Dossiê Sur sobre Raça e Direitos Humanos

Pautando a igualdade racial na agenda global de Direitos Humanos

E. Tendayi Achiume

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RESUMO

A igualdade é geralmente marginalizada dentro da agenda global de direitos humanos e entre aqueles que dominam o poder na elaboração e execução desta agenda. Além disso, as pessoas de cor nas linhas de frente da opressão racial permanecem excluídas da tomada de decisões e da produção de conhecimento em direitos humanos. Este ensaio busca colocar a igualdade racial no centro da agenda de direitos humanos. Para tanto, remediar esse estado das coisas requer incutir um compromisso substantivo com a igualdade racial na agenda global de direitos humanos. Requer priorizar uma abordagem interseccional e estrutural para a discriminação racial e levar a sério o papel das comunidades de cor e seus representantes não só na luta contra a desigualdade racial, mas também na definição da natureza dos direitos humanos.

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Introdução

Como é possível que, em seus 14 anos de existência, Sur tenha publicado apenas dois artigos sobre igualdade racial? Neste ensaio, proponho que a negligência desta revista em relação à igualdade racial não é excepcional, nem uma anomalia dentro do amplo universo internacional dos direitos humanos. Ao contrário, ela é característica do lugar marginal que a igualdade racial ocupa dentro da agenda global de direitos humanos e para aqueles que detêm o poder na elaboração e execução dessa agenda. As abordagens formais da igualdade racial, mesmo dentro do sistema de direitos humanos, não conseguem alavancar a promessa da Convenção Internacional sobre a Eliminação da Discriminação Racial (ICERD), a despeito dos legados duradouros da subordinação racial da era colonial. E as pessoas de cor nas linhas de frente da opressão racial permanecem excluídas da tomada de decisões e da produção de conhecimentos sobre direitos humanos. Defendo que remediar esse estado de coisas requer incluir na agenda global de direitos humanos um compromisso com a igualdade racial substantiva que: (1) priorize uma abordagem estrutural e interseccional da discriminação racial, e (2) leve a sério o papel das comunidades de cor e seus defensores não apenas no combate à desigualdade racial, mas também na definição da própria natureza dos direitos humanos.

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Enfrentando a negligência e a marginalidade

A ascensão e disseminação do populismo nacionalista de direita em todo o mundo desencadeou de forma franca e aberta discursos e práticas públicas de racismo, xenofobia, misoginia e outras formas de intolerância.11. Relator Especial das Nações Unidas sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Relacionada,, “The Threat of Nationalist Populism to Racial Equality.” Relatório para a Assembleia Geral das Nações Unidas, O.N. Doc A/73/305, 6 de agosto de 2018, acesso em 2 de dezembro de 2018, http://undocs.org/en/A/73/305. Hoje, líderes que ocupam até mesmo cargos políticos do mais alto nível em países que há muito se consideravam a vanguarda da democracia constitucional liberal professam abertamente concepções racistas e xenofóbicas ao mesmo tempo em que adotam políticas que as consolidam. As organizações de direitos humanos e outras continuam documentando o aumento de crimes e outros incidentes motivados por intolerância racial, étnica, religiosa e correlata e têm feito um trabalho importante para denunciar as violações de direitos humanos desse tipo. Os mecanismos e atores dos direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) também assumiram uma posição pública para reafirmar os princípios de igualdade e dignidade na esteira de incidentes flagrantes de manifestação racista e xenófoba. À luz dessa atenção aparentemente renovada ao racismo explícito e à xenofobia, o que significa dizer que a igualdade racial é marginal à agenda global de direitos humanos ou dentro do sistema global de direitos humanos? E o que significa até mesmo falar de uma agenda ou sistema global de direitos humanos?

Quero esclarecer desde o início que minha crítica é dirigida ao elenco de atores não governamentais e multilaterais que, através de diferentes plataformas globais (especialmente as Nações Unidas) produzem conhecimento global e influenciam normas e políticas a respeito do que são direitos humanos e quando e como eles são alcançados. Entre esses atores estão organizações de direitos humanos com influência internacional e global; as organizações doadoras e filantrópicas que, em muitos casos, permitem e, em alguns aspectos, determinam essa influência por meio de suas decisões de financiamento; órgãos e agências da ONU, como o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (EACDH) ou os vários Relatores Especiais e Peritos Independentes designados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, fundamentais para a produção de conhecimento em direitos humanos e o estabelecimento de uma agenda; e os representantes dos Estados-membros da ONU que, em diferentes capacidades, promovem o desenvolvimento de normas e políticas de direitos humanos em diferentes foros da ONU. Essa lista é ilustrativa e não exaustiva e, evidentemente, as preocupações expressas aqui não se aplicam a todas as pessoas ou instituições que participam do universo que descrevo. Há exceções importantes, mas essas exceções não negam a tendência mais geral de negligência com a qual estou preocupada. É igualmente importante notar que a lista acima tem por objetivo captar os atores que detêm o poder na produção de conhecimento e na definição da agenda dos direitos humanos globais. Essa lista não é a mesma lista de atores que estão fazendo o máximo para combater violações de direitos humanos no campo, inclusive no que se refere à igualdade racial. Muitas organizações e movimentos de base, como o Movimento Feminista Negro no Brasil, estão engajados em lutas diárias para levar a igualdade racial de objeto de negligência a uma das prioridades na agenda dos direitos humanos. No entanto, minha experiência em diferentes fóruns globais de direitos humanos (e seus salões de poder) mostra que essas organizações de base são geralmente excluídas, especialmente quando chega a hora de tomar decisões.22. Essa exclusão não precisa ser intencional e, muitas vezes, funciona estruturalmente - por exemplo, o custo de viajar a Genebra para participar de lobby de direitos humanos é possivelmente proibitivo para muitas organizações de base do sul global. Muitas também estão provavelmente fora das redes de informação, sem as quais pode ser difícil saber quando as oportunidades de lobby se apresentam na ONU.

Embora atores influentes dentro do sistema global de direitos humanos tenham soado o alarme contra expressões ou atos viscerais de racismo e xenofobia, eles não combatem a sério as estruturas historicamente arraigadas de opressão racial, exploração e exclusão que violam os direitos humanos de muita gente, mas são invisíveis até mesmo no discurso global sobre direitos humanos. Consideremos a Declaração do Milênio da ONU,33. “55/2, United Nations Millennium Declaration”, G.A. Res., 18 de setembro de2000, acesso em 2 de dezembro de 2018, http://www.un.org/millennium/declaration/ares552e.htm. adotada em 2000, como marco político global para o desenvolvimento, que menciona a discriminação apenas duas vezes. Essas referências dizem respeito à violência contra as mulheres e à implementação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Mais recentemente, a Assembleia Geral aprovou por consenso um programa completo de ação para a Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024), que visa fortalecer a promoção, a proteção e o cumprimento dos direitos dos afrodescendentes. No entanto, a implementação da Década permanece lenta, pois o número de países que adotaram formalmente um programa de ação relacionado continua limitado.44. Ver Michael McEachrane, “Review of Progress Achieved Concerning the Implementation of the Programme of Activities for the International Decade for People of African Descent”.Apresentação feita na 16ª. Sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental sobre a Implementação Efetiva da Declaração e Programa de Ação de Durban, 28 de agosto de 2018, acesso em 2 de dezembro de 2018, https://www.ohchr.org/EN/Issues/Racism/IntergovWG/Pages/Session16.aspx. Nenhum fórum foi criado até agora para consultar pessoas de ascendência africana, conforme exigido pela resolução da Assembleia Geral que inaugurou a Década.55. “Resolution Adopted by the General Assembly on 18 November 2014”, G.A. Res., UN Doc A/RES/69/16, December 1, 2014, acesso em 2 de dezembro de 2018, http://www.un.org/en/events/africandescentdecade/pdf/A.RES.69.16_IDPAD.pdf. Mesmo dentro do sistema da ONU, apenas a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a ONU Mulheres, o OHCHR e o Departamento de Informação Pública da ONU relataram ações concretas relacionadas à implementação da Década.66. “Actions Taken”, The International Decade for People of African Descent, 2015-2024, acesso em 29 de outubro de 2018, http://www.un.org/en/events/africandescentdecade/actions-taken.shtml.

Onde a discriminação racial e a intolerância aparecem, a ênfase dos atores dentro do sistema global de direitos humanos recai, em grande medida, sobre o preconceito racial explícito como problema, condenando atos e discursos racistas, mas prestando pouca atenção às formas estruturais e institucionais de funcionamento da discriminação racial e da desigualdade. Essa abordagem centrada no “preconceito” é evidente no discurso global dos direitos humanos sobre migração, no qual as principais ONGs globais, atores da ONU e Estados-membros se manifestam contra casos extremos de discurso racista e xenófobo,77. E. Tendayi Achiume, “Beyond Prejudice: Structural Xenophobic Discrimination Against Refugees”, Georgetown Journal of International Law 45, no. 2 (2014): 355-59. mas não enfrentam ou condenam o racismo de leis e políticas que não fazem menção à raça, mas discriminam de facto sistematicamente os migrantes de cor em diferentes partes do mundo.88. E. Tendayi Achiume, “Governing Xenophobia”, Vanderbilt Journal of Transnational Law 51, no. 2 (2018): 365-390.

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História da subordinação racial como projeto global

Uma breve reflexão sobre a história de projetos globais de subordinação racial e as instituições jurídicas e políticas criadas para promover esses projetos deixa claro por que a abordagem centrada no preconceito que mencionei acima equivale a marginalizar a igualdade racial como um objetivo de direitos humanos. Até a descolonização formal de grande parte do globo iniciada em meados do século XX, as leis internacionais e nacionais em todo o mundo alocavam o que agora chamamos de direitos humanos conforme a raça. Por mais de 300 séculos, o colonialismo europeu estruturou o mundo de acordo com as lógicas implícitas e explícitas que tiravam vantagem da alegada inferioridade moral, cultural e intelectual dos não europeus. A consolidação do racismo científico no século XIX forneceu um roteiro técnico de acordo com o qual os cientistas europeus dividiram os seres humanos em diferentes raças biológicas, com a branquitude conferindo supremacia natural e a não branquitude conferindo inferioridade. A discriminação racial e a subordinação racial foram institucionalizadas até mesmo dentro da ordem global representada pelas Nações Unidas.99. Ver por ex., Marilyn Lake e Henry Reynolds, Drawing the Global Colour Line: White Men’s Countries and the International Challenge of Racial Equality (Nova York: Cambridge University Press, 2008).

Foi somente em 1965 que os Estados-membros da ONU chegaram a um acordo sobre um tratado internacional mediante o qual resolveram:

adotar todas as medidas necessárias para eliminar rapidamente a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações, e a prevenir e combater doutrinas e práticas racistas, com o objetivo de promover o entendimento entre raças e construir uma comunidade internacional livre de todas as formas de segregação racial e discriminação racial [ .]1010. “International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination”, G.A. Res. 2106 (XX), em Preamble, 21 de dezembro de 1965, acesso em 2 de dezembro de, 2018, https://www.ohchr.org/Documents/ProfessionalInterest/cerd.pdf.

A Convenção Internacional sobre a Eliminação da Discriminação Racial (ICERD), que está entre os tratados internacionais de direitos humanos mais amplamente ratificados, articula o arcabouço normativo e legal para a meta ambiciosa de eliminar todas as formas de discriminação racial. Mas, durante o breve período de vida dessa Convenção, a igualdade racial parece ter sido deslocada para as margens da agenda global de direitos humanos, apesar dos esforços inclusive das coalizões da sociedade civil contra o racismo na Conferência Mundial contra o Racismo realizada em Durban, em 2001, para destacar o contexto histórico e a dinâmica estrutural da persistente desigualdade racial. Se considerarmos a ICERD como o início do compromisso programático dos Estados-membros da ONU para eliminar a discriminação racial, este compromisso tem apenas 53 anos de vida. Esse compromisso, por uma questão de duração, é firmemente eclipsado pelos mais de 300 anos que vieram antes dele, durante os quais, como mencionei, o colonialismo institucionalizou, sancionou e até celebrou a exclusão e subordinação racial de não europeus. Ao recordar essa história, fica claro que negligenciar a luta pela igualdade racial equivale a abandonar o projeto urgente de desmantelar os sistemas de subordinação e exploração cuidadosamente erguidos em épocas anteriores e que continuam a ter efeito até hoje.

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O conceito de raça, discriminação racial e igualdade racial nos direitos humanos: uma abordagem antisubordinação

Uso o termo “raça” para me referir aos “sistemas sociais de significado historicamente contingentes que se ligam a elementos de morfologia e ancestralidade”.1111. Ian Haney-Lopez, White By Law: The Legal Construction of Race (New York: New York University Press, 2006): 10. Esse entendimento de raça rejeita inequivocamente a noção de raças biológicas, mas reconhece que a construção da raça é informada por características físicas e pela linhagem, não porque características e linhagem sejam uma função da variação racial, mas porque as sociedades as investem de significado social.1212. Ibid. Ao mesmo tempo, a raça de modo algum diz respeito a apenas atributos físicos como a cor, assim como tampouco diz respeito à somente linhagem. Ela diz respeito fundamentalmente ao significado social, político e econômico de ser classificado como negro, branco, pardo ou qualquer outra designação racial. Talvez como mais um exemplo de como o sistema global de direitos humanos não conseguiu elevar a consciência e o comprometimento com a igualdade racial, pelo menos dois países europeus tomaram a medida alarmante de remover o termo “raça” de sua legislação contra a discriminação.1313. Em julho de 2018, a França retirou o termo raça de sua Constituição. Amna Mohdin, “France Replaced the Word ‘Race’ With ‘Sex’ in its Constitution”. Quartz, 28 de junho de 2018, acesso em 2 de dezembro de 2018, https://qz.com/1316951/french-mps-removed-the-word-race-from-the-countrys-constitution; “Assembly Removes Word ‘Race’ From French Constitution”, Connexion, 13 de julho de 2018, acesso em 2 de dezembro de 2018, https://www.connexionfrance.com/French-news/france-assembly-votes-to-remove-race-French-constitution. A Suécia removeu raça de sua lei contra a discriminação, de sua Constituição e de todas as leis nacionais. Ver A/HRC/30/56/Add.2, para. 20 (que discute a retirada de todas as referências à raça da Constituição da Suécia, substituídas por “origem étnica, cor ou outra circunstância similar”); Solveig Rundquist, “Race To Be Scrapped from Swedish legislation”. The Local, 31 de julho de 2014, acesso em 2 de dezembro de 2018, https://www.thelocal.se/20140731/race-to-be-scrapped-from-swedish-legislation (que discute a remoção do termo raça de todas as leis nacionais suecas). Vários outros países, entre eles Austrália, Áustria, Finlândia, Hungria, Alemanha e Noruega, tomaram medidas para retirar ou consideraram retirar menções à raça nas leis nacionais. Ver David Ross e Barbara Shaw, “Indigenous Australians Know Removing Race From Constitution is Pretend Change”. The Guardian, 10 de abril de 2017, acesso em 2 de dezembro de 2018, https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/apr/10/indigenous-australians-know-removing-race-from-constitution-is-pretend-change (argumentando contra a proposta de retirada do termo raça da Constituição australiana); Richard Lappin, “Should CERD Repudiate the Notion of Race?”, Peace Review 28, no. 4 (2016): 393, 395 (menciona Áustria, Finlândia, Hungria, Alemanha e Noruega como países que consideram e/ou tomaram medidas para retirar raça das leis nacionais). Excluir a palavra “raça” da legislação faz pouco para apagar o significado social investido nesse conceito ao longo dos séculos. Ao contrário, desvia a atenção das intervenções legais urgentes e outras necessárias para remediar a desigualdade racial e a discriminação persistentes, e mantém estruturas e instituições discriminatórias vivas e saudáveis.
O que é necessário, em vez disso, é uma abordagem substantiva e estrutural da discriminação racial, que vise desmantelar a subordinação racial e alcançar a igualdade. Como já destaquei em outros lugares, a proibição da discriminação racial no direito internacional dos direitos humanos visa muito mais do que uma visão formal da igualdade.1414. “Report of the Special Rapporteur on contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance”, U.N. Doc A/HRC/38/52, 25 de abril de2018, acesso em 2 de dezembro de 2018, http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A%2FHRC%2F38%2F52. A igualdade no arcabouço internacional de direitos humanos é substantiva e exige que os Estados tomem medidas para combater a discriminação racial intencional ou proposital, bem como para combater a discriminação racial estrutural e institucional. Também requer que os Estados adotem ações afirmativas para remediar a desigualdade racial enraizada historicamente. O Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial deixou claro que a proibição da discriminação racial conforme a ICERD não pode ser interpretada de maneira restritiva.1515. “General Recommendation no. 32, The Meaning and Scope of Special Measures in the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination”, Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), CERD/C/GC/32, 24 de setembro de 2009, acesso em 2 de dezembro de 2018, https://www.refworld.org/docid/4adc30382.html. Um aspecto importante da obtenção de uma igualdade substantiva conforme a ICERD é assegurar que os grupos sociais não se tornem ou permaneçam oprimidos em consequência de sua raça. À luz desses princípios de direitos humanos existentes, os atores globais de direitos humanos devem ir além das abordagens baseadas em “preconceitos” ou “ausência de preconceitos” e pressionar por uma verdadeira igualdade.

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Interseccionalidade

A igualdade racial substantiva não é possível sem uma análise interseccional do problema da discriminação racial e da intolerância. A seguinte definição de interseccionalidade dentro do sistema da ONU capta bem o seu significado:

A ideia de “interseccionalidade” procura captar as consequências tanto estruturais quanto dinâmicas da interação entre duas ou mais formas de discriminação ou sistemas de subordinação. Ela aborda especificamente a maneira pela qual o racismo, o patriarcado, as desvantagens econômicas e outros sistemas discriminatórios contribuem para criar camadas de desigualdade que estruturam as posições relativas de mulheres e homens, raças e outros grupos. Além disso, aborda a maneira como leis e políticas específicas criam ônus que fluem ao longo desses eixos que se cruzam, contribuindo ativamente para criar uma dinâmica de desempoderamento.1616. Ver “Gender and Racial Discrimination: Report of the Expert Group Meeting”, Divisão da ONU pelo Avanço das Mulheres, OHCHR e Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres, 21-24 de novembro de 2000, acesso em 2 de dezembro de 2018, www.un.org/womenwatch/daw/csw/genrac/report.htm.

No entanto, com muita frequência, o poder desse marco é perdido quando a interseccionalidade é reduzida apenas à inclusão de referências a gênero em discussões ou documentos sobre políticas. A interseccionalidade é vital para alcançar a igualdade substantiva, mas requer atenção a todas as categorias sociais operacionais que moldam a experiência de discriminação e intolerância: raça, gênero, etnia, nacionalidade, classe, religião, deficiência, sexo, orientação sexual e outras. A verdadeira igualdade racial exige levar a sério as experiências e a expertise de mulheres cis e trans, pessoas LGBTQ, pessoas com deficiência, os pobres, os sem documentos e outros grupos marginalizados. Da mesma forma, a verdadeira igualdade para as mulheres, para as pessoas LGBTQ, pessoas com deficiências e outras nunca pode ser uma realidade sem que se dê atenção ao modo como a raça estrutura a subordinação desses grupos.

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“Olhar para o fundo”

É necessária uma reflexão importante dentro do movimento e sistema global de direitos humanos para entender as causas do que em outros contextos foi chamado de “afasia racial” – uma incapacidade coletiva para falar sobre raça, um esquecimento ou negligência calculada das histórias e estruturas do racismo.1717. Debra Thompson, “Through, Against and Beyond the Racial State: The Transnational Stratum of Race”, Cambridge Review of International Affairs 26 (2013): 135. Quaisquer que sejam essas causas, entre elas certamente estará a demografia racial que caracteriza as ONGs globais de direitos humanos, e a falta de representação de pessoas de cor, especialmente em cargos de tomada de decisão. O trabalho de alcançar a igualdade racial deve ser feito por todos, mas deve ser conduzido e guiado em estreita participação com representantes de comunidades que sofrem nas linhas de frente da discriminação, subordinação e exclusão raciais. Consideremos como surgiu este volume especial da Sur: o movimento feminista negro brasileiro. Para esse movimento, atrevo-me a dizer que um regime de direitos humanos que não leve em conta a onipresença de sistemas de desigualdade e subordinação racial não é apenas inútil, mas perigoso. De uma maneira mais geral, para as muitas pessoas que vivem e lutam contra a injustiça racial, a afasia racial é um luxo mortal que elas não podem ter. Minha percepção é que uma peça importante do quebra-cabeça da marginalidade da igualdade racial dentro dos direitos humanos é a marginalidade das pessoas de cor dentro das organizações e instituições globais que detêm o maior poder dentro do campo dos direitos humanos.

Mari Matsuda argumentou que as pessoas que têm experiência direta com formas de opressão racial e outras similares são essenciais para a produção de conhecimentos destinados a promover a emancipação desses grupos. Ela chama isso de “olhar para o fundo” e explica ainda que “olhar para o fundo – adotar a perspectiva daqueles que viram e sentiram a falsidade da promessa liberal” é vital para a produção de conhecimento que busque definir e alcançar a justiça.1818. Ibid., 324; Mari J. Matsuda, “Looking to the Bottom: Critical Legal Studies and Reparations”, Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review 22 (1987): 325. Na produção de conhecimento sobre direitos humanos, seja no contexto da criação ou da implementação de normas, é vital reconhecer que aqueles que estão na linha de frente da vida e do combate à opressão racial são “fontes epistêmicas” superiores sobre a natureza de sua opressão e sobre quais devem recair as prioridades na abordagem e execução das estratégias para combater essa opressão. Isso pode acontecer, por exemplo, assegurando-se de que grupos racialmente subordinados estejam representados e incluídos de forma significativa em organizações e instituições globais de direitos humanos, inclusive em posições de liderança. Concretamente, isso pode significar auditar a representatividade das equipes e da liderança dessas organizações e tomar medidas (inclusive por meio de investimento em treinamento e capacitação) para resolver a marginalização ou exclusão de grupos racialmente subordinados. Isso também requer uma aceitação por parte dessas organizações e instituições de que a própria natureza do trabalho que fazem e o modo como o fazem podem precisar mudar significativamente quando começarem a levar a sério as experiências e perspectivas de grupos racialmente subordinados. Os modelos de financiamento e modelos e prioridades de organização institucional podem precisar mudar para, por exemplo, explicar como as estratégias e prioridades dos movimentos sociais podem diferir daquelas da sociedade civil burocratizada. A questão não é apenas diversidade ou inclusão para cumprir regulamentos, mas é aceitar que as próprias agendas das organizações globais de direitos humanos podem ter de mudar se essas organizações levarem a sério o projeto de olhar para o fundo.

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Conclusão

Embora haja muita atenção dos direitos humanos em todo o mundo ao racismo explícito e à xenofobia enraizados em políticas populistas nacionalistas, a igualdade racial permanece marginal nas agendas de atores influentes no sistema global de direitos humanos. Os velhos e persistentes legados históricos do colonialismo e das estruturas globais contemporâneas de exclusão racializada exigem uma abordagem substantiva e diferente da igualdade racial que enfrente as formas estruturais e institucionalizadas de discriminação racial. O sistema global de direitos humanos deve refletir uma abordagem interseccional da discriminação racial e levar a sério as experiências e conhecimentos das comunidades de cor no norte e no sul globais que vivem na linha de frente da subordinação racial. O que aconteceria com as ONGs, agências e instituições financiadoras globais de direitos humanos se levassem a sério o projeto de aumentar o poder dos movimentos sociais antirracistas para produzir conhecimento de direitos humanos sobre opressão racial? Ao contrário das formulações dominantes, geralmente legalistas, sobre discriminação e intolerância que costumam dominar o corpus oficial de direitos humanos, descobri que quando os atores do movimento e aqueles que têm intimidade com a opressão racial articulam suas experiências de subordinação estrutural, bem como as intervenções que acreditam serem necessárias, eles falam em termos da necessidade de mudar as relações de poder e prestam muita atenção às estruturas econômicas, políticas e financeiras com dimensões globais. É necessário que suas perspectivas tenham maior inclusão e representação dentro do sistema e da agenda global de direitos humanos.

E. Tendayi Achiume - Zâmbia

Relatora Especial das Nações Unidas sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Relacionada.

Recebido em Outubro de 2018.

Original em Inglês. Traduzido por Pedro Maia Soares