Sur 22 – Carta aos leitores

 

Thiago Amparo

Editor-Executivo

Daniel Mack

Editor Convidado do Dossiê Sur

 

O DOSSIÊ SUR SOBRE ARMAS E DIREITOS HUMANOS. É difícil imaginar algo mais tangível, mais corpóreo que o custo humano das armas. Armas de fogo usadas por policiais em homicídios, bombas lançadas em áreas povoadas, drones assassinos que atingem aldeias ou gás lacrimogêneo lançado dentro das casas. Essa violência exige nossa coragem coletiva para enfrentar seu poder. Assim, nas próximas páginas, apresentamos a edição n. 22 da Revista Sur, que inclui um Dossiê sobre como a linguagem, as instituições e os profissionais de direitos humanos podem desafiar o poder das armas. Uma perspectiva de direitos humanos – em particular uma perspectiva imbuída na realidade do Sul Global – pode ser utilizada de forma produtiva para combater a proliferação, utilização indevida e consequente violência de muitas armas. Além disso, maior atenção às dinâmicas políticas e jurídicas relacionadas às armas pode ajudar a reduzir os casos de violações de direitos humanos.

Com esse Dossiê Sur, a Revista ajuda a preencher uma lacuna no debate global de direitos humanos. Embora a questão das armas seja de fato proeminente em muitas estruturas conceituais, jurídicas e diplomáticas – como violência armada, segurança (nacional, internacional e humana), desarmamento e Direito Internacional Humanitário – no contexto dos direitos humanos, as armas são frequentemente uma reflexão tardia ou um asterisco. Na verdade, lidar com o controle de armas e desarmamento está longe de ser o trabalho cotidiano da maioria das organizações de direitos humanos.

O Dossiê Sur aborda algumas dessas questões urgentes em relação a armas e direitos humanos, e inicia com a pergunta: “quem senta-se à mesa de negociação” em fóruns nacionais e internacionais em que são tomadas as decisões relacionadas às armas? Nessa seção, composta por três artigos, os autores exploram a política que molda as negociações e decisões relativas ao controle internacional de armas. Brian Wood (Reino Unido) e Rasha Abdul-Rahim (Palestina) mostram como o sonho improvável de atores da sociedade civil e de alguns Estados por um tratado internacional juridicamente vinculante sobre transferências de armas levou ao surgimento do Tratado sobre o Comércio de Armas. O lançamento da 22ª edição da Revista Sur marca o primeiro aniversário da entrada em vigor desse tratado, o que constitui uma ótima oportunidade para uma análise detalhada dos aspectos centrais do tratado por aqueles que estavam diretamente envolvidos em sua elaboração.

Essa primeira seção também apresenta a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz Jody Williams (EUA). Com a incomparável experiência de ser uma das fundadoras da Campanha Internacional para a Proibição das Minas Terrestres, Williams mostra como a comunidade internacional até agora não conseguiu incluir plenamente as mulheres como iguais nas negociações sobre paz e segurança. Camila Asano e Jefferson Nascimento (Brasil) questionam a falta de transparência na política externa relacionada ao armamento, e exigem que as autoridades brasileiras reconheçam o espaço próprio da sociedade civil na mesa de negociação sempre que armas sejam usadas como instrumentos de política externa.

O segundo conjunto de artigos, “Danos Cotidianos”, examina tipos específicos de armamentos muitas vezes esquecidos nesse campo. Daniel Mack (Brasil) e Maya Brehm (Suíça) analisam as duas armas mais comuns e impactantes no mundo (armas pequenas e explosivos, respectivamente). Cada um argumenta que, para ambos os armamentos, é preciso atenção e limites internacionais urgentes, já que são os principais responsáveis por mortes e destruições em todo o mundo, tanto em situações de conflito como em “paz”.

Reconhecendo o papel de destaque que agentes da polícia e forças de segurança desempenham em relação a violações de direitos humanos, a terceira seção, “Policiamento”, centra-se nas tecnologias e instituições que se destinam a diminuir e prevenir danos, mas que, na realidade, muitas vezes provocam o efeito oposto. Além do texto de Guy Lamb (África do Sul) sobre a polícia altamente militarizada de seu país (que combate o fogo com um inferno, em suas palavras), Anna Feigenbaum (Reino Unido) apresenta argumentos para a regulação de “armas menos letais” a partir de um estudo de caso sobre a empresa brasileira Condor, uma gigante nessa indústria.

Por fim, autores enfrentam as batalhas políticas, tecnológicas e morais que estão sendo travadas atualmente e como elas vão definir o impacto e a dinâmica da violência armada nas próximas décadas. Iniciando a seção “Projetando o Futuro”, Thomas Nash (Nova Zelândia) discute a relativa inaptidão da comunidade internacional em rever (e prevenir) novas tecnologias de violência, assim como as assimetrias de poder incorporadas nos processos de controle de armas, e suas consequências negativas.

Ao contar as histórias de três vítimas de ataque de drones, Mirza Shahzad Akbar e Umer Gilani (Paquistão) demonstram o impacto humano da guerra de drones no Paquistão, lembrando-nos das consequências horríveis para os direitos humanos quando o armamento é usado de forma secreta e sem consideração. Finalmente, Héctor Guerra (México) e Maria Pia Devoto (Argentina) sugerem e anseiam pela sinergia entre dois recentes eventos diplomáticos: a entrada em vigor do Tratado sobre Comércio de Armas e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

DIÁLOGOS. Complementando o Dossiê Sur sobre Armas e Direitos Humanos, temos o orgulho de apresentar uma entrevista com a ativista Maryam al-Khawaja (Bahrein), sobre como o governo do Bahrein utiliza de forma mortífera armas menos letais para controlar protestos. Ela recorda o êxito da campanha #stoptheshipment – uma parceria entre ativistas do Bahrein e da Coreia do Sul – que suspendeu com sucesso um carregamento em grande escala de gás lacrimogêneo destinado ao Bahrein. Esperamos que sua entrevista seja uma inspiração para ativistas de outros países projetarem iniciativas semelhantes em suas próprias regiões.

IMAGENS. Palavras não são suficientes para captar a realidade do impacto das armas sobre populações civis. Para isso, a Revista Sur tem a honra de contar com a parceria com a Magnum Foundation, organização sem fins lucrativos fundada por membros da Magnum Photos, a casa de alguns dos melhores fotógrafos do mundo. Essa seção apresenta um inspirador ensaio fotográfico realizado por cinco de seus fellows de direitos humanos. Como observado na introdução da Magnum, as 10 fotos apresentadas aqui – junto com frases dos próprios fotógrafos – demonstram “os efeitos devastadores de armamentos e da guerra em populações civis através dos olhos de fotógrafos documentaristas para quem ‘no terreno’ significa estar em casa”. O ensaio fotográfico inclui fotografias tiradas entre 2008 e 2015 em situações de conflito em locais tão diversos como Sri Lanka, Síria, Quênia, Ucrânia e Egito. Além disso, nesta edição, nós apresentamos pela primeira vez um conjunto de infográficos que oferecem uma visão geral do impacto das armas em populações civis para ajudar nossos leitores a navegar por esse complexo problema.

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ENSAIOS. Nessa seção, reservada para análises em profundidade sobre questões contemporâneas de direitos humanos, a Revista Sur apresenta três contribuições, todas considerando questões tradicionais no debate de direitos humanos a partir de um ângulo muitas vezes esquecido. Ao abordar a questão da responsabilidade das empresas multinacionais em promover ou impedir a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, Bonita Meyersfeld (África do Sul) e David Kinley (Austrália) redirecionam nosso foco para o papel dos bancos que financiam as operações dessas corporações. Os autores tomam como ponto de partida o inovador Projeto de Princípios de Johanesburgo, adotado em 2011 como um novo marco para compreender a relação entre instituições financeiras e direitos humanos. Kathryn Sikkink (EUA), uma das principais vozes na academia de direitos humanos, revisita a história da origem das normas de direitos humanos no âmbito internacional. Ela examina o protagonismo da América Latina na definição das normas que fundaram nosso movimento, mesmo antes da adoção da Declaração Universal. Por fim, essa seção conclui com uma descrição com base em depoimentos sobre a maternidade em prisões femininas no Brasil, por Bruna Angotti e Ana Gabriela Mendes Braga (Brasil). Depois de passar meses entrevistando pessoas detidas, diretores prisionais e funcionários, as pesquisadoras refletem sobre o excesso de disciplina no que diz respeito à maternidade e aos danos da dicotomia entre o “excesso de maternidade” logo após o nascimento em prisões e a subsequente separação abrupta entre a mãe e a criança.

PANORAMA INSTITUCIONAL. A INGO Accountability Charter é resultado de um grupo cada vez maior de ONGs internacionais que visam incutir uma maior “responsabilidade, transparência e eficácia” para o funcionamento do setor sem fins lucrativos. Karenina Schröder (Alemanha), Diretora Executiva do Secretariado da Carta, falou com exclusividade à Revista Sur sobre a crescente importância da prestação de contas das organizações de direitos humanos. Ela também explica o papel inestimável dessas ONGs do Sul Global que são signatárias da Carta, em especial para ajudar a estabelecer padrões internacionais de prestação de contas.

EXPERIÊNCIAS. Nessa seção, a Revista Sur traz um estudo de caso do Relator Especial da ONU sobre os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação, Maina Kiai (Quênia), discutindo seu trabalho inovador na Relatoria de apoio ao litígio em direitos humanos no plano nacional. A partir da crença de que os processos atuais de redução e até mesmo encerramento do espaço cívico exigem mais criatividade e multiplicidade de abordagens, por meio desse projeto o Relator Especial já participou de litígios no México e Bolívia, e agora convida defensores de direitos humanos a sugerirem outras potenciais batalhas jurídicas que necessitem de apoio.

VOZES. Concluímos a Revista com duas opiniões provocantes. Kavita Krishnan (Índia), ativista feminista e uma das principais vozes no Partido Comunista em seu país, detalha como a política, a economia e a ideologia de casta determinam os direitos das mulheres na Índia. Tomando como ponto de partida o documentário da BBC de 2014 sobre o estupro coletivo de uma mulher em Délhi, a autora descreve as complexas forças contemporâneas em jogo que mantêm o papel subordinado da mulher na sociedade. Além disso, a Revista apresenta uma contribuição de uma das mais francas ativistas das liberdades civis no Reino Unido, Shami Chakrabarti (Reino Unido), sobre os planos do governo britânico para abolir a Lei de Direitos Humanos e se retirar da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Ela aponta como os argumentos do governo são um precedente perigoso, não só no Reino Unido, mas também para o mundo.

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Finalmente, gostaríamos de enfatizar que esta edição da Revista Sur foi possível graças ao apoio da Fundação Ford, Open Society Foundations, Fundação Oak, Sigrid Rausing Trust, International Development Research Centre (IDRC) e Agência Sueca de Cooperação Internacional (ASDI), bem como de alguns doadores anônimos.

Somos também extremamente gratos às seguintes pessoas que nos ajudaram nesta edição: Adele Kirsten, Adriana Guimarães, Akemi Kamimura, Alankaar Sharma, Allison Pytlak, An Vranckx, Barbara Frey, Barney Whiteoak, Ben Leather, Carolina Fairstein, Cate Buchanan, Celina Lagrutta, David Atwood; Denise Garcia, Evandro Lisboa Freire, Fernando Campos Leza, Fernando Scire, Jefferson Nascimento, Josefina Cicconetti, Karen Lang, Kenneth Epps, Maité Llanos, Marcello Baird, Matthew Bolton, Matthias Nowak, Marcela Vieira, Murphy McMahon, Oliver Lewis, Oliver Sprague, Renato Barreto, Sarah Han, Sebastián Porrua Schiess e Tamaryn Nelson. Além disso, somos especialmente gratos pela colaboração dos autores e pelo trabalho árduo da equipe editorial e do Conselho Executivo da Revista, em particular nosso editor-assistente, Oliver Hudson. Um agradecimento especial para o Centro de Direitos Humanos e Justiça, da Universidade do Texas, Austin, pela nossa parceria constante.

Esta edição é a primeira sem o valioso trabalho de Luz González como nossa editora-assistente. Em nome de toda a equipe, nós lhe agradecemos pelos muitos anos de dedicação para tornar essa Revista possível.