Entrevista com Fatima Hassan
Fatima Hassan é advogada, fundadora da organização Health Justice Initiative (HJI), na África do Sul, seu país de origem, e uma persistente ativista pela justiça social.11. Para mais informações sobre o trabalho de Fatima Hassan, acesse: Health Justice Initiative, Homepage, 2022, acesso em 27 de janeiro de 2022, https://healthjusticeinitiative.org.za/. Hassan tem uma extensa trajetória na defesa e promoção dos direitos humanos em seu país, especialmente na área de acesso ao tratamento de HIV/AIDS, sobre o qual tem escrito e publicado amplamente.
Durante a pandemia de Covid-19 sua atuação teve destaque no debate sobre a resposta global à crise, a falta de acesso às vacinas e a árdua luta pela quebra de patentes. Em entrevista à Sur, Fatima Hassan enfatiza a necessidade de colocar em evidência o problema sistêmico de desigualdade que a pandemia e o protecionismo em torno das vacinas escancaram. Focando a discussão sobre TRIPS waiver, ela critica o monopólio das vacinas pelos países mais ricos, refletido, por exemplo, na antiética e escandalosa cobertura vacinal de apenas 7% do continente africano no fim de 2021. Em particular, Hassan questiona o papel de alguns governos, da indústria farmacêutica e da OMC na atual crise sanitária global e na manutenção de um sistema colonial de saúde. Finalmente, ela chama atenção para os desafios que essa agenda apresenta para a sociedade civil, tanto na criação de estratégias como alianças globais pela vacina, quanto na conscientização de que o problema das patentes é uma problema de direitos humanos e que justiça e equidade têm a ver com acesso justo e oportuno a tecnologias que salvam vidas.
Revista Sur • Conte-nos um pouco sobre como o continente africano tem se posicionado na luta pelo acesso às vacinas considerando o contexto de desigualdade global.
Fatima Hassan • Essa é uma pergunta difícil porque acredito que o papel dos governos africanos, sobretudo da União Africana (UA), tem sido deliberadamente silenciado por mecanismos criados e oferecidos como uma espécie de solução para o acesso ou equidade de vacinas para o continente. É difícil falar do papel do continente quando há tantas partes que o compõem – o único mecanismo que poderia de fato unir todos eles era a UA. E a UA, a meu ver, se orientou bastante a partir do governo da África do Sul. Levou um tempo até que [a UA] declarasse seu apoio ao TRIPS waiver,’2′’2′. suspensão temporária de determinados direitos de propriedade intelectual relacionados ao enfrentamento da Covid-19”, cf. Alan Rossi Silva et al., “Propriedade intelectual e desigualdades globais na pandemia de Covid-19: a luta pelo direito à saúde em tempos emergenciais”, Revista Sur v. 18, no. 31 (2021).’] que foi sugerido inicialmente pela África do Sul e a Índia, agora com o apoio de 100 Estados-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Infelizmente, embora os líderes africanos tenham dito que fariam o que pudessem para tentar acessar suprimentos suficientes de vacinas, isso não deu certo porque dependeram do consórcio COVAX e de um mecanismo chamado African Vaccine Acquisition Trust (Fundo Africano de Aquisição de Vacinas). Esse mecanismo de entrega também foi uma iniciativa que partiu do presidente da África do Sul, que presidia a UA à época, junto a pessoas do empresariado. Então, esse é o contexto.
Se olharmos para o papel dos governos africanos versus o papel das empresas africanas versus o papel da sociedade civil africana, cada um desses grupos teve um papel muito diferente para tentar obter acesso às vacinas. Mas qualquer que tenha sido o papel que tivemos ao tentar colocar em evidência os problemas do nacionalismo vacinal ou do apartheid vacinal ou ao tentar obter suprimentos a tempo, o resultado foi que, ao final de 2021, apenas cerca de 7% da população africana havia recebido a primeira dose de uma das vacinas.
A verdade é que estávamos atuando em um contexto global no qual os motivos sistêmicos para a África não ter prioridade sequer no acesso à primeira dose das vacinas é algo que temos que considerar. Além dos 7%, somente uma a cada quatro pessoas trabalhadoras da área da saúde na África estava vacinada até o final de 2021, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Vale lembrar que havíamos iniciado a pandemia com a OMS dizendo que todas as pessoas trabalhadoras da saúde deveriam ser as primeiras da fila, e então começaríamos a vacinar grupos de risco etc.
Dito isso, o que a África de fato negociou foi uma tentativa de coordenar duas coisas com o apoio dos Centros Africanos para Controle e Prevenção de Doenças [CDC, na sigla original] e a OMS: a primeira era assinar contratos e obter acordos. Ainda que não estivéssemos sendo priorizados para receber as vacinas pelas empresas farmacêuticas, eles fizeram isso quando perceberam que o COVAX não seria suficiente.
A controvérsia reside no fato de que o dinheiro foi pago, os contratos foram assinados, mas nós simplesmente não fomos priorizados para o recebimento oportuno de lotes de vacina e para a entrega na maior parte de 2021. É óbvio que algumas empresas, como a Moderna, se recusaram a vender para qualquer país na África até o The New York Times e muitos de nós começarmos a denunciar a situação.
Então, a segunda coisa que a África fez – que eu achei bastante interessante – foi investir de maneira significativa no compartilhamento de informações. Botsuana, África do Sul e outros países compartilharam informações sobre a identificação de variantes e informações de monitoramento com a comunidade científica global. Além disso, logo no início, devido às discussões sobre o TRIPS waiver, também houve uma iniciativa para estabelecer o primeiro hub de mRNA [RNA mensageiro] da OMS na África do Sul – a OMS havia decidido criá-lo para garantir a capacidade nacional, torcendo para que as empresas compartilhassem tecnologias. O primeiro hub foi montado na África do Sul, e isso não teria acontecido sem o apoio de outros governos africanos, do CDC africano e da OMS.
Sur • Quais foram os principais desafios em relação à proposta liderada pela África do Sul e a Índia de uma renúncia temporária a patentes de tecnologias de enfrentamento à Covid-19, como vacinas e medicamentos para lidar com emergências sanitárias como a atual pandemia?
FH • Acho que o principal desafio é algo que tem se apresentado há muito tempo quando há qualquer tentativa de tentar lidar com direitos de propriedade intelectual (PI) em uma pandemia, em uma emergência sanitária global. Vimos a mesma resposta da indústria e dos governos mais ricos quando o Brasil, a África do Sul e a Tailândia estavam tentando fazer a mesma coisa com o [tratamento do] HIV-AIDS.
Ninguém pensava que os governos ricos e a indústria farmacêutica impediriam a proposta de renúncia. Ninguém achava que isso aconteceria porque essa é uma solução simples, segmentada, delimitada no tempo e elegante para lidar com questões de PI e acesso no meio de uma pandemia cuja crise tem sido sem precedentes.
Ninguém sequer achou que uma mera proposta como essa seria recebida com tanta oposição ou que criaria uma crise existencial para a indústria farmacêutica.
Acho que o primeiro desafio foi ter um conjunto de países bastante abastados, especialmente os Estados Unidos, a União Europeia, a Noruega, a Suíça e o Reino Unido, dizendo desde o primeiro dia que “certamente não, não vamos apoiar uma renúncia a quaisquer direitos de PI para nenhuma das tecnologias”, inclusive porque a indústria fez lobby para que dissessem isso, a meu ver.
Quando a proposta foi feita, a primeira vacina não havia sequer sido aprovada ou autorizada para uso. Não sabíamos se teríamos uma vacina. Não sabíamos qual seria a terapêutica que conseguiríamos ou qual era o horizonte possível.
Mas havia um entendimento explícito de que, dado o nosso histórico e o que aconteceu na época do HIV-AIDS, se você não abordar a questão da PI, ela será uma barreira. Acho que todos entenderam que, se algo não mudasse fundamentalmente nessa pandemia, a América Latina, a África e a Ásia ficariam no fim da fila do acesso novamente. Posso falar da situação na África – e foi exatamente isso que aconteceu.
Mesmo antes de publicar a proposta em outubro de 2020, o governo da África do Sul apresentou um documento em julho de 2020 dizendo “por favor, OMC, estamos preocupados com as barreiras de PI. Se vocês não lidarem com isso, as coisas vão acontecer dessa maneira. É restrito demais”. Então, já havia uma documentação detalhada com alertas sobre o que provavelmente ia acontecer. Quando a proposta foi feita formalmente em outubro de 2020, a primeira vacina havia sido autorizada para fins de ensaios não clínicos, e então, em dezembro de 2020, eles começaram a administrá-la no Reino Unido. A proposta já estava publicada havia dois meses, e o principal desafio era que esses países ricos haviam dito “de jeito nenhum” por causa do seu investimento, especialmente o governo alemão, os Estados Unidos e o governo britânico. Afinal, em determinado momento, a AstraZeneca seria a “vacina do povo”. Isso obviamente não chegou a acontecer, mas o governo britânico tinha um interesse oculto na vacina da AstraZeneca, assim como o governo dos EUA tinha interesse na Moderna, na Pfizer/BioNTech e na Johson & Johnson, e o governo alemão tinha a mesma postura em relação à vacina da Pfizer BioNTech.
Muitos desses países estavam dizendo “de jeito nenhum, e não só com a vacina. Não queremos fazer isso com abordagens terapêuticas, diagnósticos e ventiladores etc.”. E a indústria farmacêutica adotou essa mesma postura.
Acho que o segundo desafio foi a indústria em si, seu modo de funcionamento (lobby), o poder e sua priorização do lucro em detrimento do compartilhamento da tecnologia. O verdadeiro temor era que, se você compartilhasse tecnologia nessa pandemia, então você abriria a porta para outras condições de saúde e a próxima pandemia. É por isso que, ainda que tenham dito primeiro “vocês não precisam de uma renúncia [de patente]. A renúncia não fará diferença”, eles investiram muitos esforços e recursos para se opor a ela e até impedi-la – ainda que não sejam representantes eleitos de ninguém ou constituam Estados-membros da OMC.
O terceiro desafio tem sido a própria OMC. Ela se tornou irrelevante. Trata-se, a meu ver, de uma instituição completamente sem propósito porque, se ela não pode nos ajudar em meio a uma pandemia, então ela não serve para nada. Ela tem tentado passar uma resolução sobre a proposta de renúncia, mas não tem tido um papel muito construtivo nisso.
O governo dos EUA chegou em maio de 2021 e disse “certo, vamos apoiar uma renúncia parcial – somente em relação às patentes”. Mas nada mudou. A UE trouxe uma proposta de terceira via insistindo que Licenças Compulsórias são a resposta. A França passou a dizer algo diferente. A Noruega está dizendo outra coisa diferente. Temos uma combinação desses países ricos com a estrutura da OMC e a maneira como ela funciona, toda essa ideia de consenso, que exige que haja um consenso a respeito de tudo. Um organismo comercial tomando decisões sobre uma crise de saúde em uma pandemia – isso é insano. E há as empresas riquíssimas: a Pfizer foi ao Congresso dos EUA para entregar evidências e eles disseram “não apoiamos o TRIPS waiver”. Ou seja, eles não trataram essa proposta como algo desimportante. Eles realizaram um lobby consciente para garantir que vários governos no mundo não a apoiassem – mas 100 países a apoiam agora.
Acho que se você perguntar qual foi o maior desafio para a proposta do TRIPS waiver, eu diria o capitalismo e o sistema de monopólio de patentes.
Sur • Houve alguma estratégia específica que foi mais importante ou eficaz para influenciar mais países a se comprometer com essa agenda?
FH • A estratégia que funcionou para que os países dessem uma volta de 180 graus – para fazer com que um país como a Irlanda, mais recentemente, ou a Austrália, desse uma reviravolta – foi ter uma sociedade civil forte e uma mídia forte para combater a narrativa de lobby da indústria farmacêutica.
Do ponto de vista da sociedade civil, a estratégia de formar uma aliança global popular pela vacina, nomear e envergonhar, o constrangimento de expor os esforços para bloquear a proposta, mostrar as mortes, o sofrimento – lembre-se de que, para nós, na primeira, na segunda e na terceira ondas não havia vacina. Foi somente na quarta onda que começamos a receber vacinas e conseguimos mitigar as mortes. A situação inicial no Brasil, por exemplo, foi horrível quando não havia vacina, certo? Acho que, para vocês, a vacina chegou durante a segunda onda.
Havia muitos países passando por diversas ondas e sem acesso a nada – sem kits de teste o suficiente ou mesmo vacinas. Acho que a estratégia de contar ao mundo o que estava acontecendo em tempo real ajudou, o que é muito mais fácil de fazer agora com as redes sociais do que era na época do HIV-AIDS. Você não depende só do e-mail e, assim, a informação pode ser compartilhada muito mais facilmente. Ter um movimento global nomeando e constrangendo [esses atores], e uma aliança – não apenas de especialistas em medicina e ativistas, como também incluindo sindicatos, o Vaticano, organizações religiosas, ganhadores do prêmio Nobel, 170 ex-chefes de Estado (isso é bastante inédito) – falando, desde o começo, “flexibilizem a PI. Vocês precisam flexibilizar a PI ou terão uma crise ainda maior”.
Acho que a estratégia de trazer outros atores já no início foi bastante útil. No caso do HIV-AIDS, precisamos de um tempo para convencer as pessoas de que era preciso lidar com empresas farmacêuticas e seus monopólios de patentes.
Além disso, a estratégia de não deixar o assunto sumir, de mostrar ao público quanto dinheiro essas empresas estavam ganhando e quanto dinheiro elas receberam de recursos públicos para pesquisa – no caso das vacinas, por exemplo, a Moderna, a Pfizer e a Johnson & Johnson – cujos líderes lucraram na casa dos bilhões – e dar informações para mostrar que no cerne da oposição à renúncia e ao não compartilhamento da tecnologia claramente era sobre ganância e lucro em detrimento da humanidade. Novamente, temos um sistema de capitalismo e um sistema de acumular lucros ou usar preços abusivos em meio a uma pandemia.
Houve petições e protestos – tanto quanto a Covid permitiu. É claro que nossas estratégias de organização ao redor do mundo foram diferentes em relação à crise do HIV-AIDS porque não pudemos nos reunir em grupos e não pudemos ter estádios cheios de pessoas para pedir que a Pfizer compartilhasse uma patente, é claro, porque houve lockdowns e distanciamento social.
Assim, as estratégias de redes sociais funcionaram bastante. Acho que subestimamos o que a juventude consegue fazer com o Tiktok, o Instagram e, em certa medida, o Twitter. O Facebook realmente envelheceu, mas há outras ferramentas de compartilhamento de informações que também estão disponíveis.
Então, é interessante para mim que a última coisa que realmente funcionou foi quando os governos africanos de fato participaram da proposta da África do Sul/Índia, eles trabalharam muito para se reunir com diversos países da América Latina e da Ásia que eventualmente passaram a apoiar a proposta de renúncia.
Havia muita pressão colocada individualmente nas diferentes delegações nacionais para dizer: “se você não apoia a renúncia, não a impeça de ser apreciada; você está do lado errado da história”.
Foi feito muito trabalho bilateral para que, no final, você tivesse sete ou oito países isolados: o Reino Unido, a UE, especialmente a Alemanha, a França, a Noruega, a Suíça, Conseguimos que o Brasil desse uma virada de 180° porque Bolsonaro começou rejeitando o TRIPS waiver, certo?
Parece muito tempo, mas basicamente tudo isso aconteceu em um ano. Acho que quando eles começaram, havia apenas alguns poucos copatrocinadores, e agora temos 67 copatrocinadores e 100 países apoiando a renúncia. Se você observar o período de janeiro a dezembro de 2021, houve uma mudança significativa relativa a quais países e governos apoiam a renúncia.
Sur • Na sua opinião, qual é o maior desafio para a sociedade civil na luta por justiça e direitos humanos no contexto da pandemia e quais lições importantes você destacaria para a luta contra novas pandemias no futuro?
FH • O maior desafio para a sociedade civil agora é a noção de que é aceitável que haja pessoas no mundo que podem esperar, que é aceitável, na cabeça de líderes globais – apesar do que dizem – que podemos ter uma cobertura vacinal de 7% (menos de 10%) na África quando existem ferramentas [de combate à Covid-19] no resto do mundo! Isso não é equidade e acesso justo a tecnologias que salvam vidas. Não sei qual era a porcentagem de cobertura na América Latina no final de 2021. As nações ricas são priorizadas e já começaram seus programas de doses de reforço, e nós sequer conseguimos terminar a administração da primeira e da segunda doses em diversos países de baixa renda.
É claro que outro desafio é o movimento antivacina de direita que fomenta o ceticismo quanto às vacinas, que está ligado ao movimento antiaborto e a essa noção de escolha muito ligada ao [ex-presidente estadunidense Donald] Trump, e com ela, a desinformação. Esse tem sido um dos desafios.
Acho que o desafio para nós é como mostrar e argumentar que é totalmente injusto e imoral ter um programa global que prioriza apenas seis ou sete países. É simplesmente inacreditável que estamos em uma situação na qual 85% da população africana não recebeu sequer uma dose de vacina. Se você vir o mapa do Our World in Data, de onde começamos em janeiro de 2021 até onde estamos agora, vemos muitas partes da África que estão simplesmente vazias, onde os blocos estão vazios. As pessoas não têm conseguido acessar as vacinas.
A questão é: como conseguir que um movimento de pessoas acredite que as patentes de vacina são algo errado, que o nacionalismo de vacinas não é a solução, e que merecemos acesso ao mesmo tempo que os outros países? Voltamos à questão do acesso oportuno. Então, eles dizem “mas estamos dando suprimentos agora. Vocês estão recebendo”. Mas isso está acontecendo com nove meses de atraso. E o único motivo pelo qual podem dizer “não tem problema vocês estarem com um atraso de nove meses” é que não estamos no Norte rico. Estamos no Sul Global. Somos pessoas negras e não brancas.
Lembre-se de que participamos de ensaios clínicos. Contribuímos para o conhecimento científico e para os dados. Não é como se tivéssemos ficado sentados dizendo “certo, deem-nos sua tecnologia, queremos usá-la agora”.
Acho que há uma suposição de que as pessoas no Sul Global importam menos e não têm o mesmo valor. É muito importante que o nosso movimento mostre que essa é uma questão de direitos humanos também. Por que isso é uma violação de direitos humanos? Não se trata apenas de “ah, vocês têm que ser bonzinhos com todo mundo”. Negar as ferramentas da inovação e do conhecimento científico ao maior número de pessoas possível, o mais rápido possível, ao mesmo tempo, é uma violação de direitos humanos. Argumentamos no British Medical Journal que isso é um crime. Um crime moral contra a humanidade. Isso é o apartheid vacinal.
Esse é o primeiro desafio [para a sociedade civil]. O segundo é: como é que nós não garantimos a renúncia ainda ou prosseguimos com a transferência de tecnologia compulsória? Como é que nós não vencemos essa batalha de transferência e compartilhamento de tecnologia? Após um ano e meio ou dois anos imersos na pandemia, ainda estamos atados à indústria, que está tomando todas as decisões com pouca transparência.
Enquanto movimento, apesar de todo o trabalho feito nos últimos 25 anos, sobretudo nos últimos dois anos de pandemia, como podemos estar em uma situação na qual os CEOs da Pfizer, da Moderna e da J & J são bilionários agora?
Eles ainda estão ganhando muito dinheiro e tomando todas as decisões importantes. Como é que criamos sistemas no mundo inteiro nos quais a PI é sacrossanta e a OMC é a instituição mais importante? As coisas não deveriam ser assim em uma pandemia. Tudo depende de a OMC ter uma conferência ministerial, marcar uma assembleia, adotar uma deliberação. É absurdo, não é? Parece que estamos vivendo num romance kafkiano ou algo assim. Se você contar o que aconteceu a alguém daqui a cinquenta anos, ninguém vai acreditar.
É por isso que devemos registrar a história, pois ninguém acreditará que, quando a pandemia de Covid-19 se intensificou, esses foram os países que impediram [a proposta], essas foram as empresas que enriqueceram e produziram tecnologia com recursos públicos e não a compartilharam. Elas ainda estão controlando os fornecimentos e as decisões e estão fazendo isso sem transparência nessa pandemia. Seu governo, meu governo e todos os outros estão usando todo o nosso dinheiro para comprar essas vacinas. Agora, temos que comprar uma segunda dose e uma terceira dose e nem sabemos se haverá uma quarta dose. Não sabemos quais são as condições dos contratos, e se você quiser descobrir isso terá que passar dois anos em um tribunal.
É como se estivéssemos operando em um sistema de Estado de Direito no qual devemos seguir as regras, mas somente aquelas que se aplicam à indústria no que se refere à propriedade intelectual. As empresas não querem seguir as regras quando o assunto é transparência nas aquisições ou contratos abertos, por exemplo.
Os tribunais na Colômbia disseram que o governo deve abrir os contratos [para o público] e eu acho que há uma tentativa de promulgar algumas leis no Brasil a esse respeito. Mas essas empresas estão nos dizendo “não vamos sequer dizer quem assinou os contratos”.
Assim, o desafio daqui em diante para nós enquanto movimento é como lidar com o poder corporativo, sobretudo o poder corporativo que está envolvido no fornecimento de tratamentos, tecnologias e serviços que salvam vidas. Não podemos continuar assim por mais 10 anos. Pode haver um tratamento milagroso que seria bastante útil para a Covid e todos nós tenhamos que ter acesso a ele, mas é assim que a indústria vai se comportar. Eles não compartilharam tecnologia ou sequer informações a respeito dos contratos. Eles estão impedindo a renúncia. Eles ainda estão no controle e já ganharam bilhões com isso. Eles estão em uma posição realmente “boa” para eles, não para nós. E nossos governos permitiram que isso acontecesse.
Daqui para a frente, o nosso trabalho deve ser obter uma reforma da OMC. Esse órgão precisa ser fundamentalmente reformulado ou deve sair do caminho. Ele não é um veículo adequado para resolver questões de vida ou morte envolvendo o acesso a tratamentos que salvam vidas. O TRIPS e a declaração de Doha não nos ajudaram a enfrentar a Covid – a OMC nos atrapalhou.
O mero fato de que remédios, diagnósticos e vacinas estão incluídos na definição do Acordo TRIPS é um problema para nós. Deveríamos retirar isso, ao menos da definição do que deveria ser patenteável, ou do que deveria ser protegido por um monopólio exclusivo. Temos muito trabalho pela frente.
Se não lidarmos com isso da maneira correta, a tecnologia do clima para a crise climática será controlada rigidamente por essas empresas. Elas farão valer seus direitos de propriedade intelectual. O governo alemão, em especial, não vai querer compartilhar as tecnologias verdes que vem desenvolvendo, também por meio de financiamento público e com cientistas públicos.
Há um motivo pelo qual a renúncia recebeu uma oposição tão veemente: tem a ver com a Covid, mas também com o que está por vir, e eles não querem compartilhar sua propriedade intelectual porque isso significaria a perda do controle e a perda dos lucros.
Por fim, os governos do Sul Global precisam repensar o poder e o controle que desejam entregar às farmacêuticas. Essa pandemia nos ensinou que será preciso adotar ações muito contundentes.
Não há ações voluntárias por parte dessas empresas que ajudem de fato a salvar vidas, pois elas não o farão com a rapidez suficiente ou sequer farão coisa alguma. E ações voluntárias, benevolência, doações – isso não funciona. Frequentemente usamos o termo “decolonizar”, mas temos um sistema de saúde global colonial, e é por isso que tivemos uma cobertura de 7% para a África no final do ano passado; que os fornecimentos são priorizados para o Norte mais rico; que sete nações podem basicamente impedir uma proposta apoiada por cem nações na OMC. Então, sim, temos uma crise.
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Entrevista conduzida por Renato Barreto em janeiro de 2022.
Original em inglês. Traduzido por Luis Henrique Misiara.