ao ato de ocupar e revitalizar, por exemplo, passamos a co-habitar e dialogar com suas ruínas, monumentos, edifícios históricos, igrejas, museus, praças e ruas.
Em uma arquitetura composta por muitas camadas de tempo, as exposições do Valongo, assim como toda a programação, dialogavam tanto com a monumentalidade quanto com a precariedade que os espaços ofereciam. Feitas por mulheres, foram mais de 50 artistas e seis exposições que se dividiram pela zona portuária, com nove projetos comissionados e 31 projetos selecionados em três convocatórias públicas de diferentes naturezas. Apresentavam-se, por exemplo, como soluções a diagnósticos importantes que encontramos na etapa de pesquisa, como a necessidade de pensar um edital específico para fomentar a produção de artistas da baixada santista ou, do ponto de vista estético, pensar a relação entre performance, ficção e fotografia. Trazendo nomes importantes da cena internacional como a exposição individual do artista angolano Kiluanji Kia Henda e Emmanuelle Andrianjafy (Madagascar), a edição contou ainda com o seu primeiro programa de residência, trazendo cinco artistas convidados, além de ativações que antecederam o evento. Performances, mostras de filmes, noites de festas com cantores como Xênia França e Rico Dalasam, lançamento de livros e mais de 20 atividades educativas entre oficinas, seminários e mesas de debate, nos ajudam a entender o tamanho do festival.
Merece ainda destaque a exposição “ZUMVI – A gente se ascende é nos outros”, primeira exposição fora da Bahia do Zumvi, acervo de imagens fotográficas criado em 1980 que narra mais de 30 anos de uma importante trajetória da história das lutas de resistência dos movimentos negros da Bahia e do Brasil.
Então, além de ver com outros olhos, perspectivas e pontos de vista, “Não me aguarde na retina” também convidou o público a ver com todos os sentidos, trazendo um conceito expandido sobre o entendimento da cultura visual, que não mais se circunscrevia apenas na fotografia (tradição do Valongo), mas se expandia para outras áreas de expressão e linguagens artísticas como as experiências sonoras, o cinema, o audiovisual, as artes visuais, do corpo, da cena e da palavra.
Não há como pensar as políticas de exibição do outro desconsiderando que a normatização da prática museológica ou de uma ética expositiva está diretamente condicionada à produção da diferença. Este fato está relacionado à dominação ultramarina, à expansão da etnografia como disciplina, ao colecionismo e, consequentemente, a uma ideia de universalidade elaborada como ciência colonial no seio da modernidade.
Se considerarmos que esta é uma prática curatorial em perspectiva, podemos nos lançar ao entendimento que parte dos estudos da decolonialidade não se centram na busca pelo fim da colonialidade, mas pelo fim do ponto de vista a partir do qual o colonialismo faz sentido, motivo pelo qual nos resguardar ao direito de recusar aquilo que nos é dado ou o que é esperado sobre nós nos nutre aqui como uma potente estratégia de vida.
Quando o Valongo nos lança a pergunta “O que pode um festival?,” devolvemos com a questão sobre o que de fato ele poderia ser ao ter o seu conjunto de relações nas instâncias públicas, pessoais e privadas conduzidas em perspectiva. Incorporando boa parte das negociações e interações ao longo do processo, nossas dúvidas e observações tornavam-se a própria coisa e o efeito no mundo, seu diagnóstico. Como veremos, a prática empírica considerava as ausências e os efeitos da própria presença como detonadoras de um saber a partir de uma experiência vivida e foram esses os alicerces que sustentaram boa parte das diretrizes e escolhas tantos expositivas quanto educativas do festival.
Foi nessa pequena porção de mundo que, mais uma vez, para criar foi preciso destruir. Sendo uma parte representativa das dificuldades encontradas em nosso tecido social, as condições de criação partem do momento em que uma latente crise epistemológica encontra-se com os traumas que as relações de poder impregnadas na figura da curadoria se manifestam. Quando é preciso desmantelar as diferenças entre hierarquia e exercício de poder, a perspectiva revela a precariedade do sistema de trabalho, o desmanche como condição estruturante e a corrupção como prática de dominação para instauração da monocultura no próprio sistema de produção da cultura nacional.
Fundamental foi então entender se conseguiríamos produzir ferramentas internas de diálogo e escuta, e se teríamos aptidão para desenvolver uma camada sensível de leitura, onde ao menos o nosso próprio corpo coletivo pudesse enxergar como se manifestariam nas escolhas diárias essas camadas invisíveis.
É nesse sentido que acreditamos que o sucesso de “Não me aguarde na retina”, antes mesmo da crítica e da interação com o público, se fez nas suas ruínas. Na capacidade de chegar até o fim com vitalidade e ser um dispositivo para discutir as relações. Na capacidade de resiliência e demolição que a ideia de festival possibilitou, entendendo que essa era a nossa principal via para materializar a sua criação.
Assim, por mais que estejamos abertas a possibilidades infinitas de abordagem, discurso e figurativização, o objeto não se desloca portanto da nossa própria condição como sujeito: é como ele te atravessa, como a sua posição no mundo cria um outro ponto de vista sobre ele e, principalmente, como ele é capaz ainda de alterar o nosso campo de desejo.
Celebrando o próprio significado de um festival, uma outra questão que nos guiou ao longo do processo de criação de “Não me aguarde na retina” foi o questionamento sobre o que podem as imagens numa política dos encontros, entre o que somos e o que nos tornamos quando nos permitimos ser afetadas pela intrínseca capacidade estésica99. Segundo a semioticista Ana Claudia de Oliveira, a estesia “é a condição de sentir as qualidades sensíveis emanadas do que existe e que exala a sua configuração para essa ser capturada, sentida e processada fazendo sentido para o outro”, em Ana Claudia de Oliveira, “Estesia e Experiência do Sentido,” CASA: Cadernos de Semiótica Aplicada 8, no. 2 (2010): 2. das experiências estéticas. Questões que se referem à função política das imagens como também e, principalmente, ao entendimento da sua presença sensível como uma condição capaz de nos contagiar, de nos co-mover e de nos fazer sentir o sentir do outro. Sendo assim, “Não me aguarde na retina” discutia as estratégias oferecidas pelas imagens para alargar a nossa capacidade de ver e, portanto, de sentir.
É pelo ato de se enunciar, gozando da própria faculdade humana de dar sentido ao mundo, que podemos nos expressar por meio de sistemas de representação que geram pertencimento, produzem conhecimento e instauram relações de autonomia e poder. Trata-se de um campo de forças onde disputamos a possibilidade de criar discursos sobre o eu, o nós e o mundo. A importância que as práticas artísticas oferecem a um festival da imagem nos indica ser a capacidade de instauração de descontínuos e fraturas no nosso automatizado cotidiano.
Contemporâneos de um processo de fragmentação em escala planetária, onde avistamos a falência da política, o ápice do desmantelamento do corpo social, a expansão dos regimes totalitários nas Américas e de uma ausência da experiência do comum, os jogos ópticos do mundo das imagens são o lugar onde uma alternância entre criação e destruição se colocam como potentes estratégias de resistência e também de um cenário de contradições.
Em meio à crise das lógicas de representação, não podemos nos recusar a ver que, ao mesmo tempo em que se ampliam as presenças de corpos políticos historicamente subalternizados com suas perspectivas, lugares de fala e modos de ser e estar no mundo, impõem-se, na mesma velocidade, sistemas de controle e dominação com suas atualizações transnacionais.
O que nos coube como equipe curatorial foi revelar as obscenidades, os simulacros engessados e os processos de extrema violação dos estereótipos; tornar visível a dimensão somática que tais violências produzem e que, como veremos, não se encerra exclusivamente no lugar da denúncia, mas amplamente na sua anunciação.
Se o lugar da denúncia e a relação entre arte versus política têm sido fundamentais para as mobilizações sociais, quais os efeitos que esses mesmos procedimentos têm trazido tendo em vista os sistemas de captura neoliberais pautados em torno de uma política identitária? Considerando que no Brasil as questões em torno da decolonialidade são ainda protagonizadas pela lógica da representatividade, seja nas artes visuais, no teatro, na dança ou na fotografia documental, como romper com as estruturas de racialização que encerram e objetificam as nossas práticas e singularidades como indivíduos? Quais são os efeitos desses processos e o que ambos nos ajudam a entender sobre a proposição por trás de “Não me aguarde na retina” e da prática curatorial em perspectiva?
Fazendo uma breve incursão na historiografia, podemos ver que ao longo do tempo, através da memória do corpo e dos diferentes usos da linguagem, as práticas artísticas se encontram nas encruzilhadas da resistência. Ainda que a iconografia e a história nacional sejam porta-vozes das mais diversas mitologias e apagamentos da presença do negro brasileiro – como, por exemplo, o mito da democracia racial e a teoria do embranquecimento – foi à custa de muitos levantes, quilombagens e rebeliões que também se pautou a sua história. Citando Gates, Leda Maria Martins enfatiza que os africanos que cruzaram o Mar Oceano não viajaram e sofreram sós. Para ela,
[…] com os nossos ancestrais vieram as suas divindades, seus modos singulares e diversos de visão de mundo, sua alteridade linguística, artística, étnica, técnica, religiosa, cultural, suas diferentes formas de organização social e de simbolização do real.1111. Leda Maria Martins, Afrografias da Memória: O Reinado do Rosário do Jatobá (São Paulo: Perspectiva, 1997): 26.
Trazendo como forma de expressão central o próprio corpo, foi através da interação e de um fazer-sentir que os negros criaram estratégias possíveis de modos de gestão do si, manipulando as precárias estruturas de sua arquitetura cativa para afirmar a sua identidade e a sua condição de sujeito. Esses arquivos e repertórios da memória oral, que se desdobram nas infinitas gerações,
[…] são microssistemas que vazam, fissuram, reorganizam, africana e agrafamente, o tecido cultural e simbólico brasileiro, mantendo ativas as possibilidades de outras formas de veridicção e percepção do real que dialogam, nem sempre amistosamente, com as formas e modelos de pensamento privilegiados pelo Ocidente.1212. Ibid., 35.
Foi uma relação com o tempo e a ancestralidade que permitiu, na escravidão, não somente a sobrevivência física do negro, mas também que se mantivesse vivo o aparato filosófico e identitário que forma a própria personalidade africana.
Trazendo Exu como um princípio dinâmico de individualização e, simultaneamente, de comunicação e interpretação para metaforizar a própria encruzilhada semiótica das culturas negras nas Américas, Leda Maria Martins nos ajuda a compreender os usos das linguagens e os seus efeitos no mundo contemporâneo.
A autora pontua que a função marcadamente dialógica das artes negras traz como consequência “elaborações de formações discursivas e comportamentais de dupla referência que estabelecem, em diferentes níveis, um diálogo intertextual e intercultural”1414. Ibid.. Nessa cultura das aparências, que se realiza em duas dimensões fundamentais – o segredo e a luta –, irá se forjar, nas diversas manifestações, um ethos africano que vai jogar com as ambiguidades do sistema, agindo nos interstícios da coerência ideológica.
Diante da sistemática opressão e da condição cativa, negociava-se os sopros de vida para agir às escondidas e organizar formas de comunicação que, codificadas nas manifestações, estavam a serviço de resistir à violência, expressar sentimentos e criar táticas de levante e rebelião. Assim se fez o samba, a capoeira, os reinados, os congados, os batuques, os sistemas mítico-religiosos, as danças, os folguedos, as brincadeiras e todo um rico sistema cultural que continua a se atualizar de diversas formas no contemporâneo.
Também no século XIX e XX, diversos fenômenos integram uma importante fase de construção e internacionalização dos movimentos negros, já que, por meio do ato consciente de enunciação, passa a reverberar um novo efeito de sentido que não mais o da mocambagem em uma interação comunicacional internegros, mas sim o do direito à fala, da denúncia e da exposição das condições sociopolíticas da época, como é possível constatar na afirmação do sociólogo negro W.E.B Du Bois, sobre a relação entre arte e propaganda:
Toda Arte é propaganda e sempre deve ser, apesar do lamento dos puristas. […] Qualquer arte que eu tenha para escrever sempre foi usada para propaganda, para ganhar o direito do povo negro de amar e desfrutar. Eu não me preocupo com qualquer arte que não seja usada para propaganda.1515. William Edward Burghardt Du Bois, “Criteria of Negro Art,” The Crisis, no. 32 (1926): 324
Nessas correntes marítimas, movimentos como o pan-africanismo de Du Bois e Garvey, o “Harlem Renaissance” (1920), o “The New Negro Moviment” (1933) nos Estados Unidos, e o projeto da negritude surrealista de Césaire, Damas e Senghor (anos 30) são basilares para a compreensão do que entendemos sobre uma perspectiva instrumental da arte e de como esta se transformou, sobretudo entre as novas gerações numa importante estratégia de expressão e comunicação. Se hoje partimos de uma consciência do quão importante são e foram tais instrumentos de afirmação, é possível observar também que muitas dessas reiterações, além de nos retirar a liberdade de criação, nos encerram e nos enclausuram nas entranhas da racialidade. Desta maneira, impedem o próprio alargamento das nossas experiências subjetivas e o fortalecimento das nossas especificidades e singularidades como indivíduos também diversos ainda que sob a égide da coletividade e do “nós”.
Assim, a crítica que a curadoria em perspectiva nos abre não é da negação de tais procedimentos. O que ela traz, no entanto, é a possibilidade de pensar novas formas de autodeterminação que deem conta de expressar a própria complexidade dos nossos corpos, interseccionalizando as pautas e levando em consideração os nossos próprios desejos para além das leis da racialidade.
Com tais questões em vista, o que nos brilhou os olhos em “Não me aguarde na retina” foi o exercício da linguagem e a busca por compreender as densidades das relações. Corpos em perspectiva que no auge da reinvenção de determinadas práticas de autodeterminação anunciam um mundo onde não mais estão na posição de interdependência com o outro, mas fazem a sua própria dobra, exercendo as suas singularidades antitemáticas, sem perder de vista, por exemplo, décadas de denúncias protagonizadas por outros tantos corpos e ativismos sociais.
Os movimentos que se alternaram entre o anúncio e a denúncia, singularizam ainda um desejo de performar a própria perspectiva de quem enuncia o festival. No Valongo 2018, não havia temas, categorias ou subdivisões. Como um organismo vivo, pulsou como uma grande manifestação reunindo efeitos, diagnósticos, observações, perguntas e referências. Questões surgiram a partir do alargamento das perspectivas e dos efeitos dessas presenças quando imersas nas práticas curatoriais, na gestão cultural e na produção de conhecimento.
Tela responsável pela formação das imagens e pelo sentido da visão, é na retina onde projetamos o que vemos e, através da percepção visual e de outros sentidos, temos a habilidade de processar, entender e interpretar o nosso entorno por meio dos estímulos cognitivos que recebemos.
Assim, é como um impulso elétrico, uma declaração e um posicionamento que o “Não me aguarde na retina” nos convidou a ampliarmos o nosso campo de visão, captar pressões e vibrações, frequentar frequências, sentir essências e nos destituir daquilo que conhecemos como bom e mau gosto.
[aqui] o Negro diz de si mesmo que é aquilo que não foi apreendido; aquele que não está onde se diz estar, e muito menos onde o procuramos, mas antes no lugar onde não é pensando.1616. Achille Mbembe, Crítica da Razão Negra (Lisboa: Antígona, 2014): 59.