Dossiê Sur sobre Raça e Direitos Humanos

A única mulher negra no jantar de filantropia

Nicolette Naylor

Navegando o patriarcado, o poder e o racismo dentro dos espaços de justiça social

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RESUMO

Como gênero e raça estão presentes no trabalho dos atores da justiça social em todo o mundo? Como raça, classe e o feminismo interseccional que pratico no âmbito pessoal se manifestam no meu trabalho dentro da filantropia de justiça social? Este artigo explora como algumas organizações e lideranças na área de justiça social estão lidando com essa questão desigualdade dentro de seus próprios corredores de poder filantrópico, bem como em suas interações com a sociedade civil. Em termos simples perguntamos: estariam as filantropias em temas de justiça social praticando o que pregam? Ao explorar esses temas, questiono práticas dentro das organizações de justiça social no nível de filantropia e organizações não-governamentais apoiadas pela filantropia. Faço isso recorrendo a alegações recentes de assédio sexual, intimidação e discriminação racial que foram expostas em algumas das principais organizações de direitos humanos da sociedade civil sul-africana. Isso me levou a questionar se o setor mais amplo da justiça social teria questionado suficientemente nossos valores coletivos nos níveis pessoal e institucional dentro do espaço organizacional doador e não-governamental.

Ao explorar esses temas, eu recorrerei aos aspectos pessoal e político das minhas experiências profissionais trabalhando em espaços jurídicos corporativos, em parceria com a filantropia, como beneficiária e trabalhando dentro da filantropia como Coordenadora do Programa e Diretora de um escritório regional na África do Sul. Desempenhando esses papéis, interagi com uma série de ativistas da justiça social e pessoas que trabalham com filantropia e não posso afirmar que já tenhamos refletido deliberadamente sobre nossos valores de justiça social em nível pessoal e institucional. Não tenho todas as respostas, mas estou tentando iniciar uma conversa desconfortável na qual espero perturbar e questionar nossas suposições coletivas em torno dos valores centrais do trabalho de justiça social.

Palavras-Chave

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Cena 1: A experiência vista por quem está do lado de fora – jantar em Manhattan, Nova York

Você já foi a única mulher negra da África do Sul em um jantar ou reunião social em Nova York, onde todos são dos Estados Unidos? Agora imagine que não apenas todas as pessoas presentes são americanas, mas também brancas, heterossexuais e homens e mulheres casados com filhos. Pode ser uma experiência alienante para quem não pertence a esses grupos, onde pessoas como eu precisam se esforçar para entender o contexto ou as piadas específicas; onde o tom e o sotaque dos convidados me confundem, fazendo com que eu me incline para frente desconfortavelmente para de fato tentar escutar; onde eu não sou capaz de perceber insinuações ou o sarcasmo de alguns dos convidados do jantar; onde eu não tenho ideia de quem é o artista de quem todos estão falando; nem vi o show na Broadway que todos viram. O fluxo e refluxo geral da conversa com suas piadas e comentários locais de Nova York me deixam confusa e não sei quando mostrar desaprovação ou aplaudir à medida em que a conversa passa a ser sobre senadores e governadores no Estado de Nova York para as próximas eleições. Eu espero pacientemente no papel da única mulher negra não-americana na sala para que alguém me pergunte algo e eu possa mostrar minha inteligência. Afinal de contas, eu sei o que está acontecendo na África do Sul e posso conversar sobre questões ligadas a China/África, tenho opiniões sobre o debate em torno do Brexit e sobre as eleições no Brasil, mas a conversa está muito focada na América e o presidente Trump me dá tédio. Então, fico quieta e aceno com a cabeça concordando, quando julgo apropriado. Sorrio educadamente quando alguém me chama a atenção. Bebo água ansiosamente à espera de que a sobremesa chegue e a noite termine. Me sinto inadequada e invisível, apesar da minha experiência de vida. Anseio por quebrar alguma coisa… mas não quebro.

Cena 2: A experiência vista por quem está do lado de dentro – jantar no Brooklyn, Nova York

Agora vamos imaginar uma mesa de jantar diferente, onde todos os participantes são do sul global e apenas uma minoria é branca e masculina. Todos trabalham no espaço de filantropia de justiça social espalhados pelo mundo em uma mistura de diferentes idiomas, sotaques, raças, religiões, orientação sexual e gêneros. O jantar se torna uma experiência calorosa e privilegiada. Eu me sinto do lado de dentro. Por quê? Bem, por conta do meu status profissional como diretora em uma organização filantrópica global de justiça social com escritórios em todo o mundo e uma sede em Nova York. Sou advogada e fiz meu mestrado em uma das melhores universidades de Londres. Tenho muitos anos de experiência trabalhando na área jurídica, no espaço dos direitos humanos e no espaço da filantropia. Viajei o mundo e vivi em diferentes partes do mundo além da África do Sul. Tenho falado em conferências e reuniões internacionais em muitos dos países onde residem os convidados desse jantar. Inglês é minha língua nativa. Já li muitos livros e tenho vasto conhecimento sobre notícias globais e política. Todos temos um mesmo conjunto de valores e princípios fundamentais que informam nossa interação com o mundo e isso faz com que eu me sinta como se estivesse incluída no grupo dessa mesa. Eu adoro o riso alto e as piadas, eu dou risada em voz alta e poderia ficar aqui a noite toda contando e ouvindo histórias, falando sobre política e contando piadas sobre a linha de frente da justiça social. Eu respeito e admiro todos os líderes em torno desta mesa.

Eu ainda sou a mesma pessoa, mas como eu apareço e interajo nesses respectivos jantares é muito diferente em termos da minha bagagem pessoal e política. Isso me diz se devo expor meu eu criativo ou meu eu zangado e silencioso. Agora vamos imaginar um caso hipotético em que um homem em ambos os cenários é acusado de tentar estuprar uma das mulheres após o jantar. Em ambos os casos, eu responderia enfurecidamente, acreditaria na mulher e a apoiaria para que exigisse a responsabilização do perpetrador, se esse fosse o desejo dela – todos nós faríamos o mesmo, certo? No entanto, nem sempre é assim: é mais fácil imaginar o estuprador como alguém que desprezamos – o homem horrível, assustador e racista que espreita em becos escuros e não o líder carismático e dinâmico da justiça social que todos amam. É isso que os conselheiros que trabalham com casos de estupro vêm dizendo há décadas.

Agora substitua-me por minha avó que é uma trabalhadora doméstica da África do Sul – era muito mais sábia do que a sua idade poderia fazer supor, uma ativista e sindicalista de coração com sua voz retumbante e seus pensamentos sobre privilégio e poder. Ela não foi à escola, não tem diploma ou certificado de ensino médio. Ela limpa casas como esta, onde estamos jantando, onde ela ganha um salário mínimo. Onde nós a colocamos? Em nenhuma mesa. Porque o poder, o privilégio e uma corrente de violência permeiam o ar da mesa de quem está do lado de dentro, onde me sinto feliz, apreciada e aquecida. Políticas excludentes de raça e gênero e um senso de “alteridade” permeiam as duas mesas, a única diferença é que no cenário 1 (a mesa de quem assiste tudo do lado de fora) isso é explícito e no cenário 2 (mesa de quem está do lado de dentro) a situação está implícita e o tom de exclusão e violência está encoberto pela política e discurso progressistas. No entanto, ainda está presente. Ambas as mesas são intrinsecamente problemáticas em termos de sua natureza elitista e provavelmente demonstram até que ponto fui levada a desempenhar um papel e permanecer em uma zona de conforto que talvez sejam parte da história clássica da mulher negra de classe média que está vivendo uma ascensão profissional em nível global.

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2. Os valores fundamentais da filantropia da justiça social

A sociedade sul-africana foi devastada pelo racismo e pelo apartheid. Hoje somos todos obrigados pelo nosso mandato constitucional a respeitar a dignidade inerente e a igualdade de todos os seres humanos e a discriminação não deve ser tolerada. Sempre trabalhei sob a premissa de que os atores da justiça social na sociedade civil e na filantropia têm o dever de cuidar ainda mais para garantir que não apenas sejamos diversos em termos de raça e gênero, mas também que pratiquemos princípios de igualdade substantiva e não toleremos quaisquer formas de discriminação ou violência dentro de nossas próprias instituições. Sempre baseei esse dever maior de cuidado em uma definição de justiça social como medida para avaliar como o poder, a riqueza e os recursos de uma sociedade são distribuídos e utilizados. Assim, a justiça social é um valor que se opõe à desigualdade e às estruturas sociais discriminatórias injustas. Neste contexto, pode-se dizer que a filantropia de justiça social incorpora seis temas principais:11. Lisa Ranghelli e Jennifer Choi, “Power Moves: Seu Guia Essencial de Avaliação de Filantropia para Equidade e Justiça ”. National Committee for Responsive Philanthropy and Philamplify, Maio de 2018, acesso em 14 de outubro, 2018, http://www.ncrp.org/wp-content/uploads/2018/04/Power-Moves-Philanthropy.pdf.

  • (a) A filantropia para justiça social enfoca as causas profundas da desigualdade social, econômica e política, em vez de abordar apenas os sintomas e manifestações dessas desigualdades.
  • (b)A filantropia para justiça social se esforça para incluir as pessoas que são impactadas pelas injustiças e desigualdades como as lideranças e tomadores de decisão. Isso significa que o processo de dar é tão importante quanto para onde vai o dinheiro. Perguntar àqueles que são diretamente afetados e trabalham para resolver um problema, fazer parcerias e liderar de forma significativa é uma parte fundamental do processo.
  • (c) A filantropia pela justiça social visa tornar o campo da filantropia acessível e diversificado.
  • (d) A filantropia pela justiça social é responsável, transparente e responsiva na concessão de doações.
  • (e) Doadores e fundações agem como aliados dos movimentos sociais, contribuindo não apenas com recursos financeiros, mas também com tempo, conhecimento, habilidades e acesso.
  • (f) As fundações usam seus ativos e investimentos juntamente com o dinheiro das suas doações para apoiar suas missões de justiça social.

Aqueles dentre nós que se engajam no espaço da justiça social, seja na filantropia, organizações não-governamentais ou movimentos sociais, todos têm interesse em se concentrar na mudança sistêmica em relação aos complexos problemas da injustiça e da desigualdade. Isso requer soluções criativas e inovadoras que são impulsionadas por um compromisso claro de avançar e construir poder dentro das comunidades mais marginalizadas. Para fazê-lo com eficácia, precisamos ter certeza de que valores de justiça e igualdade estejam incorporados em nossas culturas internas, contratando práticas e estruturas de liderança. Esses valores também precisam ser incorporados na maneira com que fazemos nosso trabalho de justiça social com humildade e respeito pela dignidade de nossa equipe, nossos parceiros e as comunidades que servimos. Para que possamos realmente ter um impacto sobre as questões de justiça social com que tanto nos importamos, nossa liderança, nossa força de trabalho e nossa prática devem refletir a demografia dos ambientes em que trabalhamos e das comunidades servidas por nós. Esta responsabilidade é tanto uma obrigação moral como um imperativo estratégico. Ela exige que passemos de pressupostos implícitos em torno dos valores que a diversidade, a equidade e a inclusão trazem, para um foco estratégico explicito que exige que localizemos a diversidade, a equidade e a inclusão dentro de um paradigma de poder e privilégio que informe todos o nosso trabalho.

Mas o que estamos querendo dizer quando falamos de diversidade, equidade e inclusão?22. Para mais informações sobre Equidade de Diversidade e Inclusão em filantropia, o trabalho da Coalizão D5 é relevante . “What is DEI?”, D5 Coalizão , 2011, acesso em 22 de outubro de , 2018, http: // www.d5coalition.org/tools/dei/ . Muitas definições de diversidade reconhecem a natureza interseccional da identidade e as formas complexas e cumulativas pelas quais diferentes formas de discriminação se combinam, se sobrepõem e se cruzam. A definição mais comum de diversidade usada em filantropia refere-se à mistura demográfica de um conjunto específico de pessoas, considerando elementos de diferença humana, que incluem, mas não se limitam a raça, cultura, etnia, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, idade e status de deficiência. A equidade envolve a promoção da justiça e da imparcialidade dentro dos procedimentos, processos e distribuição de recursos pelas instituições ou sistemas. Lutar pela equidade exige um entendimento das causas subjacentes ou raízes das disparidades em nossa sociedade. Dentro do contexto sul-africano, requer medidas redistributivas positivas na forma de ações afirmativas. O terceiro conceito, a inclusão, refere-se ao grau em que diversos indivíduos são capazes de participar plenamente dos processos de tomada de decisão. Enquanto um grupo verdadeiramente “inclusivo” é necessariamente diverso, um grupo “diverso” pode não ser “inclusivo”. Uma maneira sucinta de descrever esses diferentes conceitos é que a diversidade é um número, a equidade é um resultado ligado à justiça, e a inclusão é um comportamento frequentemente evidenciado pela cultura institucional.

Todos os três elementos são críticos para que uma organização adote verdadeiramente uma estrutura socialmente justa. Diversidade, inclusão e equidade não podem ser tratadas como um jogo de números quando completamos nossos dados sobre diversidade – isso deve ser algo profundamente enraizado em tudo o que fazemos – vão ao cerne de nossa base de valores e ao coração de nossa eficácia como setor trabalhando pela justiça social. Elas também exigem que sejamos claros sobre não podermos tolerar a misoginia, a violência, o racismo, o discurso de ódio, a xenofobia ou a homofobia nos corredores da justiça social. Precisamos nos remeter ao mais alto padrão à medida em que nos engajamos na batalha pela justiça social, onde nos empenhamos para chegar a uma agenda transformadora ligada a mudança nas políticas, práticas, culturas e escolhas estratégicas.

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3. Princípios e retórica colidindo com a prática

Nos últimos oito meses, algumas das maiores organizações de justiça social que trabalham na vanguarda dos direitos humanos e da dignidade na África do Sul, financiadas por fundações de justiça social como a Fundação Ford, tiveram que enfrentar publicamente uma série de casos de assédio sexual, assédio moral, discriminação salarial baseada em raça e gênero e vitimização baseada na orientação sexual.33. Rumana Akoob, Simon Allison e Carl Collison, “NGO’s Sexual Harassment Woes Grow.” Mail & Guardian, 18 de maio de 2018, acesso em 28 de november, 2018, https://mg.co.za/article/2018-05-18-00-ngos-sexual-harassment-woes-grow; Sarah Smit, “#WeBelieveThem: A bancada feminista pede o fim da ’cultura do silêncio’ no setor das ONGs. ” Mail & Guardian, 29 de maio de 2018, acesso em 28 de november 2018, https://mg.co.za/article/2018-05-29-webelievethem-feminist-caucus-calls-for-end-to-culture-of-silence-in-ngo-sector; see also: Rumana Akoob, “NGOs Tighten Up on Sexual Harassment Policies.” Mail & Guardian, 31 de maio de 2018, acesso em 28 de novembro de 2018, https://mg.co.za/article/2018-05-31-ngos-tighten-up-on-sexual-harassment-policies-1; and Rumana Akoob, “LRC Allows Harasser to Resign.” Mail & Guardian, 1 de junho de 2018, acesso em 28 novembro de 2018, https://mg.co.za/article/2018-06-01-00-lrc-allows-harasser-to-resign. Os primeiros poucos casos de assédio sexual tiveram um efeito cascata e fizeram com que vários outros casos viessem à tona. Isso também aconteceu em instituições globais, como UNAIDS44. Comunicado de Imprensa: “TAC, Sonke and Section27 Call for Investigation Into UNAIDS Mishandling of Sexual Harassment Allegations,” Sonke Gender Justice, 9 de abril de 2018, acesso em 28 de novembro de 2018, https://genderjustice.org.za/news-item/tac-sonke-section27-call-for-investigation-into-unaidss-mishandling-of-sexual-harassment-allegations/., ONU Mulheres e Oxfam, onde funcionários seniores ou consultores enfrentaram alegações de assédio sexual e a gerência foi acusada de não tomar as medidas apropriadas.

Na África do Sul, o que vem chamando a atenção é o número de mulheres negras fazendo denúncias. Elas descrevem um ambiente de sexismo e racismo que permeia certos setores dentro do espaço de justiça social, particularmente o setor de direitos humanos de interesse público legal, denunciando publicamente, por exemplo, as

formas insidiosas de assédio sexual em nosso setor e a posição inaceitável em que se encontram as mulheres, particularmente as mulheres negras, como resultado dessa situação. Pedimos ao nosso setor que questione sua inclinação a se julgar “irrepreensível” e que desistam da noção de que nosso setor é de algum modo imune ao assédio sexual, ao racismo e a outros abusos de poder. São esses exercícios descontrolados de poder, na forma de privilégio e patriarcado branco, que resultam em ambiente(s) tóxico(s)… 55. “Wolves in Sheep’s Clothing: Sexual Harassment in the Public Interest Sector,” Civil Society Lawyers, 28 de maio de2018, acesso em 25 de outubro de 2018, https://www.dailymaverick.co.za/article/2018-05-28-wolves-in-sheeps-clothing-sexual-harassment-in-the-public-interest-sector/.

Koketso Moeti, cujas palavras são citadas acima, também escreveu uma crítica poderosa aos doadores66. Koketso Moeti, “Time For An Honest Reckoning With Those Who Sustain Abusive Behaviours in NGOs.” Daily Maverick, 28 de junho de 2018, acesso em 25 de outubro de 2018, http://firstthing.dailymaverick.co.za/article?id=110753#.W0oz-YozZPY. que financiam grandes centros legais de interesse público que se recusam a enxergar a dinâmica do poder, racismo e sexismo dentro dessas organizações e apenas celebram e conspiram com líderes as vitórias dos tribunais em nome das comunidades marginalizadas.77. Carolin Gomulia, “The Complicity of the Donor Community in NGO Malpractices.” Daily Maverick Op-Ed, 25 de maio de 2018, acesso em 15 de outubro de 2018, https://www.dailymaverick.co.za/article/2018-05-28-the-complicity-of-the-donor-community-in-ngo-malpractices/#.W0o0coozZPY. A filantropia para a justiça social tem sido (corretamente, na minha opinião) questionada se suas práticas internas e tomadas de decisão servem para alimentar o racismo e o sexismo no setor ouse consideramos apenas o sucesso em termos de vitórias nos tribunais, independentemente das culturas tóxicas patriarcais e racistas dentro das organizações.

Esses debates me levaram a considerar88. Nicolette Naylor, “Social Justice Organizations Are Not Squeaky Clean, And We Must Do Better.” Mail & Guardian, 23 de maio de 2018, acesso em 25 de outubro de 2018, https://mg.co.za/article/2018-05-23-justice-social- organizações-não-são-completamente-limpas-e-nós-devemos-fazer-melhores . o que tudo isso significa em um ambiente institucional e pessoal como diretora negra de uma organização filantrópica de justiça social e advogada feminista especialista em direitos humanos que passou muitos anos nas trincheiras trabalhando dentro do espaço da lei de interesse público. Como resultado da crítica contra os doadores na região e devido às minhas convicções pessoais como feminista, o escritório da Fundação Ford para a África Austral, foi obrigado a refletir sobre se temos ou não feito as perguntas certas à medida que monitoramos as doações e avaliamos os riscos, quer tenhamos sido confiantes demais, quer a nossa abordagem confiante no estilo “viva e deixe viver” tenha se mostrado errada. Simplesmente nos permitimos ser encantados por líderes de organizações que fazem um excelente trabalho e se envolveram tão profundamente com seus relatórios que deixamos passar questões críticas sobre cultura organizacional que também atingem o coração da justiça social? Estaríamos suficientemente interessados em aprender mais sobre os valores e a ética dentro das organizações que financiamos ou estaríamos fazendo suposições sobre esses valores e nos concentrando na mudança externa que queríamos ver dentro das comunidades marginalizadas?

Hoje, estou mais interessada no modo como meus colegas e nossos parceiros doadores articulam seus valores, especificamente em termos de justiça racial e justiça de gênero. Ainda não se acredita nas mulheres e muitas vezes elas são vitimadas dentro das nossas organizações de justiça social, quando sempre presumimos que a vitimização secundária acontece “lá fora”, no sistema de justiça criminal, com a polícia, magistrados e juízes. Não, isso está acontecendo em organizações de justiça social, onde todo um setor pode difamar uma mulher que se manifestou contra um líder poderoso.

Quando comecei a conversar com outras mulheres líderes no campo da filantropia de justiça social, logo ficou claro que nenhuma de nós quer ser acusada de ser cúmplice em casos de discriminação racial, intimidação ou assédio sexual dentro das organizações que financiamos. No entanto, também estamos conscientes de que em nossos próprios papéis estamos lidando com questões de poder, sexismo e racismo que muitas vezes nos deixam confusas e nos perguntamos se teríamos legitimidade para instruir grupos da sociedade civil sobre como devem se comportar ou lidar com o assédio sexual ou racismo, se nossas próprias instituições não têm políticas e práticas internas claras. Em última análise, a forma como as instituições doadoras lidam com alegações de assédio sexual ou discriminação racial diz muito sobre como lidamos com nosso próprio poder – nós terminamos relacionamentos com organizações beneficiárias, terminamos contratos de concessão, nos dissociamos da instituição beneficiada ou ajudamos a instituição a navegar águas tempestuosas? Onde traçamos os limites? Existiriam limites e como justificamos nossas decisões e a forma como respondemos às denúncias dentro das organizações parceiras? Estaríamos tão dispostos a desafiar normas e culturas racistas ou sexistas em nossas próprias instituições filantrópicas, que podem estar reforçando uma visão de mundo estadunidense, branca, de classe média, formada por intelectuais, progressista, como quando desafiamos as normas racistas e sexistas que observamos dentro das organizações parceiras da sociedade civil na África do Sul?

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4. Priorizando uma agenda transformadora

Como decidimos as estratégias e políticas internas de nossas organizações? A decisão sobre onde focaremos a nossa atenção é uma forma de poder. Como o poder é distribuído dentro da organização quando importantes mudanças estratégicas ou prioridades estão sendo decididas? E a quem respondemos por essas decisões? Sabemos que o poder, por vezes, pode ser percebido como sendo partidário, autoritário e ditatorial, mas isso não é fato. O poder pode e deve ser exercido para o bem, quando feito de maneira ponderada, que reconheça nosso privilégio institucional e pessoal e esteja alinhado com a missão e os valores da justiça social. Podemos criar um cardápio onde a dignidade, a igualdade e a justiça estejam no cerne de tudo o que servimos aos nossos convidados – onde priorizamos e nos posicionamos contra as práticas patriarcais racistas em todas as suas manifestações.

Por exemplo, um ano atrás, o presidente da Fundação Ford, Darren Walker, um homem afro-americano gay percebeu que a fundação precisava realmente questionar nossas próprias práticas em torno da diversidade, inclusão e equidade em todo o mundo, incluindo como lidamos com questões de discriminação e assédio sexual internamente e em nossas relações de concessão. Fazer com que o líder no mais alto nível enxergue isso como uma prioridade era importante em nível institucional e nos permitiu aprofundar o entendimento sobre nossas próprias práticas e o que precisávamos consertar.

Para viver nossos valores de justiça social, iniciamos um processo de introspecção e nos perguntamos:

  • Nosso conselho, liderança e equipe em todo o mundo refletem as comunidades que servimos, não apenas em termos de raça, etnia e gênero, mas também em termos de suas experiências de marginalização? Todos eles refletem o privilégio e o poder da classe média ou não?
  • Quão diversos são os nossos funcionários em termos de nível de renda, riqueza e poder, inclusive no nível do conselho de administração? Também analisamos como os funcionários são diversos em termos de raça, etnia, gênero, LGBTQ, status de deficiência e idade.
  • Seria a equipe da fundação culturalmente competente e capaz de exercer a humildade cultural? Aqui, a humildade cultural nos encoraja a identificar nossos próprios preconceitos e a reconhecer que esses preconceitos devem ser reconhecidos, compreendidos e tratados particularmente em termos de viés implícito.
  • Deveríamos solicitar sugestões confidenciais ou anônimas de doadores e como correlacionamos isso com as experiências da equipe dentro da Fundação em termos de metas de transformação de raça e gênero? Estaríamos solicitando as mesmas informações e sugestões internamente e externamente para verificar a consistência em nossas abordagens?
  • Como lidamos com assédio sexual ou casos de discriminação no passado – uma cultura de silenciamento de sobreviventes permeia nossa instituição? Seria necessário alterar nossas políticas internas sobre acordos de não divulgação? Estaríamos adotando uma abordagem centrada na sobrevivência em casos de assédio sexual?
  • Como pensamos sobre as relações pessoais consensuais dentro da instituição?
  • Quão comprometidos somos, como instituição, em criar um ambiente de trabalho seguro e livre de discriminação? Deveríamos investigar o comportamento passado ao recrutar? Em que medida precisaríamos começar a nos importar com a conduta pessoal e privada (violência doméstica, assédio sexual ou insultos racistas fora do horário de trabalho e na privacidade de suas casas/contas de mídia social)?

Essas perguntas difíceis levaram à revisão de muitas de nossas políticas relacionadas à discriminação e ao assédio sexual e abriram um debate sobre o padrão que esperamos de nossos funcionários, fornecedores, contratados e consultores. As mudanças que foram feitas em nossas políticas refletiram o fato de termos ouvido o que os movimentos feministas em todo o mundo estavam dizendo sobre coisas como abordagem centrada no sobrevivente, por que as mulheres têm medo de falar e o efeito silenciador dos acordos de não divulgação. Também fizemos uma extensa pesquisa interna entre os funcionários para avaliar como a equipe se sentia em relação à diversidade, equidade e inclusão. A transparência com a qual compartilhamos os resultados desta pesquisa em grande escala99. “Diversity, equity, and inclusion,” Fundação Ford, 2018, acesso em 28 de novembro de 2018, https://www.fordfoundation.org/about/people/diversity-equity-and-inclusion/; Meg Morrison e Chris Cardona, “Making it Count: The evolution of Ford Foundation’s Diversity Data.” The Center for Effective Philanthropy, 20 de setembro de 2018, acesso em 28 de novembro de 2018, https://cep.org/making-it-count-the-evolution-of-the-ford-foundations-diversity-data-collection/. foi renovadora, porque iniciou uma conversa sobre a questão do pertencimento – percebemos que as políticas revisadas e a liderança baseada em princípios, embora criticamente importantes, não são suficientes para realmente mudar a cultura que cria “pessoas que pertencem a um ambiente” e “pessoas excluídas” dentro de uma grande instituição global. Os líderes podem priorizar ou descartar a importância dessas questões e, assim, sinalizar o tipo de cultura aceitável, mas esse “recado” por parte da liderança não é suficiente – ele ainda precisa ser monitorado e implementado de tal forma que responsabilize indivíduos e instituições. Essa tarefa é algo que eu assumi como líder feminista negra em se tratando do escritório que lidero. Minha perspectiva pessoal impulsiona minha agenda institucional. Algumas organizações da sociedade civil, no entanto, não priorizam raça e gênero em suas políticas internas ou discussões porque alegam estarem ocupadas demais lutando contra o que realmente importa. Mas nunca haverá questões que realmente importam se a toxicidade e o preconceito permeiam os corredores internos onde o trabalho de justiça social é feito.

Pesquisas mostram que organizações que demonstram diversidade em nível gerencial, têm funcionários que agem de maneira menos preconceituosa e são menos propensas a vivenciarem a discriminação nas suas interações no local de trabalho.1010. Michele J. Gelfand, Lisa Hisae Nishii, Jana L. Raver, e Benjamin Schneider, “Discrimination in Organizations: An Organizational-Level Systems Perspective.” Cornell University, School of Industrial and Labor Relations, Center for Advanced Human Resource Studies, 2007, acesso em 28 de novembro de 2018, https://pdfs.semanticscholar.org/7b00/3970de2d9527290fc6efa954a26984693aec.pdf. Além disso, a proporção de pessoas negras em posições de gerência mais alta também demonstrou ter um efeito positivo sobre as contratações subsequentes de mulheres e negros em cargos de gerência de nível inferior.1111. Frank Dobbin e Alexandra Kalev, “Why Diversity Programs Fail,” Harvard Business Review 94, no. 7 (2016): 14. Portanto, o comprometimento da liderança com a diversidade e a inclusão continua sendo uma peça fundamental do quebra-cabeça e pode ter um efeito cascata.

No entanto, isso não é algo que acontece automaticamente ou imediatamente. Mudanças nas políticas, aumento da diversidade e definição do tom em torno do assédio sexual e de qualquer forma de discriminação são de fato essenciais em termos da definição de uma declaração de valores pela liderança. No entanto, uma simples mudança de política e um punhado de líderes negros dentro de uma grande organização não mudam profundamente as atitudes racistas ou patriarcais da noite para o dia, e nós, da Fundação Ford, também vivemos essa experiência. Sabemos que o trabalho que precisamos fazer internamente em nossa organização e externamente com os parceiros transcende as mudanças de políticas e os líderes que temos. A próxima fronteira nos obriga a sair do campo das políticas progressistas (no papel) e migrar para uma prática que não negue que a discriminação e o preconceito possam existir e existem dentro das organizações de justiça social. Argumentei em outra ocasião1212. Naylor, “Social Justice Organizations Are Not Squeaky Clean, And We Must Do Better,” 23 de maio de 2018. que qualquer um de nós que faça parte do setor social tem por ele o mesmo grande respeito, e o considera acima do bem e do mal. Então, quando nossos heróis nos decepcionam, exploram ou prejudicam, nós fingimos que nada está acontecendo, entramos em modo de negação e permanecemos em silêncio. Isto equivale ao silêncio mantido no caso de abusos em família por medo da vergonha que esse tipo de denúncia pode trazer. Ou talvez, mais perigosamente, estamos em negação sobre a existência de violência e dos abusos dentro de nossos espaços “sagrados” de justiça social. Por enquanto, o preço que se paga por falar é alto demais e as mulheres correm o risco de serem desacreditadas e difamadas pela sociedade. A esse respeito, precisamos aplaudir as bravas mulheres que falam e desafiam o patriarcado e o racismo interna e externamente nos espaços de justiça social, porque uma cultura de silêncio encoraja uma cultura de impunidade. As mulheres só podem começar a desfrutar do poder coletivo quando tiverem voz e se sentirem seguras para falar.

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5. Potência e voz

Todas nós já estivemos em um jantar onde uma pessoa domina a conversa, interrompendo, explicando coisas que já sabemos de maneira paternalista, sendo irritante, racista, sexista e arrogante. Esta pessoa pode tentar agarrar ou abraçar as mulheres no jantar um pouco mais do que o estritamente necessário, assume o controle da conversa tentando leva-la na direção que prefere, enquanto brada outras opiniões. É um mal ouvinte e, eventualmente, as pessoas se afastam desta pessoa, na linguagem corporal e na conversa. A maioria dos convidados na mesa de jantar pode, eventualmente, conseguir silenciá-lo simplesmente ignorando-o e tomando o controle da mesa. Tal golpe é facilitado por um alinhamento de valores e um desprezo geral por essa única pessoa na mesa. Isso tem o potencial de catalisar todos em um momento organizativo em que coletivamente tomam o poder e a noite é salva.

Mas isso se torna muito mais difícil quando esse homem é o anfitrião e o dono da casa: a pessoa com todos os recursos e o poder de contratar ou demitir ou de conceder uma doação de um milhão de dólares. Os indivíduos estão, então, menos dispostos a tentar retomar o poder e podem simplesmente optar por suportar a noite e a conduta abusiva porque precisam do emprego e/ou do recurso.

De fato, essa dinâmica ocorre nas organizações de justiça social e na filantropia, onde um líder silencia e afasta as mulheres negras ou as trata com indulgência, levando-as a pedir demissão ou a partir repentinamente, sentindo-se incapazes de lidar com a situação, incompetentes ou incapazes de se ’ajustar culturalmente’ à instituição filantrópica ou de justiça social. Portanto, devemos ter claro que o fato de uma fundação possuir uma diretoria e funcionários negros ou indígenas, mulheres, LGBTQ e/ou ter uma deficiência não é suficiente porque isso pode não mudar valores e cultura em termos de uma cultura organizacional estabelecida de acordo com valores brancos, masculinos e heteronormativos. Essa cultura e privilégio incorporados, aparentemente invisíveis, podem continuar a informar como uma organização decide o que é “normal”, “bom”, “eficaz” ou “arriscado”1313. Gita Gulati-Partee e Maggie Potapchuk, “Paying Attention to White Culture and Privilege,” The Foundation Review 6, no. 1 (2014): 25-38, acesso em 28 de novembro http://www.racialequitytools.org/resourcefiles/2_Gulati_AB3.pdf. e determinar quem é recompensado como sendo um funcionário valioso e quem é ignorado ou tornado invisível.

6. A cultura importa: quem serve o chá e quem é invisível?

Como jovem advogada recém-formada e entrando em um grande ambiente legal corporativo onde eu fazia parte do pequeno grupo de advogados negros, fiquei impressionada com o fato de clientes brancos na África do Sul terem entendido automaticamente que eu estava lá para tomar notas e sempre presumirem que os homens brancos na sala eram os verdadeiros advogados. Isso foi em 1999 na África do Sul e naqueles primeiros dias como advogada iniciante lidei com a noção de invisibilidade, raiva e vulnerabilidade todos os dias. Eu me lembro vividamente de um encontro: Um advogado branco sênior durante uma reunião pré-julgamento pediu chá e café para a sua recepcionista. Uma mulher negra vestida de uniforme entrou na sala com uma bandeja e a deixou sobre a mesa para os seis convidados brancos e do sexo masculino. Ela saiu da sala e o advogado se virou para mim enquanto eu tentava fazer minhas anotações. Então esse advogado fez o impensável; Ele acenou com a cabeça para o chá fazendo um gesto para cima para mim como se dissesse: “vá até lá, sirva-nos o chá”. Eu me senti mortificada e ele não disse uma palavra, apenas sacudiu a cabeça na direção da bandeja de chá. Eu tinha um dilema: se parasse de fazer anotações, causaria a ira de meu chefe depois da reunião e, se não me levantasse para servir o chá, incorreria na ira do advogado principal. Então, o que eu fiz? Como advogada recém-formada, no meu primeiro emprego em um escritório de advocacia bastante branco e como a única pessoa negra na sala, eu não disse nada, evitei contato visual com o advogado sênior e continuei tirando alguns minutos – fervendo lá dentro. Eventualmente, o advogado sênior explodiu para mim “Nikki você poderia nos servir o chá. Ele está esfriando“. Comecei a executar a tarefa de servir o chá para cada um dos homens, minhas mãos tremendo e a raiva interior me consumindo. Não importava o fato de eu ter me formado em direito, tampouco meu status de advogada na sala, eu era a mulher negra mais jovem na sala e os séculos em que minhas ancestrais serviram homens brancos ainda permeavam a sala exigindo que eu servisse o chá, ficasse em silêncio, fizesse anotações e fosse vista, mas não ouvida. Ninguém pediu minha opinião, meus pensamentos, minha perspectiva. Eu tinha um lugar na mesa porque estava trabalhando em um caso muito importante diante da Suprema Corte, mas eu também era invisível e ninguém que trabalhou nesse caso se lembraria do meu nome ou dos meus pontos de vista porque eu era a mulher silenciosa servindo chá e escrevendo páginas e páginas de anotações. Durante meses depois desse incidente, eu o revivi em meus pensamentos e imaginei como poderia ter reagido de maneira diferente em relação à raiva eloquente que senti, momento em que eu apontaria o racismo e o sexismo que havia sofrido. Mas naquele dia, muitas vidas atrás, eu não tinha absolutamente nenhuma autoconfiança para expressar tudo isso nesta estranha sala com pessoas que não se pareciam comigo, não soavam como eu ou compartilhavam alguma experiência que eu já houvesse vivido. Eu não tinha as ferramentas para circular em espaços brancos ou lidar com privilégios brancos e eu realmente queria ser “boa” e não ser rotulada como “criadora de problemas”, então não falei nada.

Hoje, trago a história e o contexto acima para as reuniões e julgo as pessoas com severidade quando percebo um homem branco dominando uma conversa, ao lado de outro membro da equipe negro e silencioso – eu faço questão de apontar isso e provavelmente demonstro todo o viés implícito na minha tomada de decisões. Eu também tenho a tendência de me apaixonar por mulheres negras fortes que articulam suas necessidades e discutem sobre mudanças sistêmicas, e então eu tento encontrar maneiras de apoiar e financiar seu trabalho. Eu não sou neutra – eu tenho uma lente feminista1414. A maneira complexa e cumulativa como os efeitos de múltiplas formas de discriminação (como racismo, sexismo e classismo) se combinam, se sobrepõem ou se cruzam, especialmente nas experiências de indivíduos ou grupos marginalizados. interseccional e a trago comigo para o trabalho todos os dias junto com minha bagagem histórica, onde baseio o meu próprio caminho e meu compromisso com a justiça social. Eu também denuncio o privilégio branco dentro da minha instituição e em espaços onde eu o percebo porque posso e porque sei que serei ouvida devido ao meu poder relativo na organização, então estou muito mais disposta a “criar problemas” e ser a mulher impopular com aquelas reclamações amargas.

Por tanto, dentro da Fundação Ford estou muito mais curiosa sobre a cultura e aqueles com os quais temos relações de financiamento – teriam eles culturas de silêncio e medo ou proporcionariam um ambiente onde o debate, as diferentes opiniões e os espaços seguros são nutridos e encorajados pela liderança? Quem está incluído nas discussões sobre gestão estratégica e operacional? Qual é a composição da equipe de gerenciamento que lidera a organização?

Nos últimos meses, muitas ativistas negras sexualmente assediadas na África do Sul falaram sobre as maneiras pelas quais o racismo institucional e estrutural e o sexismo na África do Sul continuam a vitimar as mulheres dentro das organizações que lutam por justiça social. Elas falaram com igual intensidade da raiva, do desespero e da vulnerabilidade. Sobre como todos, dentro da organização e do setor mais amplo, sabiam sobre o assédio sexual que ocorria pela equipe sênior, mas que ninguém estava fazendo nada a respeito além de uma rede de mulheres que assumiram a responsabilidade de alertar aos recém-chegados na organização e às mulheres mais jovens para que ficassem longe do agressor.1515. “Wolves in Sheep’s Clothing,” Civil Society Lawyers, 28 de maio de 2018. Eles também fazem referência a culturas dentro de movimentos proeminentes, onde relacionamentos consensuais sexualizados, bem como o assédio sexual quid pro quo ocorrem nos níveis mais altos. No entanto, quando as mulheres se queixam, elas são rotuladas como problemáticas; não dedicadas à causa e como se sua disposição fosse a de destruir o movimento e seus líderes masculinos.

A regra tácita de que as mulheres negras não devem falar sobre abuso ou sobre a violência perpetrada por seus colegas que lutam a mesma batalha ao seu lado permanece real no espaço de justiça social. Embora elas estejam começando a falar de maneira consistente e corajosa, elas não são ouvidas ou suas histórias não são levadas à sério, o que deixa claro que temos um longo caminho a percorrer. A noção de que deveríamos estar protegendo nossos irmãos homens do sistema de justiça criminal racista enquanto eles nos assediam ou violam precisa ser questionada. Isso não significa que aceitaremos um sistema de justiça criminal racista que trace perfis, metas e criminalize homens e mulheres negras e negros por sua cor; podemos e devemos abordar o sistema racista de justiça criminal e o abuso de poder, na medida em que se desenrola no contexto dos homens negros. E também podemos responsabilizar nossos homens e companheiros negros por suas ações de violência contra as mulheres. Vivemos em uma cultura punitiva em que a má conduta masculina negra é dramatizada e sexualizada pelas próprias instituições responsáveis pela justiça, assim como a vitimização feminina negra é exagerada e instrumentalizada sobre o poder e a agência das mulheres negras. Nossa análise do sexismo racista e do racismo sexista deve ser, portanto, suficientemente matizada para entendermos que ela tem mulheres e homens negros desfavorecidos e que essas desvantagens têm diferentes contornos e diferentes implicações materiais.

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7. Deveríamos estar ajudando as organizações ricas a se tornarem mais negras… ou as organizações negras a se tornarem mais ricas?

Um recente Guia Grantcraft sobre Diversidade, Igualdade e Inclusão1616. Barbara Chow, “From Words to Action: A Practical Philanthropic Guide to Diversity, Equity and Inclusion.” Grantcraft Leadership Series publicado por the Foundation Center, 2018, acesso em 28 de novembro de 2018, www.grantcraft.org. aponta que durante uma entrevista, um líder de uma organização sem fins lucrativos observou secamente que havia percebido um interesse crescente em “ajudar organizações ricas a se tornarem mais negras”, mas fez uma pergunta bastante provocativa sobre por que as fundações também não ajudavam “as organizações negras a se tornarem mais ricas” A desigualdade histórica favorece certos tipos de organizações, ajudando-as a se tornarem mais fortes e efetivas. Por sua vez, as estratégias das fundações tornaram-se ligadas a um conjunto de organizações de alto desempenho que nem sempre são particularmente diversas. Em outras palavras, o universo conhecido é o que informa as estratégias de doação. Portanto, precisamos nos perguntar: estariam as nossas abordagens institucionais fundamentadas em tornar organizações ricas, bem estabelecidas e importantes, (também conhecidas como “as de sempre”) mais negras, ou estaríamos encontrando e fortalecendo organizações lideradas por homens e mulheres negros e pardos? Esta é uma questão crítica em se tratando de duas abordagens muito diferentes para financiar a transformação das questões de gênero e raça não apenas substituindo um líder branco por um líder negro, mas também transformando a cultura e questionando a história, o privilégio e o poder institucionais juntamente com missão e valores.

Em última instância, é importante incorporar uma análise de raça, gênero e classe dentro das práticas de doação das equipes em todos os níveis de uma organização como um precursor essencial para mudanças significativa tanto interna como externamente. Para superar as tendências implícitas, as equipes devem ser encorajadas a pensar deliberadamente sobre o viés pessoal individual e estabelecer “pesos e contrapesos” apropriados sobre o poder do coordenador ou diretor do programa para proporcionar espaço para tomada de decisões coletivas e um sistema de prestação de contas e transparência para a sociedade civil. No entanto, isso só pode funcionar em espaços de ideias e opiniões diversas e em que as pessoas se sintam seguras para discordar daqueles que estão no poder sem enfrentar as consequências em termos de segurança no emprego ou garantia da sua integridade.

Até que ponto estamos confortáveis em ter uma conversa difícil e apontar aspectos de privilégio e poder brancos que estão presentes em nossa própria cultura institucional ou dentro da cultura dos parceiros que apoiamos? É fundamental criar espaços seguros que nos permitam questionar se nossas organizações usam inconscientemente características de privilégio/supremacia branca como normas e padrões que, por sua vez, tornam difícil, se não impossível, abrir as portas para outras normas e padrões culturais no local de trabalho ou nos grupos que escolhemos financiar.

Por exemplo, muitas organizações filantrópicas dizem que desejam ser multiculturais e abraçar a diversidade, mas só permitem que pessoas e culturas diversas entrem se estas se adaptarem às normas culturais institucionais já existentes para poder pertencer a este lugar. Isto aparece com frequência em frases como: “Será ela uma boa opção para a nossa instituição”? Ou ainda as seguintes frases serão ouvidas sobre a mulher negra africana bem-sucedida: “ela é muito eloquente” e “não é encrenqueira, se dá bem com todos e está fazendo muitos amigos – integrando-se à cultura”. Em relação às mulheres negras africanas que adentram em locais de trabalho ligados à justiça social e saem pouco tempo depois, frequentemente ouviremos frases como: “ela não deu conta”, “não conhecia suas próprias limitações”, “ela era briguenta e muito brava/muito assertiva/muito mandona” ou “ela era tão quieta, nunca contribuía e não falava em reuniões” ou “ela não era capaz de tomar a iniciativa, precisava de orientações demais e não conseguia se integrar à equipe”. Se você conversar com mulheres negras que saem desses espaços, quase sempre lhe contaremos, se você se dispuser a ouvir, que nos sentíamos como se não pertencêssemos àquele local, um espaço onde ninguém é capaz de enxergar as coisas sob a perspectiva de raça ou gênero, mas todos nos acusam de fazer com que tudo gire ao redor das questões de raça e gênero. Nós lhe diremos que era esperado de nós que nos adaptássemos e que não apontássemos os problemas, e que este espaço nunca foi pensado para que nos sentíssemos bem-vindas sob o ponto de vista da nossa própria cultura, além de nunca ter sido perguntada a nossa opinião. A coisa mais comum que você escutará, caso se disponha a tanto, é que nos deixaram sozinhas, ignoradas, fomos tornadas invisíveis e não recebemos orientações de ninguém. Ser capaz de definir o que significa sucesso e qual é o padrão que estabelecemos para as pessoas é particularmente importante quando usamos linguagem “codificada” e vaga para definir o sucesso, muitas vezes envolta em preconceito implícito ou racismo institucional em torno da capacidade das mulheres negras de desempenharem bem o seu trabalho. Precisamos identificar, debater e nomear essas normas culturais e padrões de desempenho dentro de nossas organizações como um primeiro passo para criarmos espaços para o desenvolvimento de uma organização multicultural verdadeiramente diversa, onde a dignidade e o respeito permeiam tudo o que fazemos.

8. Conclusão: Recalibrando

Em um mundo onde as políticas de divisão, polarização, populismo de direita, sexismo e racismo estão na ordem do dia é comum encontrar em locais de trabalho (sim, inclusive locais de trabalho ligados à justiça social) práticas de exclusão presentes na sociedade mais ampla. Isso só pode ser combatido se houver um compromisso explícito de questionar a política de quem somos e o que fazemos. Precisamos abordar e interrogar explicitamente valores, ética e culturas dentro de nossas instituições.

As fundações que levam a sério as questões de discriminação e diversidade, equidade e inclusão precisam partir da autorreflexão e de uma profunda introspecção sobre suas próprias práticas e preconceitos. Precisamos examinar como trabalhamos, com quem trabalhamos e com o quê trabalhamos em se tratando das questões que priorizamos. Precisaremos também questionar o perfil organizacional e a cultura para além dos dados numéricos sobre a diversidade. Precisamos de uma análise muito mais profunda das histórias sócio-políticas e culturais do racismo estrutural e do sexismo e uma compreensão contextual dos níveis de responsabilidade por parte de nossas próprias instituições de justiça social. A jornada em direção a um setor de justiça social transformado e maior não é linear, é um caminho confuso e sinuoso muitas vezes. Não há um cronograma estabelecido, mas sabemos que isso não acontece da noite para o dia ou mesmo no espaço de alguns anos através da adoção de soluções rápidas, como políticas sobre assédio sexual ou alguns subsídios relacionados à diversidade. Exige profunda aprendizagem e introspecção em todos os níveis das instituições e entre a filantropia e os atores da sociedade civil.

Todas/os nós precisamos admitir que não temos todas as respostas e somos de fato responsáveis pelo lento progresso que estamos assistindo em relação à luta pela justiça racial e de gênero. Podemos começar comprometendo-nos a: nos habituarmos à sensação de desconforto; às conversas difíceis e sinceras sobre valores culturais e preconceitos implícitos e explícitos que trazemos para a filantropia da justiça social e para a sociedade civil. Podemos continuar nos examinando para descobrir quem estamos tornando invisíveis ou excluindo em nossos próprios espaços seguros e, o mais importante, podemos questionar a definição de “seguro” sob uma perspectiva interseccional de raça, classe e gênero.

Nicolette Naylor - África do Sul

Nicolette Naylor é advogada e especializou-se em Direitos Humanos Internacionais. Atualmente, ela exerce a posição de Diretora Regional do Escritório da Fundação Ford para a África Austral e anteriormente trabalhou como Diretora do Programa de Direitos Humanos e Governança. Nicolette também passou a primeira parte de sua carreira atuando na área de direito societário e direito público trabalhando para uma organização feminista, a Women's Legal Centre, na África do Sul e para uma organização global de direitos humanos, a INTERIGHTS, em Londres.

Recebido em Outubro de 2018.

Original em Inglês.