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Direitos humanos de pessoas migrantes e a covid-1911. Em outubro de 2021, quando este artigo estava em fase de edição, o Relator Especial sobre direitos humanos de migrantes apresentou o relatório à Assembleia Geral da ONU: “Un año y medio después: el impacto de la COVID-19 en los derechos humanos de los migrantes”, A/76/257, ONU, 30 de julho de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/A/76/257.

Felipe González Morales e Renato Zerbini Ribeiro Leão

A resposta dos Procedimentos Especiais e dos comitês da ONU

Estudio de Arquepoética y Visualística Prospectiva

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RESUMO

O profundo impacto da pandemia de Covid-19 sobre os direitos humanos em âmbito global é especialmente grave para as pessoas migrantes, devido ao nível de vulnerabilidade no qual essas pessoas tendem a se encontrar, o que é agravado em um contexto como o atual. Para os Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e para seus comitês, essa situação imprevista demandou uma resposta urgente e dinâmica, que vem sendo realizada por meio de pronunciamentos e documentos de caráter abrangente, como as comunicações e observações aos Estados. Este artigo descreve a resposta dos organismos citados acima, analisando os principais tópicos tratados por eles.

Palavras-Chave

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Introdução

A súbita aparição e rápida disseminação da Covid-19,22. Dado que a Covid-19 se refere a uma doença, os autores utilizarão o gênero feminino para se referir a ela: a Covid-19, como faz a Organização Mundial da Saúde em seus documentos oficiais. atingindo as características de uma pandemia, vêm exigindo uma resposta urgente e adaptada às circunstâncias por parte dos Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos comitês, órgãos internacionais criados em virtude da execução dos tratados sobre esses direitos. Isso ocorreu no que toca à mais ampla gama de assuntos sobre os quais a Covid-19 produziu severos efeitos negativos. Considerando a situação precária de muitas pessoas migrantes, que se aprofundou notavelmente como consequência da pandemia, com graves efeitos sobre seus direitos humanos, a migração se torna uma questão de suma importância.

1. Os Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos e os comitês da ONU

Os Procedimentos Especiais são órgãos vinculados ao CDH da ONU responsáveis pela proteção e promoção de direitos humanos em todos os Estados da ONU, independentemente de eles terem ou não ratificado tratados específicos sobre a matéria em questão. Os Procedimentos Especiais incluem relatorias especiais, especialistas independentes e grupos de trabalho. No início da pandemia, os Procedimentos Especiais se reuniram virtualmente para planejar respostas conjuntas aos desafios emergentes relacionados aos direitos humanos no novo contexto sanitário.33. Isso ocorreu por meio de um Webinar realizado em 22 de abril de 2020.

Os comitês da ONU são órgãos de supervisão estabelecidos por uma série de tratados internacionais de direitos humanos. Cada comitê é composto por especialistas independentes que examinam os relatórios dos Estados-Partes sobre o cumprimento e implementação das disposições desses tratados. A maioria dos comitês também está facultada por um protocolo opcional para receber reclamações individuais. Atualmente, existem dez comitês e cada um deles tem uma pessoa na presidência, as quais se reúnem uma vez ao ano na reunião de presidentas/es.44. Os dez comitês são: o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD); o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC); o Comitê de Direitos Humanos (CCPR); o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW); o Comitê contra a Tortura (CAT); o Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT); o Comitê dos Direitos da Criança (CDC); o Comitê para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias (CMW); o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD); e o Comitê contra o Desaparecimento Forçado (CED). A abreviatura dessas siglas dos comitês segue a nomenclatura oficial do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Para uma resposta mais coordenada e abrangente à pandemia, as/os presidentas/es dos comitês concordaram em criar o Grupo de Trabalho sobre Covid-19 (GTCovid-19), que é composto por dezenove especialistas dos dez comitês e tem o mandato de aconselhar as presidências e comitês sobre os desafios apresentados pela pandemia no funcionamento do sistema de órgãos de tratados de direitos humanos da ONU. O GTCovid-19 também foi encarregado de analisar os aspectos mais substantivos da Covid-19 e dos direitos humanos.55. O Grupo de Trabalho Covid-19 (GTCovid-19) foi criado na 32ª Reunião de Presidentes dos Órgãos de Tratados de Direitos Humanos das Nações Unidas, realizada online de 27 a 30 de julho de 2020, e suas funções foram ratificadas e ampliadas na 33ª reunião, realizada entre 7 e 11 de junho de 2021. Até junho de 2021, o GTCovid-19 realizou dez reuniões virtuais.

As/Os dez presidentas/es dos órgãos instituídos pelos tratados de direitos humanos da ONU conclamaram os países a adotarem medidas que protejam os direitos à vida e à saúde, incluindo o acesso à assistência médica para quem dela necessite, sem qualquer discriminação. Também instaram os governos a dar atenção especial às pessoas especialmente vulneráveis aos efeitos da Covid-19, como é o caso de migrantes, entre outras medidas. Especialistas também destacaram que as mulheres, incluindo as migrantes, estão expostas a um risco desproporcionalmente alto na pandemia, já que em diversas sociedades elas são as principais encarregadas de cuidar das pessoas doentes na família.66. Comunicado de imprensa: “Chairs of treaty bodies - UN Human Rights Treaty Bodies call for human rights approach in fighting COVID-19”, OHCHR, 24 de março de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/TB/COVID19/External_TB_statements_COVID19.docx.

Uma iniciativa muito relevante e de caráter transversal sobre a matéria que será examinada neste artigo é a Nota de Orientação Conjunta sobre os impactos da pandemia da Covid-19 sobre direitos humanos de migrantes (Nota de Orientação Conjunta), que foi elaborada em conjunto pelo Comitê para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias (CMW, no original em inglês) e pelo Relator Especial sobre direitos humanos de migrantes da ONU. 77.Nota de Orientación conjunta acerca de los impactos de la pandemia de COVID-19 sobre los derechos humanos de los migrantes”, Comitê para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias da ONU e Relator Especial sobre direitos humanos de migrantes da ONU, 26 de maio de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Migration/CMWSPMJointGuidanceNoteCOVID-19Migrants_SP.pdf.

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2. Cooperação internacional e ajuda ao desenvolvimento

Em sua Declaração sobre a Pandemia de Coronavírus (Covid-19) e os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC), o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC) destacou que os Estados-Partes do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) têm que cooperar com outros países para complementar e garantir programas nacionais de promoção dos DESC, mitigando assim o impacto da pandemia nas pessoas em maior vulnerabilidade, incluindo migrantes. Para tanto, a cooperação internacional pode assumir a forma de assistência financeira ou técnica.88.Declaración sobre la pandemia de enfermedad por coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales”, E/C.12/2020/1, ONU, 17 de abril de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/E/C.12/2020/1.

Também foram destacadas medidas específicas necessárias para proteger os DESC durante o período pandêmico, como o fornecimento de água, sabão e desinfetante para as comunidades que não têm acesso a eles; proteção específica aos empregos, salários e benefícios para as pessoas trabalhadoras; proteção às pessoas trabalhadoras contra o risco de contágio; mitigação do impacto econômico da Covid-19, inclusive por meio de subsídios salariais e redução de impostos; moratória nos despejos ou execuções de títulos hipotecários; proibição da especulação de preços dos produtos essenciais; e a promoção de auxílio à renda e de outros subsídios para garantir a segurança alimentar, entre outros.99. Ibid., seção III, § 10-25.

3. Discriminação e xenofobia

As práticas discriminatórias endêmicas contra a população migrante, especialmente destacadas contra as pessoas em situação irregular, foram fortalecidas durante a pandemia. Isso teve um impacto central no acesso aos serviços públicos e, em alguns países, significou a exclusão da população migrante na distribuição de alimentos pelo Estado.

O Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD, no original em inglês) recomendou a elaboração e implementação, em todos os âmbitos governamentais, de estratégias específicas para mitigar os efeitos socioeconômicos da pandemia de Covid-19 sobre os povos ciganos e nômades, garantindo a participação desses grupos no desenvolvimento, aplicação e acompanhamento dessas estratégias.1010. “Observaciones finales sobre los informes periódicos 20º a 22º de Bélgica”, CERD/C/BEL/CO/20-22, Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, 30 de abril de 2021, §. 23, acesso em 18 de novembro de 2021, https://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2fPPRiCAqhKb7yhsr69Gyhm7QM1Oqny37itcWj%2f24FroBjCaMewiKH8VB33Y8s%2fkXw5yPV3hlqdpQB%2bOj1UTuH%2fkQ8nDro0MQgpgrlez4cn8du3weL9ymbdg5eZfDad5weRlawSN3mcbKof%2bQ%3d%3d. A inclusão das pessoas migrantes nas políticas públicas e nos processos de desenvolvimento, aplicação e monitoramento de ações estratégicas, a fim de combater adequadamente a discriminação, é imprescindível.

O Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW, no original em inglês) solicitou, com base na nota de orientação do Comitê sobre a Convenção Sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e a doença do coronavírus (Covid-19), que as desigualdades de longa data entre mulheres e homens fossem sanadas, colocando mulheres e meninas no cerne das estratégias de recuperação em consonância com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, com atenção especial às mulheres, mulheres migrantes, refugiadas e solicitantes de asilo.1111. “Observaciones finales al noveno informe periódico de Dinamarca”, CEDAW/C/DNK/CO/9, Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, 9 de março de 2021, §. 11, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/CEDAW/C/DNK/CO/9.

Durante a pandemia, vem sendo observado um aumento da linguagem e das práticas xenófobas, sem desconsiderar que também existam práticas e discursos solidários. O fortalecimento de um discurso xenófobo é uma tendência que vem se expandindo de forma preocupante nos últimos anos e que se agravou durante a crise sanitária, quando se atribuiu às pessoas migrantes a propagação do contágio. A Nota de Orientação Conjunta faz uma solicitação a favor da prevenção “do uso de indivíduos ou grupos de migrantes como bode expiatório” (tradução livre).1212. Ibid., número 15.

Também vale a pena mencionar uma recente recomendação do CERD para a adoção de todas as medidas necessárias para prevenir e combater vigorosamente os crimes de ódio motivados por questões raciais e a incitação ao ódio, bem como para proteger os grupos mais vulneráveis à discriminação racial, incluindo no contexto da pandemia de Covid-19, que afeta as pessoas de origem asiática em particular.1313. CERD/C/BEL/CO/20-22, §. 18-19. O Relator Especial sobre direitos humanos de migrantes enviou uma série de comunicações sobre esses assuntos aos Estados, como, por exemplo, aos Estados Unidos1414. Comunicación, OHCHR, 12 de agosto de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25476. e à Malásia.1515. Comunicación, OHCHR, 19 de fevereiro de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=26052.

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4. Normas de exceção

No contexto da pandemia de Covid-19, os Estados empregaram diversas normas de exceção que restringem os direitos humanos, incluindo os de pessoas migrantes. Isso vem sendo feito por meio da declaração de estados de exceção constitucional (sob denominações diferentes de acordo com os países, como estado de alarme, estado de emergência, entre tantos outros) ou da aplicação de decretos, especialmente de disposições de caráter sanitário.

Embora em termos gerais, e dependendo da situação de cada Estado, região ou cidade, o uso de normas de exceção possa ser justificado, isso não significa que as autoridades possam fazê-lo de forma arbitrária ou discriminatória. Esse aspecto é de particular relevância no caso da população migrante que, devido à sua costumeira situação de vulnerabilidade, está mais exposta às referidas práticas de violação de direitos humanos. A Nota de Orientação Conjunta refere-se a esse assunto como o primeiro aspecto a ser tratado, observando que “é de extrema importância que as respostas emergenciais do Estado à pandemia de Covid-19 sejam necessárias para atingir os objetivos legítimos de saúde pública, que apliquem, proporcionalmente, os meios menos intrusivos possíveis e sejam não discriminatórias, de modo a não serem voltadas a grupos particularmente vulneráveis, incluindo minorias e indivíduos” (tradução livre).1616. “Nota de Orientación conjunta acerca de los impactos de la pandemia del COVID-19 sobre los derechos humanos de las personas migrantes”, UN Committee on Migrant Workers e UN Special Rapporteur on the Human Rights of Migrants, 26 de maio de 2020, número 1, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Migration/GUIDANCE%20NOTE%20SPANISH.pdf.

5. Saúde e assistência sanitária

O CDESC recomendou que os Estados assumam o compromisso de que os recursos de assistência sanitária durante a pandemia, nos setores público e privado, sejam mobilizados e canalizados para toda a população de modo a assegurar uma resposta de saúde abrangente e coordenada à pandemia de Covid-19. Além disso, devem ser adotadas medidas para garantir que as limitações dos recursos de saúde devido à pandemia de Covid-19 não impeçam significativamente a prestação de outros serviços e assistência sanitária, incluindo aqueles relacionados a doenças pré-existentes, cuidados de saúde mental e serviços de saúde sexual e reprodutiva.1717. “Observaciones finales sobre el segundo informe periódico de Letonia”, E/C.12/LVA/CO/2, ONU, 30 de março de 2021, § 41, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/E/C.12/LVA/CO/2. Essa recomendação deve ser lida em consonância com o Comentário Geral no. 14, por meio do qual o Comitê adverte os Estados-Partes do PIDESC que eles têm a obrigação de respeitar o direito à saúde, em particular abstendo-se de negar ou limitar o acesso igualitário de todas as pessoas, incluindo migrantes, aos serviços de medicina preventiva, curativa e paliativa.1818. “Observación general nº 14 (2000) sobre el derecho al disfrute del más alto nível posible de salud (artículo 12 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales)”, E/C.12/2000/4, ONU, 11 de agosto de 2000, § 34, p.13, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/E/C.12/2000/4.

O Relator Especial sobre direitos humanos de migrantes e o Relator Especial sobre o direito à saúde emitiram uma declaração no início dos processos de vacinação em diversos países, afirmando que os Estados devem garantir a igualdade de acesso à vacina para as pessoas migrantes (regulares e irregulares) e cidadãs/ãos nacionais nesses processos, bem como em todas as medidas sanitárias contra a Covid-19.1919. “El acceso equitativo para todos, incluidas las personas migrantes, es crucial, señalan Relatores Especiales de Naciones Unidas”, ONU, 22 de janeiro 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/SP/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26684&LangID=S.

Além disso, o Relator Especial sobre direitos humanos de migrantes dirigiu comunicações a alguns Estados sobre as medidas sanitárias adotadas no contexto da pandemia, entre eles, aos Emirados Árabes Unidos2020. Comunicación, OHCHR, 25 de agosto de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25490. e aos Estados Unidos.2121. Comunicación, OHCHR, 15 de janeiro 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25835.

5.1 Vacina

O acesso às vacinas deve ser garantido para todas as pessoas até o limite dos recursos disponíveis nos países e de acordo com as medidas necessárias para a vacinação universal e sem discriminação – e, sendo assim, as pessoas migrantes são plenamente contempladas. O dever de imunização contra as principais doenças infecciosas e de prevenção e controle das epidemias é uma obrigação prioritária como consequência do direito à saúde (Artigo 12º do PIDESC). É obrigatório garantir a máxima prioridade na disponibilidade de vacinas capazes de contribuir para o combate da Covid-19. Os países têm o dever de fornecer informações confiáveis e transparentes, baseadas nas melhores evidências científicas, para que as/os cidadãs/ãos possam decidir se desejam se vacinar ou não. Nesse sentido, todos os obstáculos administrativos e burocráticos devem ser superados em prol de políticas públicas céleres e eficientes de acesso universal e equitativo às vacinas.2222. “Declaración sobre el acceso universal y equitativo a las vacunas contra la enfermedad por coronavirus (COVID-19)”, E/C.12/2020/2, ONU, 15 de dezembro de 2020, § 1-12, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/E/C.12/2020/2.

O direito à saúde exige que as instalações, serviços e bens de saúde, incluindo as vacinas, sejam acessíveis, aprovados e de boa qualidade, os quais devem não somente ser produzidos e estar disponíveis, mas também, de acordo com o princípio da igualdade e não discriminação, ser acessíveis a todas as pessoas, sem barreiras como nacionalidade ou condição migratória. Portanto, o acesso físico às vacinas deve ser garantido, especialmente para os grupos marginalizados e desfavorecidos, incluindo migrantes, usando canais estatais ou privados, reforçando especialmente a capacidade de entrega e distribuição. Além disso, é necessário garantir a gratuidade das vacinas, especialmente para as pessoas que vivem na pobreza e com baixa renda. Ademais, nesta era digital e de notícias falsas, o acesso a informações relevantes e cientificamente comprovadas sobre a segurança e eficácia das diferentes vacinas deve ser garantido de forma consistente, reforçado por campanhas públicas para proteger a população de informações falsas ou da pseudociência. Ninguém deve ser deixado para trás se decidir se vacinar.2323. “La promesa de no dejar a nadie atrás: el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, y la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible”, E/C.12/2019/1, ONU, 5 de abril de 2019, §20, p.7, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/E/C.12/2019/1. Os Estados-Partes do PIDESC são obrigados a fornecer acesso à vacina e incluir pessoas migrantes entre as/os destinatárias/os.2424. E/C.12/2020/2, §. 4.

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6. Detenção migratória

De acordo com uma extensa jurisprudência de diversos órgãos da ONU,2525. Por exemplo, a Relatoria Especial para direitos humanos de migrantes, o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias, o Comitê sobre Trabalhadores Migrantes, o Comitê para os Direitos da Criança, entre outros. a detenção de migrantes em idade adulta só pode ser usada como medida de último recurso e a detenção de crianças migrantes deve ser descartada.2626. “Poner fin a la detención de menores por razones de inmigración y proporcionarles cuidado y acogida adecuados”, A/75/183, ONU, 20 de junho de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/A/75/183. O Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular, adotado por mais de três quartos dos Estados da ONU em 2018, estabelece de maneira explícita o anterior e inclui o compromisso de trabalhar para acabar com a detenção infantil de migrantes. Nesse sentido, tem havido uma assimetria crescente entre as práticas dos Estados e os padrões internacionais sobre a detenção de migrantes.

O contexto da pandemia tornou a situação das pessoas migrantes privadas de liberdade especialmente premente, devido aos graves riscos para a sua saúde e vida e ao impacto na saúde pública em geral (considerando a elevada contagiosidade da Covid-19). A Nota de Orientação Conjunta aborda essa questão, reafirmando os padrões indicados sobre a privação de liberdade de pessoas adultas e crianças e chamando a atenção para os níveis preocupantes de superlotação em muitos centros de detenção e a falta de provisão adequada de serviços de saúde.2727. “Nota de Orientación conjunta…”, número 11.

Também foram feitas solicitações sobre esse assunto por parte da relatoria a países específicos, como os Estados Unidos, um dos países que pratica a detenção de migrantes em maior escala. Desse modo, solicitou-se a liberação de migrantes em centros de detenção com alto risco de contágio da Covid-192828. “EE.UU.: los migrantes ‘retenidos para su procesamiento’ deben ser liberados de los centros de detención con alto riesgo de COVID-19”, OHCHR, 27 de abril de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/SP/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25827&LangID=S. para a adoção de medidas de prevenção de surtos de grande magnitude em locais de detenção, incluindo aqueles nos quais as pessoas migrantes estão reclusas,2929. “Se insta al gobierno de Estados Unidos a que adopte más medidas para prevenir brotes de gran magnitud de COVID-19 en centros de detención: expertos de Naciones Unidas”, OHCHR, 29 de maio 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/SP/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25912&LangID=S. e foi enviada uma comunicação ao Estado em relação a um centro de detenção em que a situação de saúde era especialmente grave.3030. Comunicación, OHCHR, 22 de abril de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25190.

A Arábia Saudita,3131. Comunicación, OHCHR, 28 de janeiro de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25729. a Malásia3232. Comunicación, OHCHR, 14 de maio de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=26052; Comunicación, OHCHR, 19 de fevereiro de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=26052. e o México3333. Comunicación, OHCHR, 23 de dezembro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25793. também receberam comunicações sobre detenção de migrantes no contexto da pandemia.

De forma excepcional, ocorreram casos de Estados que haviam eliminado quase que completamente a detenção de migrantes anos atrás e que a restabeleceram durante a pandemia. Esse é o caso do Panamá, que criou o centro de detenção para migrantes, inclusive de crianças, “La Peñita”. A Relatoria Especial sobre direitos humanos de migrantes enviou uma comunicação ao Estado sobre o tema.3434. Comunicación, OHCHR, 25 de setembro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25564. Em âmbito regional americano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu medidas provisórias sobre esse caso: “Resolución de la Presidenta de la Corte Interamericana de Derechos Humanos”, Corte IDH, 26 de maio de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/velez_se_01.pdf.

Paradoxalmente, a pandemia teve o efeito benéfico de que, em muitos Estados, a prática de detenção de migrantes foi significativamente reduzida e que, em outros, todas as pessoas migrantes detidas foram libertas.3535. “Follow-up advice of the Subcommittee to State parties and national preventive mechanisms relating to the coronavirus disease (COVID-19) pandemic”, CAT/OP/12, ONU, 18 de junho de 2021, §. 9, letra e, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/CAT/OP/12.

O Comitê de Direitos Humanos recomendou que, durante a pandemia, os países continuem e intensifiquem seus esforços para melhorar as condições e reduzir a superlotação nos locais de privação de liberdade, em particular, aumentando o uso de alternativas à detenção e garantindo que as condições nos locais de detenção se adequem plenamente às Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Regras de Nelson Mandela).3636. “Concluding observations on the fourth periodic report of Kenya”, CCPR/C/KEN/CO/4, ONU, 11 de maio de 2021, §. 30-31, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/CCPR/C/KEN/CO/4.

O Comitê contra o Desaparecimento Forçado (CED, no original em inglês) recomendou a adoção de todas as medidas necessárias para garantir que, quando as visitas forem limitadas por circunstâncias como a pandemia de Covid-19, as pessoas privadas de liberdade tenham os meios necessários para se comunicar sem demora com pessoas de sua escolha. Da mesma forma, encorajou os Estados-Partes a observar as diretrizes sobre Covid-19 e desaparecimentos forçados adotadas pelo Comitê e pelo Grupo de Trabalho sobre os Desaparecimentos Forçados ou Involuntários e a adotar medidas em sua resposta à pandemia de Covid-19 com o objetivo de reduzir a população carcerária e facilitar o contato das pessoas privadas de liberdade com o mundo exterior.3737. “Observaciones sobre la información adicional presentada por Irak en virtud del artículo 29 (4) de la Convención”, CED/C/IRQ/OAI/1, ONU, 1 de dezembro de 2020, §. 19, https://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2fPPRiCAqhKb7yhsummCOBeTca5EXIHB4IwLH3D%2biq2ucswJBorWdYqfY%2fthlnnknBZXoEVXtqcPR9vs4cPxTwSotRsPvK7RHP5SFvy6peAco2N3PlMPIdalhZk; ver também “Observaciones finales sobre el informe presentado por Suiza en virtud del artículo 29, párrafo 1, de la Convención”, CED/C/CHE/CO/1, ONU, 21 de maio de 2021, §. 7, acesso em 18 de novembro de 2021, https://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2fPPRiCAqhKb7yhsvWEcYi4SkTd9aSYyGiII5IThG1Udmyt3UvV0aFXug4N3cBFdbRGl4UUGTjJ%2fTMg8GJnuu5mZypSxVerTVSF%2bOewg3i8WeBPmQVsydOct2C7; e “Observaciones finales sobre el informe inicial de Estonia”, CRPD/C/EST/CO/1, ONU, 5 de maio de 2021, §. 21, acesso em 18 de novembro de 2021, https://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2fPPRiCAqhKb7yhslxq2MulDp%2fqMKQ6SGOn0%2fMA1LSpvgYM3DCkpjGjvUUy2myJFM%2bOsTgWsCuGm4B2qkFeGZfEkMOHaNUznBwRun2ASLaH854xEbX18CdlhGds.

6.1 Deportações e outros tipos de retornos

A Nota de Orientação Conjunta instou os países a considerarem a suspensão das deportações de migrantes durante a pandemia.3838. “Nota de Orientación conjunta…”, número 14. Também se referiu à obrigação de garantir o direito das pessoas migrantes ao retorno voluntário aos seus países de origem.3939. Ibid., número 13. Em relação às deportações, a justificativa encontra-se na proteção da vida e da saúde das pessoas migrantes, que podem ser colocadas em grave risco em caso de deportação no contexto de uma pandemia e obedece também razões de política sanitária, para salvaguardar a saúde da população em geral. Um exemplo disso ocorreu em um processo de deportação em massa de pessoas migrantes guatemaltecas realizado pelos Estados Unidos no início da pandemia, que incluiu mais de cem pessoas migrantes contaminadas com Covid-19.4040. “Guatemala: ¿traen los deportados el coronavirus?”, Deutsche Welle, 22 de maio de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.dw.com/es/guatemala-traen-los-deportados-el-coronavirus/a-53538482.

Uma forma particularmente grave de deportação são as chamadas “expulsões sumárias” (“pushbacks”, termo em inglês). Esse assunto foi tratado em um recente relatório temático do Relator Especial sobre direitos humanos de migrantes, que inclui uma caracterização e análise dessa prática no contexto da pandemia, que é especialmente grave devido aos riscos adicionais que implica à vida e à saúde das vítimas.4141. “Informe sobre las formas de hacer frente a los efectos en los derechos humanos de las devoluciones en caliente de migrantes en tierra y mar, Informe del Relator Especial sobre los derechos humanos de los migrantes, Felipe González Morales”, A/HRC/47/30, ONU, 12 de maio de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://undocs.org/es/A/HRC/47/30. O relatório define as expulsões sumárias como “diversas medidas adotadas pelos Estados, em cuja aplicação, por vezes, intervêm países terceiros ou atores não estatais, o que faz com que as pessoas migrantes, incluindo as requerentes de asilo, sejam sumariamente obrigadas a retornar ao país ou ao território, ou ao mar, quer se trate de águas territoriais ou internacionais, por onde tentaram atravessar ou atravessaram uma fronteira internacional. Isso ocorre sem uma avaliação individual das necessidades de proteção de direitos humanos dessas pessoas migrantes” (§. 34, tradução livre). O relatório foi apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU nos dias 23 e 24 de junho de 2021. O relatório destaca que, “embora em uma crise global de saúde pública possa ser necessário impor restrições a viagens, exames, rastreios, testes, quarentena médica ou medidas de isolamento, essas medidas não podem resultar na negação do acesso efetivo ao asilo e proteção previstos sob a égide do direito internacional” (tradução livre).4242. Ibid., §. 106. O relatório acrescenta que “[as] operações de busca e resgate foram atrasadas ou comprometidas pela quarentena obrigatória, além dos exames médicos de rotina” (tradução livre).4343. Ibid., §. 83.

O Relator Especial sobre direitos humanos de migrantes também abordou a questão das “expulsões sumárias” no contexto da pandemia de modo bilateral com vários países, entre eles, por exemplo, Grécia,4444.Rights violations against asylum-seekers at Turkey-Greece border must stop: UN Special Rapporteur”, OHCHR, 23 de março de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25736&La. Croácia,4545. “Croacia: police brutality in migrant pushback operations must be investigated and sanctioned: UN Special Rapporteurs”, OHCHR, 19 de junho de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25976&LangID=E. Índia,4646. Comunicación, OHCHR, 8 de abril de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=26339. Peru,4747. Comunicación, OHCHR, 23 de março de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=26303. Malásia,4848. Comunicación, OHCHR, 19 de fevereiro de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=26052. Espanha,4949. Comunicación, OHCHR, 14 de abril de 2021, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=26327. Malta,5050. Comunicación, OHCHR, 9 de dezembro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25753. Itália5151. Comunicación, OHCHR, 9 de novembro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25699; Comunicación, OHCHR, 1 de outubro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25526. e Trinidad e Tobago.5252. Comunicación, OHCHR, 14 de setembro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25536.

Já os retornos voluntários aumentaram em diversas regiões durante a pandemia. Esses retornos implicam obrigações tanto para o Estado de origem quanto para o de destino. Para o Estado de origem, de acordo com os padrões internacionais, há a obrigação de permitir que eles ocorram e de acolher e reintegrar as pessoas migrantes que retornam. O Estado de destino, por sua vez, deve permitir que as pessoas deixem o território, mas também tem um conjunto de obrigações mais abrangentes, cujo incumprimento tem contribuído para aumentar os retornos: a obrigação de garantir o acesso adequado aos serviços públicos, incluindo o acesso à saúde e aos direitos econômicos e sociais a que nos referimos em outra seção.

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7. Acesso à informação e monitoramento

O contexto pandêmico tem levantado questionamentos em diversos países sobre o grau no qual as autoridades garantem o acesso gratuito à informação pública sobre questões sanitárias. É verdade que devido às próprias características da pandemia pode haver dificuldades para as autoridades recolherem informações ou para algumas formas de acesso por parte de cidadãs e cidadãos (como, por exemplo, quando requerem presença física). Não obstante, vêm ocorrendo inúmeras denúncias de autoridades que se aproveitam dessa situação, dificultando deliberadamente o acesso das/os cidadãs/ãos à informação pública. Isso é especialmente oneroso para a população migrante, cujo acesso à informação é geralmente limitado, mesmo em situações de normalidade.

O monitoramento independente das condições dos direitos humanos das pessoas migrantes, especialmente aquele realizado por organizações da sociedade civil, incluindo organizações de direitos humanos e associações de migrantes, é uma ferramenta indispensável para a proteção de direitos de pessoas migrantes5353. “Nota de Orientación conjunta…”, número 16. e, em diversos países, tem estado sujeito a sérias limitações durante a pandemia. Nesse sentido, o contexto de crise sanitária impõe por si só certas restrições. No entanto, e conforme indicado em relação ao acesso à informação, em termos de monitoramento também houve limitações adicionais não justificadas. Isso vem acontecendo de forma especial – mas de forma alguma exclusiva – às restrições às visitas de monitoramento aos centros de detenção de migrantes. Cabe ressaltar que foram preparados relatórios da sociedade civil elaborados de forma inteiramente virtual.5454. Ver, por exemplo, “Informe de Hallazgos de la Misión de Observación de Derechos Humanos en la Frontera Sur de México”, MODH, agosto-setembro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://gtpm.mx/wp-content/uploads/2020/12/Informe-Final-MODH-2020.pdf.

8. Asilo e outras formas de proteção internacional

O direito de solicitar asilo já encontrava severas limitações antes da pandemia, que foram exacerbadas durante ela. Quer pela existência de normas e requisitos processuais incompatíveis com o devido processo e com o direito de acesso à justiça, quer por determinadas decisões com uma interpretação restrita do direito de solicitar asilo, este tem sofrido um retrocesso significativo nos últimos anos. Isso faz com que muitas pessoas que teriam seu status de refúgio reconhecido ou receberiam alguma outra forma de proteção internacional, caso fossem cumpridos os padrões internacionais de proteção, fiquem sem a possibilidade efetiva de obter seus direitos, permanecendo em diversos casos como migrantes sem documentos.

No contexto da pandemia, o direito de buscar asilo tornou-se ainda mais difícil de ser exercido, uma vez que as limitações impostas pela crise sanitária pela sua própria natureza são agravadas por obstáculos deliberadamente colocados por diversos Estados. Esse direito é reafirmado no contexto de emergência e da obrigação dos Estados em efetivá-lo, dando ênfase à situação das crianças desacompanhadas, vítimas do tráfico e pessoas em deslocamento pertencentes a outros grupos vulneráveis.5555. “Nota de Orientación conjunta…”, número 9. O direito de solicitar asilo também foi abordado pelo Relator Especial sobre direitos humanos em comunicações com diversos Estados, como, por exemplo, com o México.5656. Comunicación, OHCHR, 23 de dezembro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25793.

8.1 Processos de regularização

Durante a pandemia, diversos países prorrogaram os vistos de residência temporária até o término da crise sanitária5757. Como, por exemplo, Argentina, Espanha, Itália, Tunísia e outros. e alguns concederam vistos de residência temporária a migrantes que se encontravam em situação irregular.5858. Esse é o caso, por exemplo, de Portugal. As organizações internacionais de direitos humanos avaliaram positivamente essas iniciativas, tanto por seu impacto para a efetivação do direito à saúde da população migrante quanto, de maneira mais geral, por prover certa segurança e estabilidade durante a pandemia.

A solicitação da Relatoria Especial sobre direitos humanos de migrantes e do Comitê dos Trabalhadores Migrantes foi ainda além, encorajando os Estados a realizarem processos de regularização adequados (uma vez que as iniciativas que acabamos de descrever não são, a rigor, instâncias de regularização).5959. “Nota de Orientación conjunta…”, número 12. Embora não exista uma norma no direito internacional que estabeleça explicitamente a obrigação dos Estados de realizar processos de regularização massiva, órgãos de direitos humanos da ONU e do Sistema Interamericano, interpretando as normas internacionais existentes, indicaram repetidamente que, em circunstâncias nas quais os direitos humanos das pessoas migrantes não podem ser garantidos de forma adequada sem a sua regularização, ela deve ser realizada. Isso já foi mencionado, por exemplo, sobre situações em que a falta de regularização provoca sérios entraves ao acesso aos serviços públicos. Em um contexto de pandemia, isso é especialmente urgente no que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde.

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9. Inclusão de migrantes nos planos de recuperação econômica e social

As pessoas migrantes devem ser incluídas nos planos de recuperação econômica e social no contexto da pandemia e depois dela. É claramente previsível que, dada a magnitude do impacto da pandemia nas esferas econômica e social, seus efeitos perdurarão por um tempo considerável.

Nesse sentido, a Nota de Orientação Conjunta levanta a questão da inclusão das pessoas “migrantes e de suas famílias, independentemente do seu status migratório, nas políticas de recuperação econômica, tendo em conta a necessidade de recuperar os fluxos de remessas” (tradução livre).6060. Ibid., número 7.

Por ocasião do Dia Internacional dos Migrantes de 2020, os mecanismos da ONU, em conjunto com organismos regionais de direitos humanos da África, das Américas e da Europa, divulgaram um comunicado no qual a questão da inclusão das pessoas migrantes nos planos de recuperação foi o tema central.6161. “Migrants must be included in all COVID-19 Recovery Plans – UN and regional experts”, OHCHR, 18 de dezembro de 2020, acesso em 18 de novembro de 2021, https://www.ohchr.org/SP/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26618&LangID=E.

O CDESC, por sua vez, embora reconheça que as pessoas migrantes são grupos tradicionalmente afetados pelo desemprego, tem demonstrado preocupação com a continuidade elevada da taxa de desemprego entre pessoas requerentes de asilo, refugiadas e migrantes na Bolívia. Como consequência, recomendou que esse Estado-Parte do PIDESC, no contexto da redução das oportunidades de emprego devido à crise causada pela pandemia de Covid-19, tome medidas urgentes de reativação econômica e intensifique os esforços para fornecer apoio a quem busca emprego, supervisionando a introdução de adaptações temporárias na legislação trabalhista em resposta à pandemia de Covid-19 para prevenir violações.6262. “Observaciones Finales sobre el tercer informe periódico del Estado Plurinacional de Bolivia”, E/C.12/BOL/CO/3, ONU, 5 de novembro de 2021, §. 26-27, acesso em 18 de novembro de 2021, https://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=4slQ6QSmlBEDzFEovLCuW4OHatHG2mTj7kMWWS6NlIn6pjdT3jfzhwzQhLt2RK35q8NHLUdhy9IK98TyalEURNYELKxLRMRnAJiSyo%2fWn%2bsPa61t8CTsoUAh8s%2fyvEd%2f.

O CDESC também se preocupa com as dificuldades de acesso à seguridade social para pessoas requerentes de asilo, refugiadas e migrantes com empregos precários no setor informal, que inclusive aumentaram durante a pandemia. Para fazer frente contra essa realidade, o CDESC recomendou fortalecer ações para garantir o acesso aos benefícios da seguridade social sem discriminação, melhorar a cobertura e os serviços para pessoas que se dedicam exclusivamente ao trabalho doméstico não remunerado, promover uma percepção positiva da contribuição das pessoas trabalhadoras migrantes para o sistema de seguridade social e assegurar que os benefícios sociais sejam suficientes para fornecer um padrão de vida adequado a quem os recebe, considerando os efeitos da pandemia de Covid-19.6363. Ibid., §. 36-37.

Conclusão

Os Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos e dos órgãos internacionais de supervisão criados em virtude da celebração dos tratados de direitos humanos da ONU geraram um verdadeiro regime de proteção de direitos humanos de migrantes em relação à pandemia de Covid-19. Diversos obstáculos relacionados a direitos de migrantes que existiam antes da pandemia foram exacerbados no novo contexto, como, por exemplo, em termos de acesso à saúde, discriminação e xenofobia, detenção migratória, deportações, assim como os demais casos analisados neste trabalho, o que levou à necessidade de dar novas respostas.

Nesse sentido, o futuro próximo está cheio de desafios para os órgãos da ONU acima mencionados, incluindo questões como o monitoramento dos processos de vacinação a partir de uma perspectiva de direitos humanos, as condições econômicas e sociais das pessoas migrantes durante e após a pandemia, o acompanhamento para garantir que as medidas de exceção sejam apenas usadas quando apropriado e dentro de limites legítimos, bem como outras questões das políticas de migração dos Estados e da comunidade internacional.

Felipe González Morales - Chile

Felipe González Morales é o Relator Especial das Nações Unidas sobre direitos humanos de migrantes, além de professor da Universidade Diego Portales e doutor em Estudos Avançados em Direitos Humanos pela Universidade Carlos III de Madri.

Recebido em julho de 2021

Original em espanhol. Traduzido por Fernando Sciré.

Renato Zerbini Ribeiro Leão - Brasil

Renato Zerbini Ribeiro Leão é Membro do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas. Foi seu Presidente entre 2019 e 2021. É professor do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, além de membro do Conselho de Administração do Instituto Interamericano de Direitos Humanos de San José, Costa Rica e Ph.D. em Direito Internacional e Relações Internacionais.

Recebido em julho de 2021

Original em espanhol. Traduzido por Fernando Sciré.