Vozes

De Winnie Mandela à Baixada Fluminense11. Meus agradecimentos à Revista Sur Conectas pela bolsa que me foi concedida como forma de incentivo e suporte para o desenvolvimento deste artigo. Em especial, meus agradecimentos se estendem a: Sueli Carneiro, Thiago Amparo e Maryuri Grisales, pela leitura atenciosa ao artigo e as sugestões para melhorá-lo em todos os sentidos. Ao Observatório de Favelas, na figura de Raquel Willadino e João Felipe Brito, que me instigaram a conhecer a fundo a metodologia dos tribunais populares.

Aline Maia Nascimento

Tribunais populares como estratégia de reagir à morte e confeccionar mundos habitáveis

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RESUMO

Neste artigo, chamo atenção para a experiência de construção do Tribunal Popular Winnie Mandela e o Tribunal Popular da Baixada Fluminense como espaços organizados e pensados por diversos atores sociais (familiares de vítimas, movimentos populares, movimentos sociais e organizações de direitos humanos) interessados em produzir metodologias de incidência política sobre as violações de direitos e a violência letal perpetrada contra pessoas negras. Por outro lado, também, me interessa analisa-los como portadores de experiências de miudezas da vida cotidiana: dos pequenos infortúnios, pequenas desgraças que, somadas às condições de precariedade, assolam as formas de viver e fazer o mundo para pessoas negras. Trata-se de entender a necropolítica tanto pela via dos grandes eventos marcados por processos brutais e disruptivos de aniquilação negra, quanto por miudezas tidas como aparentemente corriqueiras – pequenas perdas, eventuais dificuldades travadas em momentos de busca por acesso a determinados direitos.

Palavras-Chave

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O presente artigo é resultado de anos de investigações e reflexões sobre a violência a partir de um recorde racial. Como pesquisadora interessada em compreender a violência letal contra juventude negra pelo seu viés de anti-negritude22. ParaVargas, a anti-negritude é um elemento fundador de todos os Estados modernos. O que resulta dizer que a criação destes Estados se deu sob o “não-ser”, a “não-existência” de negros enquanto cidadãos de pleno direito. Este sistema se (re)arranja e se (re)configura com o passar dos anos por intermédio de uma perspectiva multifacetada: o racismo, o racismo institucional, a injuria racial e etc; sendo estas, todas, técnicas utilizadas por uma estrutura anti-negra. João H. Vargas, Never Meant to Survive: Genocide and Utopias in Black Diaspora Communities (Maryland: The Rowman & Littlefield Publishing Group, 2010).e os efeitos que ela causa à comunidade negra, me vi – por muitas vezes – desafiada a entender como as ausências deixadas pela morte prematura de jovens negros (re)criavam, entre os familiares e amigos das vítimas, densas e complexas redes de autocuidado, resistência e recuperação coletiva. Tal desafio produziu intimamente múltiplos aprendizados: me instigou a revisitar abordagens teóricas-analíticas sobre os mecanismos de necrogovernança33. Nos termos de Vianna, a necrogovernança é um conjunto de práticas de gestão de mortes: “tecidas nas rotinas policiais, judiciárias, hospitalares e escolares capaz de deslocar morbidamente a conhecida fórmula foucaultiana do ‘fazer viver/deixar morrer’ para um ‘fazer morrer alguns’ e ‘deixar morrer outros (e outras) tanto(a)s’”. Adriana Vianna, “As Mães, Seus Mortos e Nossas Vidas,” Revista Cult, no. 232 (mar. 2018): 37. presentes na gestão de corpos, vidas e populações; me conectou com as ações de resiliência dos familiares das vítimas, ao mesmo tempo, que me conduziu a refletir sobre minhas próprias experiências44. Autores como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Franz Fanon e outros se valeram do potencial de incorporação de suas experiências pessoais como base para formulações de valiosas análises teórico-conceituais. Trata-se do que posteriormente Strathern ponderou como “a reflexividade necessária para o exercício de uma auto-antropologia: aquela capaz de nos tornar mais conscientes, tanto de nós mesmos “convertidos em objeto de estudo, ao aprendermos sobre nossa própria sociedade, como de nós mesmos realizando o estudo, ao nos tornarmos sensíveis aos métodos e ferramentas de análise”. Ann Marlyn Strathern, O Efeito Etnográfico e Outros Ensaios (São Paulo: Cosac Naify, 2014): 135.como pesquisadora e mulher negra – cuja existência no mundo social está atravessada por complexas redes negras de autocuidado empenhadas cotidianamente em reagir à morte, gerir relações e confeccionar mundos habitáveis.

Neste artigo, chamo atenção para a experiência de construção do Tribunal Popular55. Segundo a Associação Juízes para Democracia (AJD) o tribunal popular é uma metodologia “que reúne entidades e pessoas preocupadas com a efetividade dos direitos fundamentais da pessoa humana, e que julga as ações e omissões do Estado Brasileiro, desde a perspectiva da sociedade civil”. Ver: “Tribunal Popular Fiscaliza o Poder Público,” AJD, 26 de julho de 2018, acesso em 19 de novembro de 2018, http://ajd.org.br/tribunal-popular-fiscaliza-o-poder-publico/. Winnie Mandela e o Tribunal Popular da Baixada Fluminense como espaços organizados e pensados por diversos atores sociais (familiares de vítimas, movimentos populares, movimentos sociais e organizações de direitos humanos) interessados em produzir metodologias de incidência política sobre as violações de direitos e a violência letal perpetrada contra pessoas negras. Por outro lado, também, me interessa analisá-los como portadores de experiências de miudezas da vida cotidiana: dos pequenos infortúnios, pequenas desgraças que, somadas às condições de precariedade, assolam as formas de viver e fazer o mundo para pessoas negras. Trata-se de entender a necropolítica66. O conceito de necropolítica é cunhado por Mbembe como forma de preencher as lacunas deixadas pela noção de biopolíticafoucaultiana. Para Mbembe, a necropolítica se caracteriza por técnicas inteligentes e avançadaspara produção de mortes. São “as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, na quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes oferecem o status de mortos-vivos”. Achille Mbembe, “Necropolítica,” Arte & Ensaios: Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, no. 32 (dez. 2016):149. tanto pela via dos grandes eventos marcados por processos brutais e disruptivos de aniquilação negra, quanto por miudezas tidas como aparentemente corriqueiras – pequenas perdas, eventuais dificuldades travadas em momentos de busca por acesso a determinados direitos.

O tribunal popular não tem em si validade jurídica, pois não faz parte do ordenamento jurídico oficial. Em outras palavras, não é constituído dos poderes de Estado para garantir aplicação do que nele for deliberado. Neste sentido, muitos questionamentos sobre o tribunal popular enquanto metodologia de incidência política são acionados: para que elaborar um tribunal que não terá validade jurídica? Qual é a necessidade de expor as dores de familiares das vítimas se não há validez jurídica? Seria o tribunal apenas um teatro? Tais questões são com frequência endereçadas a mim.77. É oportuno ressaltar que antes mesmo da ideia de escrever este artigo, já participava enquanto militante das reuniões de organização do Tribunal Popular da Baixada Fluminense. Logo, este texto reflete meu duplo lugar de atuação: o de ativista e parceira do “Fórum Grita Baixada” e da “Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense”, como também de antropóloga, alguém mobilizada intelectualmente para questões raciais e da violência letal no contexto do Rio de Janeiro. Minha proposta não é responder todas essas perguntas. O que me interessa neste exercício analítico é o que, nos termos de Viveiros de Castro,88. Eduardo Viveiros de Castros, “O Nativo Relativo,” Mana 8, no. 1 (abr. 2002). defendeu-se como “levar o pensamento nativo a sério”. Na prática, isto implica o exercício de não sobrepor a esfera jurídica sobre mundana (ou seu oposto), mas aprender com as pessoas envolvidas no tribunal popular os sentidos que atribuem a sua realização.

02

O Tribunal Winnie Mandela: “Nossos Passos Vêm de Longe”

A prática de realização de tribunais populares é recorrente em todo o país e sua realização responde a dinâmicas e motivos muito específicos e locais. Entre alguns tribunais populares anteriormente realizados no Brasil, podemos citar: o Tribunal Tiradentes,99. Sobre Tribunal Tiradentes ver: Homero de Oliveira Costa, “O Tribunal Tiradentes e o Julgamento do Congresso Nacional.” Nossa Ciência, 10 de outubro de 2017, acesso em 12 de outubro de 2018, https://nossaciencia.com.br/artigos/o-tribunal-tiradentes-e-o-julgamento-do-congresso-nacional/. (re)editado desde a década de 1980, envolvendo questões de segurança nacional e anistia; o Tribunal Popular da 110 norte, organizado em 1987 sobre direito à moradia; o Tribunal Popular O Estado Brasileiro no Banco dos Réus, ocorrido em 2008, sobre crimes contra juventude negra; o Tribunal Popular Hidrelétricas do Madeira no banco dos réus,1010. Mais informações ver: “Veredito do I Tribunal Popular “Hidrelétricas do Madeira no Banco dos Réus,” Energia para Vida, 20 de novembro de 2017, acesso em 12 de outubro de 2018, http://energiaparavida.org/veredito-do-i-tribunal-popular-hidreletricas-do-madeira-no-banco-dos-reus/. realizado em 2017, organizada por movimentos sociais ligados ao campo no Brasil e na Bolívia; e mais recentemente o Tribunal Popular das Mulheres – Marielle Franco,1111. Mais informações ver: “Tribunal Popular das Mulheres – Marielle Franco – Fama 2018,” Articulação de Mulheres, 22 de março de 2018, acesso em 12 de outubro de 2018, http://www.articulacaodemulheres.org.br/2018/03/22/tribunal-popular-das-mulheres-marielle-franco-fama-2018/.ocorrido em maio de 2018, julgando entre outras questões a cultura machista.

No entanto, por se tratarem de experiências populares, dificilmente encontramos registros escritos completos sobre eles, sendo – muitas vezes – só possível acessá-los e compreender toda sua magnitude via oralidade.1212. Welligton Pantaleao da Silva, “Dualidade no Poder: o Tribunal Popular e a Luta por Direitos Humanos no Jardim Ângela,” dissertação de mestrado (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília, 2017): 83. Por este motivo, convido ao leitor a acompanhar os relatos orais que Schuma Schumaher1313. Entrevista para este artigo com Schuma Schumaher, realizada na REDEH no dia 26 de outubro de 2018. me contou, os quais retomam aspectos importantes sobre o “Tribunal Winnie Mandela” (1988). Schuma é pedagoga, militante feminista brasileira e coordenadora da ONG Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH). O que será descrito abaixo é importante para nos conectar às discussões travadas no início deste artigo, quando se fazia menção às noções de autocuidado, grandes eventos e miudezas da vida cotidiana mobilizadas enquanto práticas de existência e resistência de mulheres negras.

Em 1988, o presidente da república era José Sarney e, Schuma fazia parte do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM),1414. O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) foi criado em 1985 para promover políticas públicas com o objetivo de eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar a participação delas nas atividades políticas, econômicas e culturais do país. De 1985 a 2010, o CNDM teve suas funções e atribuições bastante alteradas. Em 2003, ele passou a integrar a estrutura da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). um organismo do Governo Federal diretamente ligado ao Ministério da Justiça. O CNDM era estruturado por comissões temáticas, sendo a “Comissão da Mulher Negra” uma pasta coordenada por Sueli Carneiro. Com o centenário da Lei Áurea, a Comissão da Mulher Negra propõe uma programação pautada na valorização negra, no autocuidado e na denúncia ao racismo: “Nós sabíamos que não tinha nada para comemorar, sabíamos que tínhamos que passar esse 1988 criticamente”, diz Schuma. Naquele momento as mulheres negras se faziam presentes como protagonistas desta luta histórica interessada em denunciar: “a falsa abolição”.

A “Comissão da Mulher Negra” compreendia o racismo como um fenômeno global, cujos esforços para sua eliminação envolviam uma luta transnacional. Desse modo, elegeram o nome Winnie Mandela para uma das atividades centrais do centenário: o tribunal popular que julgaria os crimes cometidos pelo Estado à população negra. Vejamos o que destaca Sueli Carneiro em entrevista a Matilde Ribeiro:

[foi] um evento simbólico que teve o objetivo de julgar a Lei Áurea, considerando que ela não foi capaz de promover uma verdadeira libertação e inclusão. Com isso denunciamos a existência do racismo no Brasil e do Apartheid na África do Sul […] O Itamaraty foi acionado e tivemos que explicar que relação tinha este tribunal com a África do Sul e o Apartheid, ao que respondemos com críticas à desumanização dos negros1515. Matilde Ribeiro, Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil (1986-2010), 1ª. ed. (Rio de Janeiro: Garamond, 2014: 141.

Se na década de 80 a África do Sul estava mergulhada em um apartheid que perdurava mais de três décadas, no Brasil vigora(va)a ideologia1616. O mito da democracia foi o arcabouço ideológico formulado por diversas obras brasileiras. Dentre elas, o livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, e “O Povo Brasileiro” e “Mestiço é que é bom”, de Darcy Ribeiro.que tenta(va) ocultar as clivagens raciais existentes e enalteciam a brasilidade pautada no mito da democracia racial – uma representação simbólica que mascara as tensões raciais e as converte em concepções de “harmonia” e “cordialidade”. Como nos lembra Munanga, “o racismo brasileiro age sem demonstrar rigidez, não aparece a luz, é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente em seus objetivos”.1717. Kabenguele Munanga, “O Anti-racismo no Brasil,” in Estratégias e Políticas de Combate à Discriminação Racial, org. Kabenguele Munanga (São Paulo: Edusp, 1996): 215. Este era o palco das disputas travadas por diversos setores do movimento negro do período. O tribunal Winnie Mandela enfrentou, desde sua concepção, a negação do racismo por parte do Estado, que insistia na ideologia Freyriana da harmonia entre as raças. O que pode ser percebido pela matéria da revista Veja que destaca os embates entre CNDM e Brossard, à época ministro da justiça:

No começo o julgamento seria da Lei Áurea. O ministro Paulo Brossard, a cujo gabinete está afeto o Conselho da Mulher, não permitiu. Trocou-se para julgamento do racismo. Novo veto, sob a alegação de que não há racismo no Brasil. Finalmente, o ministro concordou: estará em julgamento apenas o tema genérico do preconceito racial.1818. Grifo meu. “Brossard Complica o Tribunal Mandela,” Revista Veja, 24 de agosto de 1988.

Sueli Carneiro recorda a pressão política que recebeu por parte do Estado e destaca que a realização do tribunal Winnie Mandela foi um marco de negociação com o Governo Federal. Nas palavras da filósofa, tal atividade só foi possível “porque houve uma firmeza muito grande por parte das conselheiras para sua realização”.1919. Ribeiro, Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil (1986-2010),141.

A sessão do Grande Júri do Tribunal Winnie Mandela foi realizada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde reuniu várias organizações da sociedade civil e contou com personalidades políticas e jurídicas de renome.2020. Maria Cristina Olímpio (juíza do Tribunal de Justiça da Bahia); Dr. Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (Pres. Da OAB secção SP); Benedita da Silva (Deputada); Lélia Gonzalez (antropóloga e Prof. da PUC/RJ); Benedito de Jesus Batista Laurindo (vigário paroquial da Catedral Metropolitana); ZuleikaAlambert (escritora e consultora do Conselho da Condição Feminina); Alda Marco Antônio (secretária da Secretaria do Estado do Menor de São Paulo); Alzira Rufino dos Santos (poeta e coordenadora do Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista/SP); Antônio Carlos dos Santos (presidente do Bloco Afro Ilê Ayê/BA); Carlos Moura (coordenador de política cultural do Ministério da Cultura); Carmem Barroso (presidente da Comissão de Direitos Reprodutivos do Ministério da Saúde); Clóvis Moura (sociólogo, notório saber da Universidade de São Paulo); Eliane Potiguara (da nação Potiguara, professora, coordenadora da União das Nações Indígenas); João Luiz Duboc Pinaud (membro do Conselho Federal da OAB); José Ferreira Militão (secretário geral do Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra de SP); Jacqueline Pitanguy (socióloga e presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher); Kátia de Melo e Silva (diretora da União de Mulheres do Nordeste); KatsunoriWarisaka (diretor do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros); Luci Montoro (presidente do Instituto de Estudos e Apoio Comunitário/IBEAC); Maria AngelaBerlofa (Presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB); Maria da Penha Guimarães (advogada); Margarida Genevois (socióloga); Rodolfo Konder (jornalista e vice-presidente da secção brasileira da Anistia Internacional); Silvia de Oxalá (Yalorixá do Axé Ilê Obá); Thereza dos Santos (atriz, assessora da Secretaria do Estado da Cultura de SP); Valdir Troncoso Perez (advogado criminalista); Vera Lúcia Lacerda da Silva (presidente do Bloco Ara Ketu/BA). O cenário do salão nobre João Mendes Júnior da Faculdade de Direito da USP cuja disposição lembrava um autentico tribunal, reforçou a sensação de se tratar do “julgamento do século” – como destaca o cartaz de divulgação do Tribunal Winnie Mandela promovido pelo CNDM e a OAB São Paulo.

Segundo descreve o Informativo do CNDM,2121. “Informe Mulher,” Informativo do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM - Tribunal Winnie Mandela, 1988, acervo REDEH. o júri teve discussão acirrada entre a defesa e a promotoria. Na defesa, o Dr. Fausto Sucena Rasga Filho negava a existência do racismo no Brasil, argumentando que a nacionalidade era o valor que regulava as relações sociais o que permitia a todos os cidadãos desfrutarem do sentimento de pertencimento nacional. Na promotoria, o Dr. Antônio Claudio Martinz de Oliveira afirmava veementemente a existência do racismo e utilizava-se de exemplos cotidianos vividos pelas mulheres negras para sustentar sua alegação da sub-cidadania para a população negra. A peça2222. “Peça de Acusação,” Tribunal Winnie Mandela, 1988, acervo REDEH. apresentada pela promotoria baseou-se no argumento que a legislação é produto dos setores dominantes da sociedade que não reconhecem o valor da mulher negra. A sustentação do promotor utilizou o exemplo de uma vítima – mulher negra, nascida em 1887, filha de mãe escrava e, segundo a lei do ventre livre, presumidamente liberta para descrever uma trajetória marcada por grandes eventos de aniquilações brutais na história brasileira – a desumanização por parte do Estado em relação à vítima e seus descendentes a obrigava estabelecer estratégias para resistir e compor “mundo novos” frente ao inóspito.

A experiência deste tribunal marcou significativamente a história do movimento negro brasileiro e, ainda hoje, é utilizado como referência para pontuar a resposta ativa de mulheres negras frente a desumanização do povo negro. O tribunal serviu ainda para descortinar o mito da democracia racial, promover resistência e denuncia a nível transnacional e visibilizar ações de atenção e autocuidado para pessoas negras.

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Sobre-viver em territórios sensíveis

A figura dos barões, coronéis, mandões, chefetes ou donos na Baixada Fluminense2323. A Baixada Fluminense é uma região do Estado do Rio de Janeiro que se localizam entre a serra do mar e o litoral, desde Itaguaí até Campos do Goytacazes, mais especificamente corresponde aos municípios que estão ao norte do município do Rio de Janeiro, na região que antigamente era chamada de Baixada da Guanabara. É oportuno ressaltar que os moradores locais costumam abreviar e chama-lo apenas de “Baixada”.não é gramática passada. Ao contrário, são representações fundamentais das relações sociais tecidas entre moradores da “Baixada”. Refere-se a uma extensa história local onde política e violência letal se confundem na busca por domínio territorial e controle econômico. Os “donos” ou “chefes” são caracterizados como aqueles que detém o monopólio dos serviços oficiosamente tidos como públicos (água, saúde, transporte, garantia à segurança), mas que na prática o acesso é de controle exclusivo do dono local.

É dinâmica usual da Baixada o fazer política através da intimidação por parte de quem detém controle armado e pode oferecer ao seu reduto eleitoral acesso facilitado a serviços públicos. As denúncias de populares atestam que marcação de consultas em hospitais públicos ou garantia de vagas em escolas públicas só é feita se políticos locais autorizarem: “Se você for no hospital do olho2424. Hospital público cuja especialidade é para tratamentos de doenças relacionadas ao olho. só pro ano que vem, se você for a ele [político local], ele marca pra amanhã”, relata moradora.2525. Optei pela preservação da identidade de sujeitos que entrevistei quando realizava trabalho de campo para minha tese de doutorado. Estes materiais por vezes aparecerão no artigo sem a identificação dos entrevistados.

É comum associar a Baixada com o bang-bang do faroeste americano, um ambiente inóspito, repleto de “justiceiros” aptos para fazer valer a lei do mais forte. Alguns assemelham a Baixada ao interior do Nordeste brasileiro onde “jagunços”, “coronéis”, “mandões” disputam entre si o poder, a terra e a política local. Outros vinculam a Baixada ao imaginário de “favelas” com estrutura semi-urbana marcada por casas simples, não finalizadas e por uma população trabalhadora que utilizada o território na função de “cidades dormitórios”. Essas representações são uteis para tentar elucidar algumas dinâmicas presentes no território, mas elas não são suficientes para captar as especificidades das relações sociais do local. Foi o que uma moradora tentou sugerir ao me dizer: “a Baixada só se explica pela Baixada”.

Nos anos 50 e 60 um alagoano domina o território e se torna símbolo do terror local. Tenório Cavalcanti, o “rei da baixada” ou o “homem da capa preta” como alguns o apelidaram, aterrorizava seus adversários com uma submetralhadora alemã (que ele apelidava de Lurdinha). Foi deputado estadual, e federal e a ele foram atribuídos vários crimes violentos. No entanto, graças as suas alianças com políticos e empresários, sua participação nestas mortes embora comprovadas, jamais lhe resultaram em punição legal.

Histórias como as de Tenório Cavalcanti e outras personalidades ligadas a cargos políticos e grupos de extermínio podem ser encontradas no trabalho de Alves2626. José Claudio Souza Alves, Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense (Duque de Caxias: APPH; CLIO, 2003). que buscou entender como opera a transformação mística de assassinos emblemáticos em “heróis” da Baixada, bem como a relação estabelecida entre eleitorado, homicídios e poder. Uma entrevistada rememora as figuras descritas no livro de Alves:

O ato de exterminar na baixada eu conheço a 50 anos. Ele faz parte do contexto do bairro que eu moro e sempre foi naturalizado. O livro “Barões do Extermínio [Uma História da Violencia na Baixada Fluminense]”, eu conheço alguns personagens. Não são pessoas que a gente ouvia falar, são pessoas que a gente conviveu. Nós convivemos com Tenório Cavalcanti, os últimos dias da vida dele ele viveu na Chácara que ele tinha com o grupo de homens dele que tomava conta do morro e eles determinavam quem ia e quem ficava. Uma briga de família era motivo.

Neste território, as relações entre moradores e lideranças políticas pertencentes aos grupos de extermínio não podem ser reduzidas ao conceito de coronelismo trabalhado por Vitor Nunes Leal2727. Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto (São Paulo: Alfa-Omega, 1976). e José Murilo de Carvalho.2828. José Murilo de Carvalho, “Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual,” Dados 40, no. 2 (1997). Apesar do coronelismo, mandonismo e clientelismo terem traços fortes nas relações locais é oportuno dizer que na Baixada o ato de matar é exercício primeiro para consolidação dos poderes locais. Na Baixada Fluminense, o direito de fazer viver uns e fazer morrer outros está exposto nos altos números de homicídios2929. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), a tipificação das mortes violentas na Baixada Fluminense, entre os anos de 2010 e 2015, foram de: 9626 homicídios, 683 encontros de cadáveres, 920 intervenções policiais. Para mais informações, ver: “Homicídio Doloso,” ISP Dados, 2018, acesso em 6 de novembro de 2018, http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/.na região. Em sua maioria, homicídios decorrentes da atuação direta dos grupos criminosos vinculados à política municipal, como as milícias e os grupos de extermínio que transformam o homicídio em pretexto de combate ao crime, garantia da ordem moral e manutenção dos bons costumes. Nesta equação, como relatam populares, uma briga de casal, a afirmação de gênero-sexualidade, ouvir funks proibidões,3030. É um estilo de funk carioca comercializado de forma clandestina. Estes funks costumam exaltar o tráfico de drogas. fazer uso de drogas ilícitas, crimes contra o patrimônio (em especial roubos em comércio)ou ter qualquer comportamento tido moralmentecomo “vadio” e “errante” pode ser justificativa para assassinatos. Neste sentido, há “o caráter cotidiano e frequentemente impessoal – meramente quantitativo – das execuções”3131. “Homicídios na Baixada Fluminense: Estado, Mercado, Criminalidade e Poder,” ISER, Comunicações do ISER no. 71, ano 37 (2018), p. 14, acesso em 16 de dezembro de 2018, http://www.iser.org.br/site/wp-content/uploads/2013/12/2018-08-06-publicacao71-iser-WEB.pdf. que corrobora com o que a moradora chamou de “naturalização” da morte.

O extermínio seguido de ocultamento de cadáver é uma prática muito corriqueira na Baixada Fluminense. É o que, certa vez, me relatouum morador ao me explicar a existência de cemitérios clandestinos3232. “A existência de cemitérios clandestinos na Baixada é antiga. A eles somam-se os rios, com destaque para o Sarapuí e Guandu, na prática de ocultamento de cadáveres. Nas obras do Arco Metropolitano, ossadas encontradas foram analisadas na esperança de serem achados arqueológicos de povos primitivos que ali habitaram. Algumas, contudo, não passaram de ossadas recentes.” José Claudio Souza Alves, “Casos da Região,” in Um Brasil Dentro do Brasil Pede Socorro: Relatório-Denúncia Sobre o Descaso Estatal com a Vida Humana na Baixada Fluminense e Possíveis Soluções Urgentes, Fórum Grita Baixada, 2016, acesso em 16 de dezembro de 2018, p. 51, http://www.cddh.org.br/assets/docs/Um%20Brasil%20dentro%20do%20Brasil%20pede%20socorro.pdf.em seu bairro:“os grupos de extermínio fazem bastante, eles matam e jogam o corpo no rio que tem aqui perto, aí falam que é comida pra Jacaré”.

04

O tribunal da Baixada Fluminense

O Tribunal Popular da Baixada ocorreu em setembro de 2018 e teve como pauta central o “Genocídio da Juventude Negra”. O evento foi organizado pelo Fórum Grita Baixada em parceria com 263333. Movimento Negro Unificado – MNU, Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, Rede de Comunidades e Movimento contra à Violência, Campanha Caveirão Não! Não à Intervenção!, Iser, Casa Fluminense, Unegro, OngCriola, Movimento Moleque, Visão Mundial, Comissão dos Direitos Humanos da Alerj, Defensoria Pública de Duque de Caxias, Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado do RJ, Voz da Baixada, Observatório de Favelas, Fórum Comunitário de Jardim Gramacho, Frente Estadual pelo Desencarceramento, Frente Estadual de Juristas Negros e Negras, Associação Apadrinhe um Sorriso, Comissão de Equidade Racial, Intolerância religiosa e Formas Correlatas da 24ª Subseção da OAB, Comissão de Segurança Pública e Drogas da 24ª Subseção da OAB e AMARJ.organizações focadas na defesa dos Direitos Humanos. Tal atividade visou colocar o Estado no banco dos réus, condenando-o pelos altos índices de homicídios cometidos na região da Baixada.

O ato de atribuir os recorrentes homicídios perpetrados contra o povo negro ao conceito de “genocídio” tem sido prática recorrente entre ativistas sociais, familiares das vítimas de homicídios e intelectuais negros, haja vista os trabalhos desenvolvidos por Nascimento,3434. Abdias do Nascimento, O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado (Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S/A, 1978). Vargas3535. Vargas, Never Meant to Survive: Genocide and Utopias in Black Diaspora Communities, 2010; e João H. Vargas, “A Diáspora Negra como Genocídio: Brasil, Estados Unidos ou Uma Geografia Supranacional da Morte e Suas Alternativas,” Revista da ABPN 1, no. 2 (jul.-out. 2010): 31-65. e Flausina.3636. Ana Luiza Pinheiro Flauzina, “As Fronteiras Raciais do Genocídio,” Direito.UnB 1, no. 1 (jan.-jun. 2014): 119-146. Para estes, o conceito genocídio não é instrumento exclusivo e restrito do Direito – muito embora ele seja pautado e estabelecido pela Convenção de 19483737. “Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide,” United Nations, 78 U.N.T.S. 277, 9 de dezembro de 1948, acesso em 16 de dezembro de 2018, https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=IND&mtdsg_no=IV-1&chapter=4&clang=_en.– trata-se de uma categoria que é palco de intensas disputas políticas entre atores interessados em lançar luz ao fenômeno e delimitar suas especificidades em cada território.

Nesse sentido, o tribunal popular da Baixada se coloca como agente neste campo em disputa e opta por conceituar a experiência de pessoas negras assassinadas sistematicamente como genocídio. Evidenciando a dura realidade apontada por pesquisas3838. Ana Luiza Pinheiro Flauzina, Corpo Negro Caído no Chão: O Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro (Rio de Janeiro: Contraponto, 2008); Aline Maia Nascimento, “A Linha Tênue Entre os Vigias e os Vigiados: As Práticas Policiais de PMs Negros em Seus Encontros com a Comunidade Negra do Distrito Federal,” monografia de graduação (Departamento de Sociologia, Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília, 2014); e “Você Matou Meu Filho. Homicídios Cometidos pela Polícia Militar do Rio de Janeiro,” Anistia Internacional, 2015, acesso em 16 de dezembro de 2018, https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf. que revelam que os negros estão sobre-representados nos chamados “homicídios decorrentes de intervenção policial” – aqueles usados nos registros de mortes provocadas por policiais em serviço e justificados com base na legítima defesa. Não obstante, os negros estão também mais sujeitos do que outros a fazerem parte das estatísticas de índices elevados de morte violenta, morte evitável por doenças, acesso vetado à assistência médica e outros indicadores que ilustram os sintomas dos processos de anti-negritude.

O Tribunal da Baixada foi estrategicamente pensado por seus organizadores para ser realizado em um local público. O intuito era contar com a participação massiva de moradores da Baixada. Assim, o julgamento aconteceu na Praça do Pacificador, espaço situado no coração da cidade de Duque de Caxias, de livre acesso e circulação da população local. Por este motivo, para além do público de ativistas sociais que acompanharam o julgamento, também estavam presentes transeuntes curiosos que decidiram observar o evento. Nas palavras de uma das organizadoras do Tribunal e ativista na Redes de Mães e Familiares da Violência do Estado na Baixada Fluminense, isso se deu pelo caráter essencialmente pedagógico que o tribunal se propôs a encarnar – trazendo o conceito do genocídio negro para ser descortinado e debatido em praça pública:

O tribunal popular veio como um instrumento de denuncia para ajudar a chamar atenção pro genocídio de jovens na baixada, porque na baixada as pessoas nem sabem o que é genocídio. Ninguém sabe o que é genocídio. Eles não entendem as mortes da baixada como genocídio, como parte de um processo de violação dos direitos e violação do Estado, como também não sabem os tipos de violações de direitos que o Estado comete.

A sessão do júri ocorrida na Praça do Pacificador aglomerou familiares de vítimas, movimentos populares, movimentos sociais, organizações de direitos humanos, moradores e trabalhadores locais em torno do julgamento sobre o “genocídio da juventude negra”. O debate entre o advogado de acusação e a advogada de defesa foi acirrado. O primeiro resgatou os históricos de violência e desumanização que acometem a população negra desde o período escravocrata até os dias atuais – marcados por uma reatualização dos modos de fazer morrer para população negra (encarceramentos em massa, execuções sumárias sistêmicas e as violações de direitos direcionadas a moradores de favelas e periferias), responsabilizou o Estado e as autoridades policiais pelo descaso nas investigações classificadas como “autos de resistência”. A segunda, negou que o Estado tenha alguma responsabilidade perante a morte violenta de negros. Destacou que problema central reside apenas no âmbito do Judiciário, pois o Executivo e o Legislativo brasileiro já atuam na promoção da igualdade racial oferecendo a população marginalizada políticas públicas de reparação, como as ações afirmativas.

Se observarmos a provocação levantada pela advogada de defesa é possível perceber as semelhanças que marcam os argumentos travados no tribunal Winnie Mandela e no tribunal da Baixada Fluminense. Após exatos 30 anos, raça e racismo continuam no centro do debate. Desta vez, a defesa parece reconhecer a existência do racismo e destaca os esforços feitos na aera educacional para mitigar as desigualdades causadas por ele. No entanto, se exime da autoria nas práticas genocidas contra jovens negros. Tal discurso corrobora o que Vargas nomeou de a reciclagem da ideologia da democracia racial: consegue-se marginalizar e matar pessoas negras enquanto o Estado se apresenta como democrático e inclusivo.3939. Vargas, “A Diáspora Negra como Genocídio,” 43.

As elevadas taxas de homicídios na Baixada acompanhadas do sentimento de impunidade frente aos casos estão presentes nas falas de moradores que costumam intitular a Baixada como“terra sem lei”, uma representação que reforça a ideia que neste território a morte não gera investigação e punição. Assim, o silêncio entorno das mortes não é somente do Estado, ele também é prática adotada por muitos moradores que temem colocar em risco sua vida e de seus familiares.

Quando acontece a morte sempre tem o silencio, porque tem aquele medo de quem tá entorno ser quem fez o crime ou, então, o silencio vem porque todos sabem quem é. E nunca é denunciado pra polícia. Os moradores são muito solidários no momento da morte, eles ficam junto com a família, mas sempre dentro do silencio de não comentar nada. O lema aqui é: não vi, não sei, cabe em qualquer lugar.

Para as mães e ativistas, “silenciar” e “denunciar” não são práticas opostas – no sentido de uma anular o funcionamento da outra. Vejamos: “quando a gente faz faixa, estampa a foto [do ente querido] na camisa é um jeito da gente falar, da gente homenagear. É no silêncio, mas é denuncia”, reforça a mãe. Desta forma, o ato de fazer denuncia com objetos se torna tão fundamental quanto fazer denuncia via oralidade. Aos objetos (camisas, banners, documentos, fotos, materiais usados pelo falecido) são atribuídas as funções de falar, atestar o tempo de luta(o)dos familiares, contestar o sistema judiciário e lutar contra o esquecimento. São instrumentos necessários na estratégia de “silenciar” e “denunciar”, pois são encarados como testemunhos autênticos do ocorrido. Em alguns momentos, o silencio não é sinônimo de calar-se, mas de deixar que os objetos “ganhem vida” e falem.

No tribunal as mães e familiares das vítimas de violência foram testemunhas acionadas pelo advogado de acusação para expor a gravidade do genocídio perpetrado contra jovens negros. As mães que testemunharam em júri estavam vestidas com camisetas do evento cuja estampa era o desenho de uma mulher negra com o cabelo black power, carregando em uma das mãos uma espada e na outra um lenço branco. Ao fundo do desenho era possível ver o mapa da Baixada Fluminense pintado em vermelho. Algumas mães também carregavam consigo banners com fotos de seus filhos. Enquanto testemunhas, elas relataram os episódios de caracterizaram o grande evento – a morte violenta e prematura de seus filhos.

As mães que tiveram seus filhos mortos enquanto estes cumpriam medida sócio educativa no DEGASE4040. Departamento Geral de Ações Socio Educativas do RJ (DEGASE). – além de relatar o episódio da morte do adolescente, também exemplificaram as miudezas – “pequenos” entraves vividos no sistema de internação que se transformavam em grandes barreiras cotidianas para elas e seus filhos – como a luta para que o adolescente tivesse acesso aos remédios necessários para seu tratamento médico, a alimentação precária do DEGASE, a ausência de materiais básicos para sobrevivência (cobertor, colchão, utensílios de higiene bucal e corporal).

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“Eu quero Justiça!”: temporalidade e a luta

Familiares e amigos de vítimas de homicídio lutam incansavelmente para obter reparação em consequência da perda brutal de seu ente querido. Segundo relatam os familiares, o processo judicial é – sobretudo – penoso, haja vista que o Brasil leva em média oito anos e seis meses para concluir um processo de julgamento de homicídio.4141. Ludmila Ribeiro et al., “O Tempo do Processo de Homicídio Doloso em Cinco Capitais.” Slideshare, 2014, acesso em 13 de outubro de 2018, https://pt.slideshare.net/justicagovbr/pesquisa-srj-tempoprocessso. É preciso ressaltar que a conclusão de um julgamento nem sempre representa para os familiares de vítima o tão esperado “sentimento de justiça”. Fato que nos força a crer que a luta contra o genocídio envolve pensar as distintas noções de “justiça” e “temporalidades” acionadas por cada ator/atriz envolvido/a nas dinâmicas do sistema judicial.

Débora da Silva, fundadora e integrante do movimento Mães de Maio,4242. Movimento de mães de vítima fundado em 2006 depois da morte de 564 pessoas em São Paulo. conta que sua luta por justiça começou após a perda de seu filho Rógerio – uma das mais de 500 pessoas que foram assassinadas pela polícia ano de 2006, na Baixada Santista, em São Paulo. Os homicídios receberam o nome de Crimes de Maio, pois em sua maioria apresentavam indícios de execução: corpos atravessados por perfurações de balas no peito e na cabeça.

Até hoje eles maquiam as investigações. O meu debate hoje é totalmente diferente: saímos da fase “meu filho morreu” e partimos para “quem são os culpados”. Não podemos apontar quem foi porque a gente não sabe. Era o Estado que tinha que me dar essa resposta, mas eles não querem desvendar esse crime. A impunidade vai te dilacerando. Ainda choro muito. A dor me faz buscar por justiça e atravessar fronteiras.(Debora da Silva)4343. Entrevista de Débora da Silva ao Portal Ponte – Direitos Humanos, Justiça, Segurança Pública: Arthur Stabile, “Após 7 anos de recursos, Justiça mantém condenação do Estado por Crimes de Maio.” Ponte, 2 de outubro de 2018, acesso em 14 de outubro de 2018, https://ponte.org/apos-7-anos-de-recursos-justica-mantem-condenacao-do-estado-por-crimes-de-maio/.

As tensões entre as distintas gramáticas de temporalidades produzem variadas noções do que é justiça e de como fazer justiça. Os processos judiciais, administrativos, a fabricação de laudos cadavéricos e perícias que confeccionam a classificação dos mortos e das narrativas sobre a morte podem ser tidas como burocráticas e lentas se lidas apenas pela chave do tempo cronológico. No entanto, sob a lente do “lutar por justiça” a percepção do tempo, nem sempre, está em ritmo arrastado. Muitas vezes, ela é encarada por familiares como um ritmo intenso que coloca a “luta por justiça”na dimensão de rotinizações, das miudezas cotidianas, caracterizadas por uma evidente “peregrinação a agências de Estado, com o acúmulo de documentos variados e a elaboração de expectativas e formas de demanda pelo reconhecimento ou sancionamento legal em torno desse ‘evento’”4444. Adriana Vianna e Angela Facundo, “Tempos e Deslocamentos na Busca por Justiça Entre ‘Moradores de Favelas’ e ‘Refugiados’,” Cienc. Cult. 67, no. 2 (2015): 47.

Nesta luta contra o sentimento de impunidade, familiares são desafiados a responder ativamente as narrativas construídas pelo Estado ou pela mídia, quando estas atestam um relato que destoa de seus entendimentos sobre adinâmica da morte (a autoria do crime, a trajetória da vitima e outros elementos envolvidos). Certa vez, uma mãe que teve seu filho morto por policiais, tentou me explicar como, no pós-morte, sua rotina foi convertida em uma “luta por justiça”. Ela afirmou: “eu fui tudo! Fui perícia, fui advogada e promotora”, fazendo alusão às funções que precisou “exercer” frente a ausência do Estado – a baixa efetividade de mecanismos para elucidação do caso e à ilegitimidade de como os corpos foram tratados no território.

Ora, se fazer o mundo habitável no pós morte exige se apropriar de uma prática que deveria ser papel do Estado, em que medida a formulação de um tribunal popular, gestado por familiares, é em si uma teatralização? Ao que me parece, confeccionar mundos habitáveis (incluindo a construção de tribunais populares) reside no exercício de invenção’45’’45’. ’Roy 2010).’] e neste acaso, a invenção como faculdade de criar e produzir são atos que não mantêm ligação com fabricação de algo “falso”, mas que refletem a ideia de metamorfose contínua “em que as forças, o mundo e os seres são sempre criados e recriados a partir de algo preexistente”4646. Márcio Goldman, “O Fim da Antropologia,” Novos estud. – CEBRAP, no. 89 (mar. 2011): 201.

Na construção de narrativas sobre o grande evento de ruptura, as mães compõem tempos em encruzilhadas, pois elaborar o passado implica em preservar viva a memória do falecido no presente e gerir a garantia de justiça para futuro. Assim, na narrativa das mães o“tempo que antecede a morte” é contado por uma fabricação moral da trajetória de vida da vítima. Junta-se provas (fotos, testemunhos, documentos) que autentifique que o falecido era um “trabalhador”, “estudante”, “bom filho” ou “cidadão de bem”. Em outras palavras, a luta dos familiares busca restituir a humanidade das vítimas que, devido a forma com que morreram, são encaradas por parte da sociedade como seres matáveis. A luta por justiça perpassa pelo trabalho de reinscrição destas mortes, haja vista que se levarmos a sério a máxima “se morre como se vive”,4747. Octavio Paz, El Laberinto de la Soledad (México: Fondo de Cultura Económica, 1994). ser morto de forma banal e desprezível é ter vivido de maneira vil. Logo, é preciso mudar o signo desta morte com um relato que “denuncie e impugne a forma com que se foi morto e dessa forma fazer do cadáver uma pessoa”.4848. María Victoria Pita, Formas de Vivir y Formas de Morir: El Activismo Contra la Violência Policial (Buenos Aires: Del Puerto/CELS, 2010): 109.

Nesta reelaboração de narrativas, o “tempo da morte” – que pode ser caracterizado pelo dia do homicídio – costuma ser descrito pelos familiares de maneira minuciosa. Como percebi no trabalho de campo, as mães detalham a hora em que aconteceu cada dinâmica do evento. Para isto, baseiam-se em falas de testemunhas oculares, nos objetos que a vítima portava no momento da morte, nas minúcias que compõe o cenário onde o corpo foi executado e nos “pressentimentos/intuições de mãe” que as atravessaram no momento da morte de seu filho.

Para as mães que “lutam por justiça”, o tempo do pós-morte é caracterizado pelo luto, mas também pela capacidade de atravessá-lo e transformá-lo no que intitulam como “luta”. Dessa forma, a morte não se ressume em apagamento ou em um passado distante, mas é reatualizada no “tempo presente” – é ele que congrega em si passado-presente-futuro, já que a experiência de lut(o)a reside em “emprestar a minha vida para o meu filho viver por mim”, me contou uma mãe de vítima.

As noções de justiça entre familiares e o Sistema Judicial nem sempre são as mesmas, por esse motivo familiares entendem que é preciso estarem diretamente implicados na tarefa de “fazer justiça”/ “buscar por justiça” para que a aplicação da lei seja o mais fiel possível ao que entendem como tal. No caso de uma mãe que teve seu filho morto por um grupo de extermínio da Baixada, além da notícia do falecimento, a mãe precisou lidar contra a prática de ocultamento de cadáver, pois desconhecia o paradeiro do corpo do filho. Para esta mãe, luta por justiça começou com a procura do filho em cemitérios clandestinos do bairro. Após encontrar o adolescente morto, sua luta se materializou em uma penosa batalha para conseguir colocar o nome do filho no atestado de óbito. Esta mãe afirma: “Eu tô na justiça porque só quero isso, só quero o nome dele no atestado de óbito. Não quero mais nada. Este é meu único desejo.”

Muitas mães compartilham a ideia que nada que o sistema judicial faça, trará seu filho de volta. Contudo, não significa que elas abrem mão da justiça, mas implica dizer que a resposta que esperam como justiça reside em dimensões para além do âmbito financeiro, como indenizações, apesar de serem extremamente importantes em muitos casos.

Mesmo com as especificidades presentes em cada caso é possível estabelecer alguns elementos que compõem uma noção de“justiça” em comum e compartilhada entre familiares. Destaca-se a frequência com que as mães exigem: a elucidação dos casos; o reconhecimento do Estado como um violador de Direitos e, em muitos casos, executor das mortes; o apoio médico e psicossocial aos familiares vitimados; bem como a criação de políticas públicas voltadas a não repetição da violência letal. Desse modo, o tribunal popular nada mais é que a materialização de uma prática diária tecida,em grande parte, por mulheres negras(mães) interessadas em confeccionar mundos possíveis, mesmo quando a aniquilação brutal e as intempéries cotidianas atuam sistematicamente pelo apagamento físico e simbólico de pessoas negras.

Em suma, os tribunais populares são a materialização de uma construção comum de noções díspares do “fazer justiça”. Nesta tarefa, tribunais populares constituem-se como plataformas onde uma colcha de retalhos entre os grandes eventos e as miudezas cotidianas – as quais recaem especialmente sobre a maternidade negra – é tecida.Nesta colcha reside o exercício mundano e, por vezes, nada heroico de reivindicar direitos e promover a resiliência por intermédio de gestos elaborados na vida doméstica e fora dela.

Aline Maia Nascimento - Brasil

Socióloga pela Universidade de Brasília, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e pesquisadora associada ao Laboratório de Antropologia e História (LAH/UFRJ).

Recebido em Outubro de 2018.

Original em Português.