O Dossiê Sur sobre armas e direitos humanos

Armas como política externa: o caso brasileiro

Camila Asano e Jefferson Nascimento

Como a sociedade civil no Brasil pode influenciar o controle de exportação de armas?

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RESUMO

Como organizações da sociedade civil podem influenciar o controle de exportação de armas exercido pelos Estados por meio da democratização da política externa? Neste artigo, os autores exploram formas de impulsionar o estabelecimento de mecanismos efetivos e transparentes nesta seara, que levem direitos humanos a sério. Analisam-se aqui dois estudos de caso: primeiro, a participação tímida do Brasil no processo de estabelecimento de normas multilaterais de controle de transferências de armas; e, segundo, o uso da doação de material bélico como ferramenta das relações bilaterais entre Brasil e Moçambique e suas implicações para o controle de armamento.

Palavras-Chave

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Em 2012, o Brasil exportou uma média diária de US$ 1,024 milhão em armas pequenas.11. Keith Krause, “Small Arms Survey 2015: Weapons and the World,” Small Arms Survey, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1l70seN. No mesmo período, cerca de 116 pessoas morreram por dia no país vítimas de armas de fogo.22. Julio Jacobo Waiselfisz, “Mapa da Violência 2015: Mortes Matadas por Armas de Fogo,“ Mapa da Violência, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1eTBSu8. Como organizações da sociedade civil podem pressionar Estados a estabelecer mecanismos efetivos e transparentes de controle de exportação de armas que levem direitos humanos a sério?

Neste artigo, partimos da ideia de que o trabalho com política externa e direitos humanos pode ser uma ferramenta eficaz de implementação e aprimoramento do controle de armas. Isso pode ser verificado tanto no plano global – por meio do estabelecimento de normas de regulação –, quanto no âmbito nacional – por intermédio do fortalecimento de mecanismos domésticos muitas vezes pautados por visões excessivamente ligadas à ideia de segurança nacional. Para ilustrar os desafios nos planos multilateral e bilateral, utilizaremos aqui dois estudos de caso: primeiro, a participação tímida do Brasil no processo de estabelecimento de normas multilaterais de controle de armas convencionais; e, segundo, a transparência das relações bilaterais entre Brasil e Moçambique e suas implicações para o controle de armas. Ao final, apresentamos algumas propostas de estratégias e atuação direcionadas principalmente ao trabalho de organizações da sociedade civil. Essas propostas terão como base as estratégias de ação já desenvolvidas pela Conectas Direitos Humanos em outras oportunidades.33. Camila Lissa Asano, “Política Externa e Direitos Humanos em Países Emergentes: Reflexões a Partir do Trabalho de Uma Organização do Sul Global,“ SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos 10, no. 19 (dezembro de 2013): 119.

1. Brasil: Grande produtor e vítima de armas pequenas e munições

O Brasil é um país peculiar44. Pablo Dreyfus, Benjamin Lessing e Julio Cesar Purcena, “A Indústria Brasileira de Armas Leves e de Pequeno Porte: Produção Legal e Comércio,” Brasil: As Armas e As Vítimas 7 (2005): 64-125. que possui simultaneamente altos índices de violência armada e um considerável complexo industrial de armas pequenas – especialmente revólveres e pistolas. Segundo dados da Unesco,55. Waiselfisz, “Mapa da Violência 2015”. o Brasil registrou mais de 42 mil mortes cometidas por armas de fogo em 2012. O mesmo estudo indica um crescimento de 387% no número de vítimas fatais decorrente de armas de fogo entre 1980 e 2012, número que sobe para 463% se considerado o grupo de jovens entre 15 e 29 anos.

Ao mesmo tempo, o Brasil é o quarto maior exportador mundial de armas pequenas66. Krause, “Small Arms Survey 2015”., decorrência direta da existência de uma indústria de armas de pequeno porte próspera e influente, resultado de políticas de fomento nos anos 70,77. Dreyfus, Lessing e Purcena, “A Indústria Brasileira de Armas Leves e de Pequeno Porte,” 65. durante o período de ditadura militar no país (1964-1985). Atualmente, a crise econômica na qual o Brasil se encontra tem propiciado, por parte do governo brasileiro, novos incentivos à indústria nacional de defesa, calcada no discurso de desenvolvimento tecnológico e suposto alto valor agregado das exportações de armamentos.88. Um exemplo desse discurso pôde ser vislumbrado em audiência pública sobre situação atual da indústria de defesa brasileira e os projetos estratégicos do setor de defesa brasileiro, realizada no Senado Federal do Brasil em 17 de setembro de 2015. Na ocasião, Sami Hassuani, presidente da Avibras Indústria Aeroespacial e Presidente da Associação Brasileiras das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança – ABIMDE, destacou sobre a importância da indústria de defesa no atual contexto de crise econômica no Brasil, indicando que a indústria de defesa geraria 10 reais para cada um real investido. Mais informações: http://bit.ly/1WKIaRy. A influência e importância desta indústria no Brasil ficam claras em iniciativas como o desenvolvimento de blindado sobre rodas,99. Cristiano Mauri da Silva, “O Desenvolvimento da Base Industrial de Defesa no Brasil: Atuação das Forças Armadas,” Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1QrM4JO. sistemas de artilharia de mísseis e foguetes de médio alcance (300 quilômetros)1010. José Carlos Albano Amarante, “Processos de Obtenção de Tecnologia Militar,” Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1QrMwrN. e, principalmente, o projeto de uma aeronave de grande porte multimissão (Embraer KC-390)1111. Richard A. Bitzinger, “Brazil’s Re-emerging Arms Industry: The Challenges Ahead,” RSiS, acesso em 1 dezembro 2015, https://www.rsis.edu.sg/rsis-publication/rsis/co14195-brazils-re-emerging-arms-industry-the-challenges-ahead/#.VnIK2DbG5EI. e a compra, com transferência de tecnologia, de aeronaves supersônicas.1212. Para mais informações sobre o apoio institucional ao fortalecimento da indústria de defesa no Brasil, ver “Livro Branco da Defesa Nacional”, Ministério da Defesa, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1QrLvjd.

Essa dupla condição – de ator no mercado global de armas convencionais e altos índices de violência armada – posiciona o Brasil como local privilegiado para pensar o papel da política externa como ferramenta para aprimoramento do respeito a direitos humanos em matéria de controle de armas, seja no plano nacional ou internacional.

Este artigo identifica política externa como política pública, em linha com a produção acadêmica nos últimos 10 anos na área de Análise de Política Externa (APE).1313. Michelle Ratton Sanchez et al. “Política Externa Como Política Pública: Uma Análise pela Regulamentação Constitucional Brasileira (1967-1988),“ Revista de Sociologia Política (novembro de 2006): 125-143; Carlos Milani e Letícia Pinheiro, “Política Externa Brasileira: Os Desafios de sua Caracterização como Política Pública,“ Contexto Internacional (janeiro/junho 2013): 11-41. Em termos práticos, falar em política externa como política pública envolve lidar com um processo multietapas – pautado por formulação, decisão, implementação e avaliação –, baseado em controle democrático, participação social, transparência e prestação de contas.1414. “Política Externa e Direitos Humanos: Estratégias de Ação Para a Sociedade Civil”, Conectas Direitos Humanos, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1QrNrse.

Partindo de nosso trabalho no Brasil, onde há a previsão constitucional que preceitua que as relações internacionais do Brasil deverão ser regidas pela “prevalência dos direitos humanos”,1515. Conforme Art. 4°, II, da Constitucional Federal do Brasil. aceitamos como pressuposto que cabe à sociedade civil demandar transparência do governo na formulação e implementação de políticas nesse setor. Ou seja, cobrar o respeito aos direitos humanos em todas as decisões de política externa não se restringe, no contexto brasileiro, a uma questão abstrata, mas constitui um compromisso constitucional. A falta de transparência no controle de exportações de armas efetuado pelo Brasil é outro elemento que torna relevante a análise do contexto local, conforme se verá a seguir.

Abaixo, analisaremos os desafios da atuação em política externa, direitos humanos e controle de armas no Brasil a partir de duas situações concretas: a primeira, envolvendo o estabelecimento de normas multilaterais de controle de armas convencionais (e a tímida participação do Brasil neste processo); a segunda, referente diretamente a relações bilaterais e suas implicações para o controle de armas entre Brasil e Moçambique, no marco da cooperação sul-sul.

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2. Tratado sobre Comércio de Armas: Impacto dos padrões internacionais no aprimoramento dos processos nacionais

O Tratado sobre Comércio de Armas (TCA, ou ATT por sua sigla em inglês) é o primeiro acordo de âmbito global a estabelecer normas para transferências internacionais de armas convencionais, um mercado de cerca de US$ 80 bilhões1616. A partir das informações disponibilizadas pelos Estados sobre os valores monetários de suas exportações de armas, o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) estima que o mercado global de armamentos movimentava US$ 76 bilhões em 2013, ainda que esse número provavelmente fosse maior por conta da fragmentação dos dados e falta de transparência dos governos. Para mais informações, ver “The Financial Value of the Global Arms Trade,” SIPRI, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/17ZQ5Do. que, hoje, possui baixa regulamentação. Resultado de mais de duas décadas de mobilização de governos e mais de uma centena de organizações da sociedade civil, o TCA abrange as sete categorias de armamentos previstas pelo Registro da ONU de Armas Convencionais (UNROCA) – tanques de guerra; veículos de combate blindados; sistemas de artilharia de grande calibre; aeronaves de combate; helicópteros de ataque; navios de guerra; e misseis e lançadores de mísseis – além de armas pequenas e leves, os principais instrumentos utilizados em homicídios no mundo. O TCA foi aprovado na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas no dia 2 de abril de 2013, com o voto favorável de 154 países,1717. “Brasil é um dos Primeiros a Assinar o Tratado sobre Comércio de Armas na ONU,” Conectas Direitos Humanos, acesso em 1 dezembro 2015, http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/brasil-e-um-dos-primeiros-a-assinar-o-tratado-sobre-comercio-de-armas-na-onu. e aberto a assinaturas em junho do mesmo ano.

O Brasil apoiou timidamente o Tratado sobre Comércio de Armas durante o processo de negociação do acordo.1818. “Brasil e o Arms Trade Treaty: Impacto e Importância de um Tratado Humanitário,” Instituto Sou da Paz, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1Llfq7f. Em uma região marcada por elevados índices de violência armada, decorrente do expressivo número de armas em circulação, e parco controle no meio urbano, o Brasil não figurou entre as lideranças na América Latina durante as discussões preparatórias para o Tratado sobre Comércio de Armas. Por outro lado, entre os países da região, Argentina, Costa Rica e México exerceram o papel de protagonistas durante as negociações.1919. “Four Reasons Why Latin American Countries Should Sign and Ratify the ATT,” Parliamentarians for Global Action, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1LPf9in. Não obstante, o Brasil assinou o TCA já em junho de 2013, pouco mais de dois meses depois de sua adoção pela ONU, indicando sua disposição em colaborar com a regulação responsável do comércio internacional de armas.

Em dezembro de 2015, mais de dois anos depois de assinar o TCA, o Brasil ainda não é membro pleno do acordo em decorrência da demora no processo de ratificação. O texto do Tratado sobre Comércio de Armas ainda se encontra em processo de ratificação, uma etapa que envolve análises dos Poderes Executivo e Legislativo. O tratado demorou dezessete meses para ser encaminhado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional brasileiro,2020. “Passos lentos - Itamaraty Leva 8 Meses para Traduzir Tratado de Armas,” Conectas Direitos Humanos, acesso em 1 dezembro 2015, http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/14986-passos-lentos. onde ainda tramita a passos lentos.

A não ratificação do TCA colocou o Brasil em posição de coadjuvante na construção do regime global de controle de transferências de armas inaugurado pelo acordo: como Estado meramente signatário, o Brasil perdeu a chance de participar de decisões importantes sobre o acordo, principalmente as regras de funcionamento do novo instrumento. Na Primeira Conferência de Estados Partes, ocorrida em agosto de 2015 em Cancun, México, o Brasil não pode participar na escolha da sede do secretariado do acordo, regras de financiamento e modelos de relatórios previstos pelo Tratado.2121. “Tratado de Armas: 3 Razões para o Brasil Ratificar,” Conectas Direitos Humanos, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1SfNaXJ.

Por ora, a ausência de ratificação do Tratado pelo Brasil deixa o país fora do grupo dos Estados com o “certificado TCA” de exportadores responsáveis. Tais países, ao concordarem em fazer parte do regime internacional criado pelo acordo, se comprometem a não transferir armas para Estados sobre qual haja suspeita de uso para a prática de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e ataques contra alvos civis ou civis protegidos, entre outros.2222. Art. 6º do TCA. Implementar o TCA também implica que as transferências de armamentos passarão por análise individualizada de risco, considerando critérios como respeito aos direitos humanos e ao direito internacional humanitário do país comprador, possibilidade de uso em terrorismo ou crime organizado, e probabilidade de desvio, dentre outros.2323. Art. 7º do TCA.

Organizações da sociedade civil no Brasil têm alertado para essa situação, destacando o impacto da falta de regulação do comércio internacional de armas na violência armada, uma das principais preocupações em matéria de segurança pública em nosso país.

Outro aspecto importante da incorporação do TCA no contexto brasileiro é sua capacidade de impulsionar o avanço na transparência na legislação nacional em matéria de exportação de armas convencionais. No âmbito nacional, as diretrizes do controle de transferências internacionais de armas convencionais encontram-se, hoje, reguladas por uma política conhecida como PNEMEM – Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar, estabelecida durante a ditadura militar. Contrariando as premissas de uma democracia, a PNEMEM é um documento classificado e cujas atualizações desde sua adoção em 1974 aconteceram longe do escrutínio público.2424. Carlos Federico Domínguez Avila, “Armas Brasileiras na América Central: Um Estudo sob a Perspectiva da Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar-PNEMEM (1974-1991),” Varia Historia 25, no. 41 (2009): 293-314.

Tal política sigilosa é incompatível com o período democrático iniciado após o fim do regime autoritário no Brasil. Por isso, tal política deverá ser reformulada com o intuito de incorporar mecanismos mais transparentes, quando o país ingressar por completo no regime do Tratado sobre Comércio de Armas, já que este prevê obrigações claras de transparência, principalmente o dever de apresentação de relatórios periódicos ao Secretariado do acordo (conforme Art. 13 do TCA). Mais preocupante ainda, a falta de transparência também perpassa as relações bilaterais de transferência de armas, como o caso abaixo descrito evidencia.

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3. Relação Brasil-Moçambique: Doações de armas como ferramenta de política externa

Estima-se que cerca de 1 milhão de pessoas teriam morrido nos 16 anos de guerra civil em Moçambique (1975-1992) e entre 4 e 5 milhões teriam se refugiado em países vizinhos. O conflito também destruiu grande parte das infraestruturas econômicas e sociais do país. O Acordo Geral de Paz de 1992 pôs fim às hostilidades e as primeiras eleições multipartidárias do país foram realizadas em 1994.

Em 2013, o acirramento das tensões entre o governo moçambicano, cujo partido no poder é a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), e da oposicionista RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) reavivaram o temor de que o país africano mergulhasse novamente numa guerra civil.2525. “Momentos de Instabilidade Política em Moçambique - Uma Cronologia,” Deutsche Welle, acesso em 1 dezembro 2015, http://dw.com/p/18xjM.

O conflito em Moçambique foi objeto de nota do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em 22 de outubro de 2013,2626. “Moçambique Teme Volta da Guerra Civil - Ativistas Lançam Apelo por Paz e Criticam a Intenção do Governo Brasileiro de Doar Aviões Militares Neste Momento,” Conectas Direitos Humanos, acesso em 1 dezembro 2015, http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/6477-mocambique-teme-volta-da-guerra-civil. na qual o país afirma estar acompanhando “com preocupação os incidentes ocorridos nos últimos dias na região de Gorongosa, Província de Sofala, entre as forças de defesa de Moçambique e a Renamo”. Menciona, ainda, a importância da busca de soluções das divergências entre as partes, pautada pelo diálogo e negociação, em quadro de fortalecimento do Estado de Direito, das instituições democráticas e da estabilidade.

Apenas três dias depois da nota, o Poder Executivo do Brasil solicita ao Congresso Nacional autorização para doar três aeronaves militares de fabricação brasileira, tipo T-27 TUCANO,2727. O T-27 Tucano é aeronave desenhada no final dos anos 1970 pela Embraer. Pensado como aeronave de uso duplo – treinamento de alto rendimento e avião de combate – o T-27 é um monomotor turbo elétrico, com alcance máximo de 2 mil quilômetros, velocidade de cruzeiro de 438 km/h e a capacidade de ser equipado com até 1000 quilos de armamento tático. Entrou no mercado brasileiro e internacional em 1983 e, desde então, constitui um êxito comercial para a Embraer. Produzido em larga escala, foi exportado para Argentina, Egito, Honduras, Líbia, Nigéria, Reino Unido e Venezuela. Ver mais: Carlos Federico Domínguez Avila, “O Brasil, a Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar – PNEMEM – e o Comércio Internacional de Armas: Um Estudo de Caso,” Tempo 15, no. 30 (2011): 221-241. fabricado pela Embraer, à Força Aérea de Moçambique. Na exposição de motivos que instrui a autorização, datada de 05 de maio de 2013 – ou seja, cinco meses antes do seu envio e que claramente não levava em consideração a nova conjuntura de tensões militares em Moçambique,2828. “Projeto de Lei nº. 6.466, de 25 de outubro de 2013,” Câmara dos Deputados, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1iFgU42. – o Ministério da Defesa justifica a doação no fato de a Força Aérea do Brasil passar a dispor de aviões mais avançados – notadamente as aeronaves AT-29 SUPER TUCANO,2929. O AT-29 Super Tucano é uma aeronave turboélice de ataque leve e treinamento avançado. É equipado com sistemas projetados não apenas para atender aos requisitos básicos de treinamento, mas também cinco pontos sob a asa e fuselagem que permitem carregar até 1.500 kg de armamentos (convencionais e inteligentes) para acompanhar as contínuas mudanças que ocorrem nos potenciais ambientes de operação da aeronave. Introduzido pela Embraer no mercado em 2004, hoje opera em pelo menos em 16 países. Mais informações: “Super Tucano,” EMBRAER, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1iFfLtn. também de fabricação da Embraer – e no custo de manutenção dos Tucanos e o potencial investimento para colocá-los novamente em condições operacionais. Por fim, a exposição de motivos traz, ainda, um argumento de ordem eminentemente política:

“[A] doação, se viabilizada, reforçará o bom relacionamento bilateral entre o Brasil e Moçambique no contexto internacional, estreitando ainda mais os laços de cooperação mútua, tão necessários na atual conjuntura mundial.”

A iniciativa brasileira de doar aeronaves para Moçambique se insere em política de doação de material militar como ferramenta de cooperação bilateral, para aproximar e fortalecer vínculos com parceiros do Sul Global. Nos últimos 10 anos, além da iniciativa ora em análise, foram realizadas doações de equipamento militar pelo Brasil, principalmente aeronaves, em ao menos seis oportunidades:

· Bolívia: 6 aeronaves T-25, em 2005.3030. “Lei nº. 11.181, de 26 de setembro de 2005,” Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1RzvRQS.

· Paraguai: 6 aeronaves T-25, em 2005.3131. Ibid.

· Equador: 5 aeronaves C-91A, em 2006.3232. “Lei nº. 11.283, de 26 de fevereiro de 2006,” Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1WfZz47.

· Paraguai: 3 aeronaves T-27 TUCANO, em 20103333. “Lei nº. 12.271, de 24 de junho de 2010,” Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1WfZH3R ..

· Equador: 1 aeronave C-115 Buffalo, em 2011.3434. “Lei nº. 12.442, de 11 de julho de 2011,” Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1WfZQ76.

· Bolívia: 4 aeronaves H-1H, em 2012.3535. “Lei nº. 12.679, de 25 de junho de 2012,” Presidência da República - Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1WfZTzW.

Na exposição de motivos que instruiu as solicitações para doação dos equipamentos militares, três argumentos são recorrentes:

· O fato de a Força Aérea Brasileira contar, atualmente, com aeronaves mais modernas e econômicas.

· O alto custo de manutenção das aeronaves, sendo mais econômico seu repasse do que sua recuperação.

· Doação como forma de incrementar bom relacionamento bilateral e estreitamento de laços de cooperação.

A iniciativa de doar três aeronaves T-27 TUCANO para Moçambique foi a primeira a não envolver países sul-americanos, em linha com a aproximação bilateral verificada na última década. Moçambique é o segundo maior destinatário de investimentos do Brasil na África, logo após Angola.3636. Amanda Rossi, Moçambique, o Brasil é Aqui (Rio de Janeiro, Editora Record, 2015). Além das razões para doação já expostas – também verificáveis no caso da doação para Moçambique – uma motivação adicional seria a utilização do equipamento militar mais antigo como estímulo para a venda futura de versão mais moderna. Em audiência em comissão do Senado brasileiro em 2014,3737. “Notas Taquigráficas 27/03/2014 - 9ª - Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional,” Senado Federal, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1Wg34rx. questionado sobre a doação para Moçambique o então ministro de Defesa do Brasil, Celso Amorim, afirmou:

Conseguimos uma aprovação, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara, que terá, mais tarde, que passar pelo plenário e, depois, chegar aqui ao Senado, de uma autorização para doarmos três Tucanos – antigos Tucanos, não Super Tucanos – para Moçambique. É do nosso interesse, não só porque é cooperar com um país com o qual temos muitas relações, mas também porque é o que os outros países fazem: doa-se o Tucano e, depois, quem sabe, vende-se o Super Tucano. E não estou falando de algo abstrato, porque já vendemos um número considerável de Super Tucanos para países africanos. Acho que a Angola já tem mais de seis ou oito; países pequenos, como Burkina Faso, compraram três; enfim, não estou falando de algo abstrato. Estou falando de algo que pode ocorrer.

Organizações da sociedade civil do Brasil e Moçambique questionaram a doação das aeronaves ao governo moçambicano em momento de acirramento de crise, em clara contradição com a preocupação expressa em nota pelo Ministério de Relações Exteriores e a justificativa contida no pedido de autorização da doação feita ao parlamento brasileiro.3838. “Moçambique Teme Volta da Guerra Civil,” Conectas. Um dos aspectos questionados pelas organizações foi a falta de previsão sobre o emprego dos aviões pelas Forças Armadas moçambicanas, ao contrário da prática adotada pelo Brasil em outras doações de material bélico.

A incidência junto a parlamentares encarregados de analisar a transferência das aeronaves levou à inclusão de uma emenda na autorização de doação,3939. Davi Alcolumbre, “Projeto de Lei Nº. 6.646, de 2013,” Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, acesso em 1 dezembro 2015, http://bit.ly/1OCITxH. sob a seguinte justificativa:

“Resta observar que a Liga Moçambicana de Direitos Humanos e a Conectas Direitos Humanos manifestaram-se no sentido de que, à falta de indicação do uso que poderia ser dado aos aviões doados pelo Brasil, a eventual utilização bélica dos mesmos poderia acirrar a crescente tensão político-militar que assola Moçambique. Quanto a esse aspecto, entendemos que, sempre que possível, a doação de bens públicos deve ser vinculada a fins previamente estabelecidos”

A emenda sugerida pelo então deputado Davi Alcolumbre, parlamentar encarregado de analisar a autorização de doação, tem o seguinte teor:

Acrescente-se ao art. 1º do projeto o seguinte § 2º:

“Art.1º……………………………………………………………….. …………………………………………………………………………

§ 2º As aeronaves doadas deverão ser utilizadas exclusivamente em atividades de formação e treinamento de pilotos.”

Em dezembro de 2015, a autorização de doação das aeronaves para Moçambique ainda se encontrava sob análise do Poder Legislativo brasileiro.

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4. Notas para estratégias de ação

À luz dos desafios decorrentes do trabalho em política externa, direitos humanos e controle de armas, tendo por base a atuação da Conectas Direitos Humanos, podem ser extraídos algumas estratégias de ação.

a. Papel dos freios e contrapesos em uma sociedade democrática

A função de controle que o Parlamento exerce sobre as atividades do Poder Executivo tem mostrado resultados interessantes no trabalho com política externa. No Brasil, o Poder Legislativo cumpre importantes funções em matéria de política externa, incluindo a análise de tratados internacionais antes de sua implementação nacional, etapa prévia à ratificação do acordo, e autorização de doações de material bélico para terceiros países, dado que, neste caso, haveria cessão de patrimônio público nacional. Essa segunda função foi fundamental no caso da doação das aeronaves para Moçambique, permitindo que a deterioração do quadro político daquele país fosse levada em conta na autorização da cessão, considerando que a autorização requerida pelo Poder Executivo era silente sobre o tema.

Por outro lado, por se tratar de uma dentre diversas funções dos parlamentos – e, por vezes, por ausência de interesse ou falta de percepção do tema como prioridade política –, estes por vezes não dedicam atenção a temas de política externa em velocidade condizente com as dinâmicas da agenda internacional. Nesse sentido, o Poder Executivo deve atuar como agente catalizador da ação do Legislativo, seja pela incidência de suas assessorias parlamentares, seja pelos aportes com dados técnicos e informações do contexto político aos membros dos parlamentos. No processo de implementação do Tratado sobre Comércio de Armas no Brasil, o apoio de três diferentes ministérios (das Relações Exteriores, da Justiça e da Defesa) consignado em exposição de motivos ao texto do acordo perante o Congresso brasileiro e a atuação da assessoria parlamentar do Ministério das Relações Exteriores têm auxiliado a manter o tema na pauta dos parlamentares.

Finalmente, a necessidade de exploração de espaços de participação social nos Poderes Executivo e Legislativo merece estar sempre em mente. Audiências públicas, reuniões de trabalho, sabatinas de ministros ou autoridades envolvidas em temas de políticas externa são alguns exemplos de espaços nos quais a incidência da sociedade civil pode cumprir papel essencial de diversificação de vozes e fornecimento de informações técnicas, possibilitando que a decisão do agente público seja a mais informada possível.

Um desafio imposto à sociedade civil ao trabalhar com o Legislativo como ferramenta de controle de política externa é saber como lidar com as dinâmicas de partidarização que podem ocorrer.

b. Importância de atuação em redes

A divisão de trabalho sobre temática de política externa, direitos humanos e controle de armas entre um grupo de organizações da sociedade civil possibilita ações em diferentes níveis – nacional, regional e internacional – sem sobrecarregar as instituições, muitas vezes envolvidas em diversas outras pautas. A multiplicidade de vozes advindas da atuação das organizações também cumpre papel de potencialização da demanda, servindo como instrumento adicional de pressão em temas que, por vezes, não recebem a atenção devida pelos Poderes Executivo e Legislativo.

No caso da implementação do TCA no Brasil, a ação de organizações de diferentes perfis e expertises – como Conectas Direitos Humanos, Instituto Sou da Paz,4040. Instituto Sou da Paz, acesso em 1 dezembro 2015, http://www.soudapaz.org . Anistia Internacional4141. Anistia Internacional Brasil, acesso em 1 dezembro 2015, https://anistia.org.br/. e Dhesarme4242. Campanha Brasileira Contra Minas Terrestres e Munições Cluster (CBCMT), acesso em 1 dezembro 2015, http://www.dhesarme.org/. – tem permitido uma diversificação de estratégias de ação, reforçando o pleito por uma rápida conclusão do processo rumo à ratificação do acordo.

c. Necessidade de ouvir parceiros locais

O estabelecimento e manutenção de vínculos de parceria com organizações da sociedade civil do Sul Global é importante fator para uma atuação geográfica ampliada, elemento de grande importância no trabalho com política externa e direitos humanos. O diálogo constante com organizações e movimentos com presença no terreno, além de assegurar maior legitimidade no questionamento de ações de Estados com impacto em direitos humanos, permite ter conhecimento de situações de violações com celeridade, abrindo margem para um rápido desenho de estratégias de resposta, inclusive antecipando efeitos deletérios mais profundos.

No caso da doação brasileira das aeronaves T-27 TUCANO para Moçambique, o diálogo com parceiros locais foi fundamental para que fossem tomadas medidas junto aos Poderes Executivo e Legislativo no Brasil logo na sequência do início do processo de cessão do material bélico. A ação rápida fortaleceu a estratégia de seguimento da situação tanto junto aos tomadores de decisão no Ministério das Relações Exteriores quanto aos parlamentares que analisaram a doação.

5. Conclusão

A análise dos desafios da implementação de regime de controle internacional de armas e da transparência no processo de transferência de material bélico no plano das relações bilaterais possibilita vislumbrar oportunidades de ação de organizações da sociedade civil, incidindo para o estabelecimento de instrumentos de controle de exportações de armas que respeitem padrões de direitos humanos. A exploração da dinâmica democrática de freios e contrapesos, a relevância de ação por meio de redes e parcerias e a importância de diálogo responsivo com atores com presença no terreno são alguns exemplos de estratégias que, a partir de uma abordagem de política externa e direitos humanos, podem contribuir de forma efetiva para o aprimoramento e melhoria do controle de exportações de armas.

Camila Asano - Brasil

Camila Asano é coordenadora do Projeto de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas Direitos Humanos. Asano concluiu seu mestrado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) em 2009, e é professora de Relações Internacionais na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) desde 2010. Ela tem focado sua atuação profissional e pesquisa em temas relacionados a direitos humanos, organizações internacionais e política externa, com especial atenção aos países do chamado Sul Global.

Recebido em Dezembro de 2015

Jefferson Nascimento - Brasil

Jefferson Nascimento é advogado e assessor do Programa de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas Direitos Humanos. É bacharel em Direito e doutorando em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Além disso, Nascimento trabalha como Coordenador do Observatório da Política Externa do Brasil do Núcleo de Estudos Internacionais da Faculdade de Direito da mesma universidade.

Recebido em Dezembro de 2015