Quais são os benefícios que uma carta internacional de princípios de prestação de contas traz às ONGs e como as organizações do Sul Global estão contribuindo para esta agenda
A INGO Accountability Charter (Carta de Prestação de Contas de Organizações Não-Governamentais Internacionais ou simplesmente a “Carta” ou “Charter”)11. O texto integral da carta de princípios da Charter está disponível em: http://www.ingoaccountabilitycharter.org/wpcms/wp-content/uploads/INGO_CHARTER_web.pdf, acessado em outubro de 2015. tem o objetivo de servir como um compromisso resoluto de grandes organizações internacionais da sociedade civil – incluindo Anistia Internacional, Greenpeace e BRAC – para com a transparência, responsabilidade e excelência nas atividades dessas organizações. A Charter constitui o único conjunto de princípios internacionais, inteiramente abrangentes e transversais de prestação de contas dirigido às ONGs internacionais.
Ao reconhecer que o setor internacional das ONGs aumentava de tamanho trazendo uma infinidade de diretrizes e regulações que competiam entre si, os fundadores da organização responderam incorporando uma ampla gama de códigos existentes em um conjunto compartilhado de princípios. O objetivo deste conjunto de princípios é fornecer uma abordagem mais eficiente e coerente para que as ONGs internacionais sejam capazes de dar respostas com credibilidade aos doadores, governos e outros atores envolvidos sobre suas práticas de prestação de contas.
Criada originalmente em 2006 por 11 organizações da sociedade civil que subscreveram a sua carta de princípios, atualmente a Charter possui 24 membros, os quais têm que prestar contas anualmente sobre uma série de compromissos que cada organização precisa cumprir – tais como, respeito pelos direitos humanos, transparência e gestão profissional. Estes relatórios são revisados por um Painel de Revisão Independente que, caso necessário, pode solicitar informações adicionais às organizações-membros. O Painel analisa especificamente o compromisso institucional da organização que presta contas e o progresso ao longo do tempo do cumprimento de seus compromissos com a transparência, independência, eficácia, participação, gestão financeira adequada etc. Os relatórios e a avaliação externa das organizações são publicados integralmente no site da Charter e estão disponíveis ao público em geral.
A condução das atividades diárias da Charter é realizada por seu Secretariado, que, desde 2010, está a cargo do International Civil Society Centre (Centro Internacional da Sociedade Civil, em português), sediado em Berlim.
Karenina Schröder, Secretária Executiva da organização, conversou com a Conectas sobre as origens da Charter, as transformações pelas quais ela passou e o papel, cada vez mais importante, que as organizações do Sul Global estão desempenhando no estabelecimento de padrões internacionais de prestação de contas.
Conectas Direitos Humanos • Como surgiu a ideia inicial sobre a Charter?
Karenina Schröder • Em 2006, algumas das maiores organizações internacionais fundaram a Charter por uma série de razões.
Em primeiro lugar, elas sentiram que precisavam aperfeiçoar seus próprios sistemas de prestação de contas. Não ter os colaboradores envolvidos no processo de análise do impacto e utilidade do que estava sendo feito pelas organizações fazia com que os financiadores quisessem ter certeza de que eles próprios possuíam sistemas mais rígidos para garantir que as organizações realmente estavam gerando o melhor resultado possível para as pessoas para as quais elas trabalhavam.
Em segundo lugar, e em particular para as organizações não-governamentais internacionais com foco em incidência pública (advocacy), como Greenpeace e Anistia, que apoiaram firmemente a Charter logo no seu primórdio, quanto mais estas organizações demandavam boa governança, transparência e prestação de contas de empresas e governos, mais importante era para elas ter a sua própria casa em ordem.
E, por último, quando a Charter foi fundada, havia várias centenas de regimes de prestação de contas. Embora seja positivo que esta questão esteja tão presente na agenda destas organizações, há também um problema em termos tantos regimes. Isto significa que, para muitas organizações, elas precisam prestar contas diversas vezes a diferentes doadores e de acordo com diferentes requisitos de prestação de contas na área nacional, regional, internacional ou temática. Portanto, um conjunto adicional de princípios intersetoriais internacionais, como o da Charter, também pode servir como ponto de partida para que cada organização acrescente diferentes componentes que são particularmente relevantes para suas regiões ou parceiros específicos.
Conectas • Como a Accountability Charter mudou desde que foi criada? Quais foram as maiores mudanças?
K. S. • Em resumo: a organização é mais independente, mais internacional e muito mais profissional.
Originalmente, a Charter era uma organização totalmente dirigida pelos seus membros. A autonomia da organização aumentou significativamente com a introdução do Painel de Revisão Independente. Cada vez mais, temos incorporado diretores de fora, sendo que dois são do Sul Global. Isso ajudou a organização a se tornar mais internacional.
Conforme nós nos profissionalizamos, tornou-se mais difícil para alguns de nossos membros cumprir com os requisitos necessários e perdemos alguns dos membros menores. Ao mesmo tempo, adotamos todas as medidas possíveis para garantir que os princípios da Charter continuem enxutos, concentrados apenas em questões essenciais e permitindo que nossos membros aumentem suas prestações de contas em seus próprios ritmos e capacidades. Esta é a riqueza de um Painel de Revisão Independente – avaliar cada organização individualmente e não somente em relação aos indicadores estabelecidos.
Conectas • O único requisito para se tornar membro da Charter é que a organização tenha um mecanismo de ouvidoria em funcionamento. Qual é o raciocínio por trás disso, como isso funciona e por que é importante?
K. S. • A menos que você tenha sistemas muito eficientes em funcionamento para ouvir os atores envolvidos, como você poderia jamais prestar contas? Fiquei surpresa ao descobrir que isso não era de nenhuma maneira uma realidade nas organizações. Diversas organizações – e, em particular, as organizações foco em incidência pública – não eram muito competentes inicialmente na coleta de avaliação dos atores envolvidos com os quais elas interagiam. As organizações de prestação de serviços e humanitárias eram ligeiramente mais avançadas neste sentido. No entanto, todas as organizações acharam difícil se envolver a fundo com esse processo avaliativo. Hoje, a era digital (e muitas organizações começam a fazer uso disso) permite uma relação completamente nova, muito mais direta e em tempo real com os atores com os quais as organizações interagem.
Cada vez mais, as organizações compreendem que este mecanismo não é somente relacionado ao recebimento de críticas. Na verdade, trata-se de estimular processo de avaliação e possuir um diálogo constante com os atores envolvidos sobre o que pode ser feito em conjunto. Isto permite às organizações se beneficiar dos conhecimentos, redes e capacidades de outras pessoas para alcançar maior impacto para as suas causas.
“Este mecanismo não é somente relacionado ao recebimento de críticas. Na verdade, trata-se de estimular processo de avaliação”
O mecanismo de ouvidoria também permite que as organizações corrijam algo rapidamente, caso as coisas não corram bem. Desta forma, se um projeto que você lançou com a melhor das intenções tem algum efeito colateral que você não previu, um sistema realmente bom de avaliação envolvendo diferentes atores lhe permitirá adaptar imediatamente o seu projeto. Na era digital, há meios de resposta rápida para permitir que as organizações se adaptem e melhorem constantemente o que estão fazendo.
Em relação a como isso funciona na prática, isso depende muito do contexto no qual a organização está trabalhando. Algumas organizações têm um ouvidor. Há organizações que possuem pequenas caixas nas quais se pode colocar mensagens por escrito. Outras recebem avaliação por mensagens de texto. Existem também casos de painéis atuando nas comunidades para receber avaliação. Também há organizações recebendo avaliação por meio do rádio. Desta forma, uma grande quantidade de ferramentas e práticas têm sido desenvolvidas ao longo do tempo e que, por sua vez, prestam muita atenção à forma como as mulheres e crianças podem ser ouvidas nas comunidades, além de levar em conta situações políticas potencialmente hostis.
Conectas • Que tipos de tendências aparecem nos relatórios anuais?
K. S. • Possuímos dez compromissos sobre os quais nossos membros devem prestar contas – que vão desde a inclusão dos atores envolvidos, até transparência e arrecadação ética de fundos. Para cada um destes compromissos, fazemos três perguntas: 1. Você possui uma política vigente em relação ao compromisso?; 2. Esta política é bem conhecida na prática pelos seus funcionários?; e 3. Você possui evidências de que ela funciona bem?
Cada vez mais, estamos melhores em relação às perguntas número 1 e 2, e ainda não estamos bem o suficiente em relação à pergunta número 3. No entanto, nós aperfeiçoamos a compreensão do que significam esses compromissos. Desta forma, enquanto as pessoas costumavam pensar que inclusão apenas se refere ao gênero – e só relatavam quantas mulheres estavam empregadas e quantas mulheres estavam sendo beneficiadas por uma organização por meio de seus diversos programas – nós temos ampliado com sucesso a discussão para que inclusão signifique olhar para quem é potencialmente excluído dos programas – com base, por exemplo, na etnia, idade ou deficiência. Conseguimos com êxito incentivar as organizações-membro a elaborar políticas que são positivas e de longo alcance. Nossos membros investem na implementação destas políticas e, desta maneira, nós também esperamos ver, no futuro, mais evidências destas políticas funcionando adequadamente.
Conectas • A maioria dos seus membros ainda tende a ser organizações internacionais situadas no Norte. É um desafio para vocês estabelecer relações com organizações do Sul Global? Algum de seus membros do Sul foi capaz de oferecer dicas para os membros do Norte?
K. S. • Recentemente, demos as boas-vindas a duas organizações do Sul Global – BRAC, de Bangladesh, e o Taiwan Fund for Children and Families (Fundo de Taiwan para Crianças e Famílias, em português). No entanto, não é tão fácil para nós receber o mesmo tipo de visibilidade e credibilidade no Sul Global, onde nós simplesmente não estivemos tão presentes no passado. Estamos abordando isso por meio de nosso projeto chamado Padrão Global de Prestação de Contas das Organizações da Sociedade Civil (OSCs).
Por meio deste programa, nós estabelecemos relações com nove organizações da sociedade civil – a maioria das quais são do Sul Global com sede na Índia, Quênia, Uganda, Colômbia e Filipinas – que fazem um trabalho semelhante ao nosso. Esta é realmente a nossa resposta a este vínculo que faltava com o Sul Global, pois é realmente um exercício liderado pelo Sul analisar o que está no cerne dos padrões de prestação de contas das OSCs.
No decorrer dos próximos três anos, iremos desenvolver um padrão coletivo de princípios de prestação de contas das OSCs. A PricewaterhouseCoopers analisou gratuitamente os diversos códigos de prestação de contas que essas nove organizações estão utilizando para determinar o quanto de sobreposição existe entre eles. O que temos observado é que organizações de diferentes locais desenvolveram ideias relativamente semelhantes sobre os mecanismos de prestação de contas. Será ótimo analisar se podemos transformar isso em um padrão básico coletivo com certos subconjuntos para regiões e contextos específicos.
Conectas • Estamos presenciando o aumento às restrições dos direitos das organizações não-governamentais internacionais (ONGIs) em diversos países ao redor do mundo. A Charter espera ter impacto em relação à forma como as organizações são vistas nessas jurisdições?
K. S. • Nós definitivamente observamos a diminuição deste espaço cívico. Encaramos isso como um desafio enorme. Um desafio presente é, caso solicitemos às nossas organizações que elas sejam extremamente transparentes, que efeito isso tem para elas, na prática, por exemplo, na Rússia? É um problema. Nós temos que estar cientes do que podemos exigir de quem. Nós queremos garantir que fazer parte da Charter ajude a organização a combater alguns dos desafios que se apresentam em ambientes hostis. As organizações com as quais trabalhamos na Índia e Uganda estão nos dizendo que as OSCs nos seus países estão sendo acusadas pelos governos, com grande frequência, de não prestarem contas, serem corruptas e possuírem desempenhos ruins. Por conta disso, elas adquirem uma reputação negativa. Neste contexto, essas ONGs com certeza consideram que é útil fazer parte da nossa aliança internacional de prestação de contas. Elas podem então rebater dizendo: “Na verdade, nós satisfazemos os requisitos de um padrão de prestação de contas de uma OSC internacional que foi aceito no mundo todo como sendo um padrão de referência apropriado para a prestação de contas”. Ao mesmo tempo, se a Charter é considerada como algo que é internacional e não nacional, pode haver uma suspeita imediata de que isto representa algo como uma interferência externa. Este é um tema espinhoso e não é fácil de resolver. Nós somos muito cuidadosos com as consequências e mal podemos esperar para aprender com nossos parceiros do Sul sobre a melhor forma de proceder para que a solidariedade global possa ser favorável a eles.
Conectas • Como o futuro se vislumbra para a Charter? Para onde você vê a organização se direcionando nos próximos cinco anos?
K. S. • O desafio para nós é analisar a forma como a era digital permite uma versão completamente nova de prestação de contas. Nós costumávamos viver em uma era na qual as organizações definiam com os seus membros o que elas queriam fazer, elas apresentavam isso para o mundo externo, prestavam contas sobre progressos obtidos e, então, alguém de fora realizava a avaliação. Na nova era você amplia os atores envolvidos na formulação de suas estratégias, e olha para uma base de apoio muito mais ampla para tomar decisões estratégicas, você constantemente cria o que implementa de forma conjunta, porque sempre pergunta a todos os atores envolvidos do que eles gostam, se você deve modificar algo, se eles têm uma ideia melhor, ou se eles têm outra rede para se conectar. Então, você avalia conjuntamente se isto está realmente agregando valor ou não. Conforme a organização Keystone Accountability sempre diz: “Prestar contas não é somente a coisa certa a ser feita – é também uma coisa muito inteligente a ser feita.”