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Diversificando Saberes

Thiago Amparo

A Experiência das Bolsas de Escrita da Sur para Autoras(es) Negras(os)

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De maneira inédita, esta 28ª edição da Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos ofereceu três bolsas de escrita para autores(as) negros(as). De setembro a novembro de 2018, cada bolsa de escrita proporcionou apoio financeiro no valor total de R$ 4.100,00, bem como prestou mentoria no processo de escrita dos textos para publicação na Revista. O objetivo da bolsa foi incentivar e apoiar ativistas e/ou pesquisadoras(es) negras(os) a escrever sobre suas experiências e/ou pesquisas sobre racismo e direitos humanos, no contexto brasileiro.

Concebemos esta bolsa de escrita a partir de uma hipótese sobre o atual estado do financiamento a pesquisas sobre racismo e direitos humanos no Brasil. Apesar de ter dobrado na última década o número de universitários(as) negros(as) no país11. http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-12/percentual-de-negros-em-universidades-dobra-mas-e-inferior-ao-de-brancos. – resultado concreto de políticas afirmativas raciais implementadas neste período – o apoio financeiro especificamente a pesquisadoras(es) negras(os) no país é ainda esparso, para não dizer quase nulo. A proposta da bolsa evidenciou uma demanda não atendida por oportunidades tanto de apoio financeiro – necessário para qualquer processo criativo e produtivo – quanto de acompanhamento em forma de orientação para escrita.

Neste breve relato, busco detalhar tanto como se deu o processo de mentoria das três bolsistas selecionadas para a 28ª edição da Revista Sur, bem como apresentar uma radiografia das candidaturas apresentadas. Espera-se que, ao detalhar este processo, a Revista Sur contribua para que agências públicas de fomento de pesquisa, universidades e financiadores privados no Brasil e fora enxerguem a necessidade urgente de apoio a autoras(es) negras(os) – não somente em temas referentes a racismo, mas igualmente nas mais diversas áreas de pesquisa em direitos humanos.

Iniciativas pioneiras no Brasil como aquelas desenvolvidas pela Fundação Ford e pela Fundação Carlos Chagas nas últimas décadas foram vitais para formar toda uma geração de ativistas e acadêmicas(os) negras(os) à qual este autor integra. O presente relato conclui ser fundamental desenvolver mais iniciativas nesta seara.

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Como se deu a bolsa de escrita

Durante nove dias, entre 27 de agosto a 4 de setembro de 2018, a Revista Sur recebeu 803 candidaturas de autoras(es) negras(os) de todo o Brasil para a bolsa de escrita de sua 28ª edição. O número de 803 candidaturas em apenas nove dias é considerável por si só. Além de se autodeclarar negra(o) no momento da inscrição, a(o) candidata(o) deveria ter histórico de pesquisa e/ou ativismo em combate ao racismo e promoção da igualdade racial, justificar como a bolsa auxiliaria na produção do texto e ter disponibilidade para contato com mentores durante o processo de produção.

Três autoras foram selecionadas por meio de uma comissão composta por membros da equipe editorial da Revista Sur, a saber: este autor e Maryuri Mora Grisales, assim como pela editora convidada Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra e histórica ativista antirracista.

As autoras selecionadas para as bolsas de escrita, cujos trabalhos são agora publicados na 28ª edição da Sur foram Megg Rayara Gomes de Oliveira, Aline Maia Nascimento e Rosane Viana Jovelino. As três candidaturas selecionadas combinam lugares de fala em geral negligenciados pela literatura sobre racismo, experiência de pesquisa empírica nos temas abordados, bem como uma perspectiva original referente a raça e direitos humanos. Os temas por elas abordados, a saber: invisibilização de travestis e mulheres transexuais negras no movimento negro; a experiência de construção de tribunais populares para os casos de homicídios de jovens negros; bem como práticas de desenvolvimento político e econômico de comunidades quilombolas, respectivamente, avançam de maneira significativa o debate sobre raça e direitos humanos proposto por este número.

A mentoria ocorreu por meio de constante comunicação da equipe com as autoras, periódicas revisões dos textos – tanto revisões formais, quanto de conteúdo – desde o momento de concepção dos textos selecionados, passando por suas várias versões até sua edição final.

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Radiografia das candidatas(os) às bolsas de escrita

Quem se candidatou às bolsas de escrita da Revista Sur? Como perfil médio, o processo seletivo atraiu candidaturas de jovens, mulheres negras, mestres ou doutoras, em sua maioria da região Sudeste, cujas pesquisas versam sobre racismo de forma geral ou especificamente sobre identidade negra e direitos de mulheres negras.

Importante mencionar que, graças ao cuidadoso trabalho voluntário de sistematização de dados de Laura Eskudlark, estudante de direito da FGV Direito SP, conseguimos traçar o seguinte perfil das(os) candidatas(os) às bolsas de escrita da Revista Sur:

• A maioria das candidaturas é do sexo feminino (69%). Tivemos, ademais, 4 candidaturas de pesquisadorxs trans (1 homem trans e 3 mulheres trans). Futuros apoios à pesquisa de autores(as) negras(os) deve, portanto, levar em consideração a questão de interseccionalidade entre gênero e raça, garantindo que oportunidades de apoio de fato beneficiem mulheres negras.

• Entre as(os) candidatas(os) que informaram a idade (45% do total), a maioria é composta de jovens entre 20 e 35 anos. Isso demonstra a demanda de jovens negras(os) por oportunidades de apoio à pesquisa.

• Quase metade das(os) candidatas(os) possuem ou cursam pós-graduação stricto sensu, ou seja, doutorado ou mestrado (46%). Este dado ajuda a desmistificar a falsa ideia de que jovens negras(os) não conseguiriam ter acesso a oportunidades na academia ou em organizações de direitos humanos por causa de sua suposta falta de instrução. Ademais, Direito figura como a principal área de atuação (19%), seguida por Educação, História e Ciências Sociais (13% cada):

• A maior parte dos artigos tratou explicitamente da temática de racismo e direitos humanos. Outros temas como identidade negra e mulheres negras figuraram também entre os mais abordados. Parte considerável das propostas versou sobre arte e direitos humanos, demonstrando que a linguagem jurídica não basta para abarcar a complexidade do tema de raça e direitos humanos, o qual demanda outras linguagens e formas de expressão. Surpreende-nos também que temáticas recorrentes no debate sobre raça e direitos humanos, como violência estatal, tenham sido minoria nas propostas apresentadas. Isto parece indicar que este tema, entre outros, está sendo trabalhado por autoras(es) negras(os) sobre outras roupagens como identidade negra, luta antirracista e outras.

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Conclusões e Propostas de Agenda Futura

A experiência das bolsas de escrita desta 28ª edição da Sur trouxe importantes aprendizados para a equipe editorial da Revista. Primeiro, ficou claro que mesmo tecnologias simples como WhatsApp e videoconferência permitem trocas enriquecedoras durante o processo de escrita, considerando que as três bolsistas não residem em São Paulo, onde fica sediada a Conectas Direitos Humanos. Segundo, as bolsas de escrita reforçaram a importância de uma das missões da Revista Sur desde o seu início: fortalecimento do diálogo entre ativistas e acadêmicas(os).

Terceiro, o perfil das três bolsistas selecionadas confirma o caminho editorial mais recente da Revista Sur, a de que cada vez mais seu público alvo é híbrido: Megg, Aline e Rosane são exemplos de acadêmicas ativistas (ou ativistas com formação e interesse acadêmicos). Pessoas como Megg, Aline e Rosane são justamente para quem a Revista é feita.

Por fim, um olhar mais atento para as 803 candidaturas à bolsa de escrita da Revista Sur revela informações importantes para diversificarmos os saberes em direitos humanos. O mainstream nos debates em direitos humanos – seja nas cátedras das universidades no Norte e no Sul Global, seja nos corredores das organizações de direitos humanos – é essencialmente cisgênero, masculino e branco. A radiografia aqui apresentada, por meio das 803 candidaturas à bolsa de escrita da Revista Sur, revela um público radicalmente diverso. Trata-se de um conjunto de pesquisadoras(es) no qual mulheres negras com uma elevada qualificação profissional predominam, e cujas propostas de debate e pesquisa vão além do Direito, apresentando-as numa roupagem interdisciplinar.

Há um poder em nomear a própria opressão. Também há um poder enorme em narrar as estratégias de resistência e as múltiplas formas de existência negra para além da opressão. A experiência das bolsas de escrita da Revista Sur revela a necessidade de que esta geração de pesquisadoras(es) negras(os) encontre e abra espaços na academia, na sociedade civil e nos locais híbridos – como a Revista Sur – de maneira que em seus próprios termos possa ser dito e disputado o significado de direitos humanos e raça no mundo atual.

Thiago Amparo - Brasil

Thiago Amparo é advogado, ativista negro e LGBT, professor na FGV Direito SP, e Editor Executivo da Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos. É bacharel pela PUC-SP, mestre e doutor em direito pela Central European University (Budapeste) e foi pesquisador visitante pela Columbia University (Nova Iorque).