Entrevista com Kasha Jacqueline Nabagesera, a ativista lésbica de maior destaque em Uganda
Em um país onde as pessoas homossexuais frequentemente têm que se esconder para proteger sua vida, é preciso muita coragem para que uma ativista LGBTI adote o apelido “Bombástica” (Bombastic, no original em inglês). Em Uganda, a terra natal da ativista Kasha Jacqueline Nabagesera, uma pessoa pode ser morta apenas por amar alguém. No entanto, o estupro, perseguição, prisão e morte de inúmeras pessoas homossexuais ugandenses, não impediram a aguerrida ativista de fundar – e de dar o seu próprio nome – a primeira revista escrita por colegas da comunidade LGBTI e que conta suas próprias histórias. Em agosto de 2015, foi lançada uma chamada de artigos para o segundo número da revista.
A revista Bombastic, bem como o apelido de Kasha, fazem referência a uma famosa canção em Uganda chamada “Mr. Lover Lover, Mr Bombastic!” do cantor Shaggy, de origem jamaicana e estadunidense. O título da publicação revela como a comunicação e a cultura popular têm sido fundamentais na luta contra o ódio e preconceito em Uganda. Kasha fundou e foi presidente por dez anos da FARUG (“Freedom and Roam Uganda”, no nome original em inglês), a mais importante organização de direitos LGBTI da Uganda. Desde então, ela tem aliado esforços jurídicos e políticos a ações culturais pelo direito de existir e de se expressar publicamente da comunidade LGBTI. Com 35 anos de idade e nascida em Kampala, Kasha descreveu que “alterar a lei na Uganda seria um grande passo, mas que o mais importante é mudar a mentalidade das pessoas”.
Desde a escola, quando alguns de seus amigos cometeram suicídio como consequência do bullying, ela vem lutando pelos direitos LGBTI no parlamento, na ONU, União Europeia e Comissão Africana. Ela tem buscado desafiar ativamente a lei e a cultura popular para mudar tanto as estruturas formais quanto o comportamento cotidiano das pessoas em relação às pessoas homossexuais em Uganda. Quer ela esteja participando de debates em fóruns de alto nível ou da criação do primeiro bar LGBTI no país, Kasha sabe que é preciso mais do que um mero lobby político para mudar a realidade no terreno.
O bar LGBTI acabou sendo fechado. No entanto, de modo até mesmo mais preocupante, outras derrotas também podem acontecer no âmbito legal. A Corte Constitucional anulou uma lei contra a homossexualidade que foi aprovada em 2014 e que impunha pena de prisão perpétua ao “crime de homossexualidade.” No entanto, a sentença não foi baseada em questões de mérito, mas sim em aspectos procedimentais. Os juízes determinaram que a falta de quórum no Parlamento tornava o projeto de lei inválido. O texto de um novo projeto de lei, que ainda não foi formalmente apresentado, vazou para a mídia em dezembro de 2014. Esse projeto de lei é considerado ainda mais abrangente do que o anterior, uma vez que também inclui dispositivos legais contra pessoas transexuais.
Esses reveses não detiveram Kasha. Em uma entrevista exclusiva à Sur 21, Kasha falou sobre a revista Bombastic, o bar LGBTI, as leis, a Parada do Orgulho Gay e de maneira mais ampla sobre a luta LGBTI em Uganda.
Conectas Direitos Humanos • Kasha, a primeira pergunta é sobre as suas origens. Você pode nos contar o que te levou a ser uma das ativistas LGBTI mais ativas em Uganda e, de fato, no mundo?
Kasha Jacqueline Nabagesera • Que gentis tanto a pergunta, quanto a apresentação. Quando comecei o movimento em Uganda eu era muito jovem, mas já havia sofrido muito na escola. Naquela época, eu já era abertamente gay. Então, quando descobri que segundo nossa legislação era ilegal ser abertamente gay, decidi que precisava mudar as coisas. A maioria dos meus amigos gays foi expulsa da escola, outros foram rejeitados por suas famílias. Então, vi uma oportunidade de protestar por aqueles que não podiam, pois eu não tinha nada a perder.
Conectas • Uma vez você disse que alterar a lei em Uganda seria um grande passo, mas que o mais importante é mudar a mentalidade das pessoas. Porque você acha que este é o caso?
K.J.N. • Mudar a lei é um grande passo no controle do comportamento das pessoas, mas isto não vai mudar as percepções de todas elas, isto é, daquelas que nos agridem, que nos censuram, que nos estupram, que ameaçam queimar nossas casas. Mesmo que a lei seja mudada, essas pessoas ainda podem tomar a lei em suas próprias mãos. No entanto, se mudarmos a mentalidade das pessoas, em termos de como elas encaram a homossexualidade, para que elas parem de pensar, por exemplo, que as pessoas homossexuais vão pegar seus filhos ou que vão infectá-las com doenças. Se conseguirmos tirar esse tipo de pensamento das pessoas e fazê-las encarar as pessoas LGBTI como seres humanos, como seus irmãos e suas irmãs, então este será um passo muito grande.
“O movimento está mais forte”
Conectas • Quais foram os maiores desafios que você enfrentou na promoção da mudança cultural e de mentalidade em Uganda nos últimos anos?
K.J.N. • O maior desafio que enfrentamos é que não possuímos plataformas para criar conscientização. A mídia é censurada quando procura noticiar questões LGBTI de maneira positiva ou imparcial. A cobertura é muito tendenciosa e é uma das maiores instigadoras de ódio na comunidade. Sem essas plataformas é difícil difundir nossa mensagem às pessoas com as quais vivemos, oferecer informações sobre saúde à população e fazer com que o governo saiba que até mesmo nós precisamos ser incluídos nas políticas nacionais. Mesmo as pessoas que querem nos fornecer plataformas têm muitas vezes medo de que serão consideradas promotoras da homossexualidade. Assim, há um desafio realmente grande.
Conectas • E em relação às suas maiores conquistas como ativista, do que você mais se orgulha?
K.J.N. • Devo dizer que tenho orgulho de construir o movimento, porque, pelo menos agora, há mais pessoas dispostas a protestar, dispostas a compartilhar as suas histórias, e nem tudo está circunscrito a um pequeno grupo, como no passado. Então, o movimento está mais forte. Mal posso esperar para receber novos desafios, mas o simples fato de que muitas pessoas estão dispostas a se expressarem e protestarem, para mim, é a minha maior conquista, construir um movimento e saber que mesmo que eu não esteja aqui hoje outras pessoas podem continuar o movimento.
Conectas • Se você tivesse a oportunidade de explicar para alguém que não possui um histórico ou conhecimento sobre os direitos LGBTI em Uganda, como você explicaria a essas pessoas a situação de hoje em dia?
K.J.N. • Em primeiro lugar, diria a essas pessoas que realmente existem pessoas LGBTI em Uganda. Muitos ugandenses acham que não há pessoas gays aqui. No passado nossos líderes costumavam negar a existência de homossexuais. Nós não éramos perseguidos até que os colonizadores britânicos chegaram em 1886 e tornaram a homossexualidade ilegal. Por causa disto, as pessoas homossexuais continuam a ser perseguidas e humilhadas. Hoje em dia, novos colonizadores chegaram dos Estados Unidos – os evangélicos estadunidenses. Eles têm vindo a Uganda desde o início da década de 2000 e vêm exportando toda sua homofobia aos políticos e religiões em Uganda. Atualmente, quase todos nossos líderes atacam com impunidade a comunidade LGBTI. Ademais, como essa é a geração da tecnologia, há diversas informações falsas que estão sendo disseminadas ao público em Uganda pelas mídias sociais. Se tentamos divulgar uma mensagem, ela é considerada pornográfica ou promotora da homossexualidade. Em contraste, e como exemplo, pornografia extremamente sadomasoquista foi exibida em uma igreja e, no entanto, nenhuma ação foi adotada contra aqueles que organizaram isto.
Conectas • Como você conseguiu fundar, estruturar e expandir a Freedom and Roam Uganda (FARUG, na sigla original em inglês) em um clima de tamanha hostilidade, tendo em conta as dificuldades de financiamento, por exemplo?
K.J.N. • Quando estava criando minha organização com mais duas pessoas, fui suspensa nas duas primeiras semanas de sua criação, porque eu era muito ativa e muito radical, eu não queria que a organização fosse apenas um grupo social. Isto causou uma série de desafios nos estágios iniciais da organização, porque as pessoas tinham medo de que elas seriam expostas e tiradas do armário. Mas eu as convenci de que minha família estava lá para nos ajudar. Minha mãe prestava muito apoio. Disse a elas que não iria expor ninguém, só precisava que elas me dessem seu apoio. Também tivemos desafios para comunicar a nossa mensagem ao mundo exterior. A Internet tinha acabado de ser implementada em Uganda e, por isso, era muito cara. Quando nós nos apresentamos às organizações de direitos humanos aqui em Uganda, muitas delas nos rejeitaram porque não consideravam que os direitos das pessoas LGBTI eram direitos humanos. Nós também perdemos pessoas – nós perdemos pessoas aos estupros, ao suicídio após elas terem sido expostas em suas escolas. A própria mídia expôs nossa organização e introduziu espiões nela, e propagou tudo nos meios de comunicação. Além disso, por não ser uma organização registrada, isto também nos impediu de ter acesso a financiadores maiores. Estes são os desafios que enfrentamos.
“Decidimos ter a nossa primeira Parada”
Conectas • Agora você poderia, por favor, nos contar sobre o seu envolvimento na criação do primeiro bar gay em Uganda? Ele estava bastante relacionado à mudança de mentalidade que você mencionou, certo?
K.J.N. • Ah, sim, o bar “Ilhas de Safo (Sappho Islands, no original em inglês).” Sim, a questão é, nós gostamos de festa. Nós íamos a muitos bares, mas acabávamos sendo agredidas, não tínhamos a permissão para usar banheiros, pois os proprietários acreditam que o gênero ou a maneira de se vestir de uma pessoa não se adequa ao banheiro [que esta pessoa está usando]. Tinha se tornado uma rotina receber todas segundas-feiras um grande número de e-mails de pessoas que tinham sido agredidas durante o fim de semana por simplesmente terem dançado juntas ou estarem de mãos dadas em bares públicos. Então, decidi abrir um bar, não para ter lucro, porque eu não tinha nenhum lucro, mas para criar um bar que era abertamente gay. Qualquer pessoa que entrasse no bar e não gostasse do que visse, seria a vez dela de se retirar. A comunidade [LGBTI] deu boas vindas ao bar. Tivemos muitas festas lá, festas de noivado, casamentos. Infelizmente, após apenas um ano, o bar foi fechado, pois os vizinhos se queixaram que as pessoas que estavam frequentando o bar eram estranhas, que tinham me visto muito na TV e ameaçaram botar fogo no lugar, por isso tivemos de fechá-lo. Mas vou abrir outro. Não vou desistir.
Conectas • Você poderia nos contar um pouco sobre a Parada do Orgulho Gay e do papel que ela desempenhou na luta contra a discriminação LGBTI em Uganda?
K.J.N. • Sim, em 2012 foi quando introduzi a Parada do Orgulho Gay em Uganda. Eu me dei conta que havia ido a tantas Paradas do Orgulho Gay ao redor do mundo, mas nunca havia ido a uma no continente africano. E então pensei que talvez pudéssemos ter uma Parada! Não tínhamos que fazer uma Parada comum indo às ruas – com certeza, nos matariam, então eu disse que poderíamos organizar a Parada de diferentes maneiras. Apresentei a Parada à comunidade para ver como se sentiriam e, naturalmente, havia dúvidas. Algumas pessoas estavam me chamando de louca e perguntando “como posso ir à Parada quando estou na justiça processando o governo.” Outras estavam entusiasmadas, porque nunca tinham ouvido falar da Parada, elas nem sequer sabiam o que a Parada significava. Outras estavam curiosas. E, assim, começamos a ter festas de arrecadação de fundos todos os meses, nessas oportunidades eu expunha às pessoas o que significava a Parada, como as pessoas se vestiam para a Parada, o que acontecia na Parada, o que podíamos fazer na Parada para nos sentirmos livres. Então, decidimos ter a nossa primeira Parada – uma semana cheia de atividades, festas e um festival de cinema. Por fim, quando tínhamos acabado a marcha e estávamos nos preparando para nos divertirmos, a polícia veio e nos prendeu.
Conectas • Agora nós gostaríamos de falar um pouco sobre a revista Bombastic. Você poderia nos contar como tudo começou?
K.J.N. • Dei início à revista Bombastic porque meu apelido é “Bombástica.” Ademais, os ugandeses adoram um músico americano chamado “Shaggy” que canta a canção “Mr Lover Lover, Mr Bombastic!”. Ele vem a Uganda todos os anos, e eu queria usar algo que fosse cativante, mas que também poderia atrair muitos ugandenses – as pessoas estavam brigando pela revista, simplesmente porque viram a palavra “bombástica.” A ideia central era que já que nós não temos nenhuma plataforma para conscientizar, para mudar a mentalidade das pessoas, por que não poderíamos ter a nossa própria e imparcial revista, compartilhar nossas histórias e distribuí-la de forma gratuita, e avaliar a repercussão?
Eu escrevi no meu Facebook e apresentei a ideia à comunidade e convidei as pessoas a enviarem suas histórias. Foi incrível. Recebemos mais de 500 artigos, mesmo antes de eu ter criado uma equipe para trabalhar comigo. Eu estava tão sobrecarregada. Comecei a falar com as pessoas sobre a revista e todos disseram que era uma boa ideia. Mas, é claro, algumas pessoas estavam muito assustadas e perguntavam “como é que vamos distribuí-la?”.
Conectas • E como ela foi distribuída? Você pode nos contar sobre o público da Bombastic?
K.J.N. • Sim, nós imprimimos a revista e fomos a diferentes partes do país, fazendo sua distribuição. Nós focamos em quatro grupos principais. Uma das estratégias era simplesmente distribuir a revista aleatoriamente às pessoas na rua, porque estas são as pessoas que simplesmente seguem o fluxo – se ouvem que há alguém sendo agredido, elas vão se juntar à luta.
Em seguida, distribuímos a revista aos formuladores de políticas públicas. Na verdade, a razão pela qual lançamos a revista naquela época [dezembro de 2014] foi porque o parlamento estava muito irritado por causa da decisão [que declarou inconstitucional a lei contra a homossexualidade, por razões processuais, em agosto de 2014] de modo que os parlamentares estavam prometendo aprovar uma nova lei como um “presente de Natal.” Então dissemos “Tudo bem, então também vamos dar a eles um presente de Natal”.
Foi muito interessante porque fui pessoalmente à polícia, tive diálogos com os ministros, fui ao gabinete presidencial, conversei até mesmo com o Ministro de Ética. Havia anos que ele queria me prender e, naquela época, ele também estava me ameaçando, fazendo falsas acusações na mídia de que eu estava promovendo a homossexualidade e pornografia, mas ele não podia fazer nada porque não havia base jurídica. Então, ele ordenou que a polícia queimasse todas as cópias da revista que encontrasse na rua, mas as pessoas realmente gostaram da revista, foi maravilhoso, ninguém a deixou nas ruas. Todo mundo levou uma – até mesmo ficamos sem cópias! Foi realmente uma experiência muito empolgante e emocionante para mim.
Também havia a geração mais jovem, os estudantes das instituições superiores de ensino. Eles serão os futuros líderes e são as pessoas que vão às manifestações contra os homossexuais. Nós não queremos que eles sejam corrompidos, porque ainda são jovens. Precisamos que eles parem de fazer bullying contra seus próprios colegas, parem de expô-los nas mídias sociais – o que está acontecendo muito.
O quarto grupo foi a nossa própria comunidade – não a comunidade que nós já conhecemos, mas mais pessoas que nós não conhecíamos. Sabemos que existem pessoas para as quais se diz que elas estão possuídas por demônios – quando eu era jovem, me disseram que eu estava possuída por demônios. Há pessoas que estão cometendo suicídio, porque elas pensam que estão sozinhas. Nós queremos ter acesso a essas pessoas, porque não as conhecemos e esperamos que quando elas leiam a revista, elas descubram que não estão sozinhas e que podem contar conosco.
“Mais vozes precisam ser ouvidas”
Conectas • Você pode explicar aos nossos leitores um pouco mais sobre o financiamento da revista e como espera continuar captando recursos?
K.J.N. • Em relação a financiar a ideia, decidi optar pelo crowdfunding11. Crowdfunding é uma prática de financiamento coletivo, em geral via internet. porque consultei muitos financiadores e investidores daqui. Todos estavam relutantes. Todo mundo pensou que era uma boa ideia, mas todos tinham medo por questões de segurança. Foi na época que o projeto de lei tinha sido aprovado, por isso havia muita relutância de tantas pessoas em nos financiar. Eu disse a eles que justamente tínhamos que continuar a criar maneiras de podermos ter acesso às pessoas que estão sempre nos atacando.
No entanto, após a primeira edição em 2014, eu disse “não podemos continuar com a revista, porque ela não é sustentável, não podemos continuar imprimindo cópias. Vou parar produzi-la, principalmente pela segurança das pessoas no terreno.” Então nós criamos um site e uma estação de TV e rádio, para que possamos continuar a publicar a Bombastic, garantindo ao mesmo tempo a nossa segurança. No entanto, nem todos podem pagar para ter acesso à internet. Então, nós estamos realmente paralisadas, oprimidas, mas, ao mesmo tempo, animadas porque as pessoas ainda estão dispostas a se envolver. Se um dia conseguirmos arrecadar mais fundos faremos outra edição, não há nenhuma dúvida a respeito disto.22. Nota do Editor: depois que a entrevista foi feita, uma chamada de artigos foi lançada em agosto de 2015 para o segundo número da revista Bombastic.
Conectas • Que ótimo! E como você escolheu as histórias que seriam publicadas na primeira edição? O conteúdo será o mesmo em edições futuras?
K.J.N. • Escolhi essas histórias porque conheço algumas delas há muito tempo e nunca as havia publicado. Outras republiquei porque elas nunca tiveram o destaque público que deveriam ter tido. Publiquei histórias sobre HIV/Aids porque poucas pessoas realmente assumem o diagnóstico, por isso, com essas histórias esperamos que mais pessoas se pronunciem a respeito e comecem o tratamento, em vez de se sentirem estigmatizadas e discriminadas. Não pude manter algumas histórias, porque elas não estavam alinhadas com o objetivo da revista, por exemplo, histórias que expunham que funcionários do governo eram homossexuais. Também dei às pessoas que já eram assumidas uma oportunidade, já que as pessoas querem saber por que elas assumiram a homossexualidade – aqui há uma ideia de que elas são gays porque estão sendo pagas. Assim, usamos essas histórias, de pessoas que eram gays assumidas, para que as pessoas possam realmente conhecer suas histórias, em vez de julgá-las. E, por último, dei espaço para aquelas pessoas que nunca tiveram a oportunidade de se manifestarem porque estão no armário. Estas são as pessoas que o mundo precisa escutar. Se torna tão monótono quando são sempre as mesmas vozes que estão falando. Mais vozes precisam ser ouvidas e então dei a elas a oportunidade.
Conectas • Quais foram as reações dentro de Uganda após a publicação da revista Bombastic?
K.J.N. • As reações das pessoas foram realmente comoventes. Algumas pessoas nos ligaram dizendo “esta é a primeira vez que estou ouvindo as histórias contadas por vocês, o tempo todo ouvi as versões de pastores ou ministros homofóbicos, mas nesta revista estou lendo histórias reais de vida, sinto muito.” Outros disseram: “Sou parte da comunidade, não sei onde encontrar vocês” ou “minha filha é gay”, “meu filho é gay”, “agora sei porque a minha filha gosta de se vestir assim” ou “agora sei porque meu filho está se comportando como uma mulher”. Então, foi realmente, realmente impressionante.
Algumas agências governamentais solicitaram mais cópias, incluindo a polícia, o Ministro do Serviço Público e o Ministro de Saúde. Isto mostra o impacto positivo da revista quando até mesmo essas instituições estão entrando em contato conosco e dizendo “precisamos de mais cópias porque queremos enviá-las para diferentes departamentos e distribuí-las.” Então, foi realmente muito positivo.
Claro, nós também recebemos reações de muito ódio. Pessoas dizendo que querem me decapitar quando me encontrarem ou que vão atirar em mim. Outras, porém, disseram “conhecemos uma pessoa que realmente quer falar com você e entender.” Para mim, isto é exatamente o que estamos gerando, mudar as atitudes das pessoas, as mentalidades, porque, atualmente, as pessoas só estão recebendo uma versão da história. As ameaças do reverendo de uma diocese em Runkugiri foram hilariantes. Ele ameaçou me processar por invasão de propriedade porque ele indagou como as revistas tinham chegado às instalações da igreja. Ele disse que precisava me ligar no dia 31 de dezembro, porque não queria começar o ano novo com uma maldição por causa de algo que tinha lido em uma página específica da revista. Levando em conta que eu tinha editado a revista, mas não tinha ideia do que havia nessa página específica – no entanto, ele tinha! Internamente pensei, “legal, então você leu a revista.” Eu ri e ele ficou tão irritado que ele desligou na minha cara. Foi realmente hilariante.
“As mídias sociais são meu escritório”
Conectas • Como ativista na promoção dos direitos LGBTI em Uganda, o quão e de que maneira, as mídias sociais, como Twitter e Facebook, são importantes para você?
K.J.N. • Para mim, as mídias sociais são meu escritório. Elas são meu escritório porque é nelas onde consigo entrar em contato com tantas pessoas da comunidade. Temos grupos secretos onde adotamos estratégias como uma comunidade. Temos páginas públicas para as nossas organizações onde também interagimos com o mundo inteiro, onde nós temos amigos e amigas de todo o mundo que nos enviam mensagens de solidariedade. As mídias sociais têm sido realmente úteis em nossa luta. Mas também há aspectos negativos, pois as mídias sociais têm causado a exposição de tantas pessoas nos meios de comunicação aqui em Uganda. No entanto, elas nos ajudaram a construir um movimento muito forte. As mídias sociais oferecem a possibilidade das pessoas que estão no armário falarem livremente.
Vimos muitas pessoas se assumindo, pois elas têm visto que há um grupo bastante atuante nas mídias sociais, então elas finalmente também se sentem confortáveis sobre quem são.
Conectas • Em outras entrevistas você se referiu à forma como operamos em uma aldeia global e como o projeto de lei contra a homossexualidade foi adiado pelo menos em parte, provavelmente, porque vários países expressaram sua condenação a ele. Quão importante você acha que a pressão internacional de outros governos e ONGs é no combate à discriminação LGBTI em Uganda?
K.J.N. • É importante e não é importante. Ela tem limites, porque a promulgação do projeto de lei ainda aconteceu, apesar da pressão, mas, eventualmente, o projeto também foi paralisado, pelo menos em parte, por causa da pressão internacional. No entanto, também é importante que as pessoas que estão no terreno façam barulho e coloquem muita pressão, porque conhecemos a situação melhor. Essa pressão internacional pode, muitas vezes, se dar em uma diplomacia bastante silenciosa e, às vezes, nós sentimos que o mundo inteiro devesse se armar contra esse projeto de lei. Por isso, a pressão ajuda, mas somente quando é feita em consulta conosco. Diferentes situações exigem ações diferentes – é por isso que é sempre importante consultar aqueles no terreno primeiro.
Conectas • A pressão internacional é mais relevante quando vem de países do Sul Global, como o Brasil?
K.J.N. • Todos os países, todas as vozes importam. Não importa de que país a voz está vindo, todas as vozes importam.
“Todos os países, todas as vozes importam”
Conectas • Você pode nos contar um pouco sobre o seu envolvimento com as organizações internacionais, especialmente tendo em vista que a “Coalition of African Lesbians” recebeu recentemente o status de organização observadora na Comissão Africana?
K.J.N. • É importante para nós nos relacionarmos com a Comissão Africana e outros organismos internacionais, como as Nações Unidas e a União Europeia. Mesmo se conseguirmos levar alguma questão às Nações Unidas e, por sua vez, ela for rejeitada na Comissão Africana, isto realmente não vai fazer uma grande diferença. Por isso, é muito importante se relacionar com todas organizações. Ademais, não podemos lidar apenas com os recursos locais, porque os nossos países não são Estados isolados. Estamos em uma aldeia global – o que acontece em Uganda afeta as pessoas no Quênia, que afeta as pessoas no Egito, que afeta as pessoas na Gâmbia.
Foi um grande feito para nós que a Coalition of African Lesbians tenha recentemente alcançado o status de organização observadora na Comissão Africana [em 25 de abril de 2015]. Agora, o diálogo está começando, agora as portas estão sendo abertas e, em breve, as pessoas vão começar a perceber que são os nossos próprios filhos e filhas, nossos irmãos e irmãs que estão sendo mortos, que estamos colocando na cadeia. Particularmente, é muito simbólico, porque se você ler o indeferimento do pedido de status de organização observadora da Comissão Africana em 2010, você notará que era apenas um parágrafo muito vago que nem sequer era inteligível para nós. Isto mostra que há uma mudança de atitude, uma mudança nas mentalidades das pessoas na Comissão. A decisão envia uma mensagem de que nós merecemos estar lá, como qualquer outra ONG. Claro, vai haver uma represália, mas estamos prontos para ela, porque essa é a nossa vida, nós apenas temos que traçar estratégias de forma segura. Na próxima sessão da Comissão vamos estar lá, prontas para nos engajarmos e levarmos nossas histórias para que elas sejam compartilhadas com os governos dos países africanos. Estou tão animada!
Conectas • O que você tira como lição de sua visita ao Brasil em relação à questão LGBTI no país?
K.J.N. • Bom, quando eu estava no Brasil, em primeiro lugar gostei das pessoas, elas são realmente afetuosas. No entanto, as histórias que ouvi quando estava lá não eram muito boas. Havia um monte de homofobia e também de racismo. Quando fui ao Rio houve um grande protesto e mataram dois garotos negros que estavam em uma rua próxima onde eu estava hospedada. Eu não podia sair sozinha apenas para passear e desfrutar do ar livre. Aqui [em Uganda] eu raramente ando na rua e, normalmente, aproveito quando estou fora de Uganda para andar livremente na rua, porque não sou reconhecida. Mas lá [no Brasil] era assustador, porque embora a minha sexualidade não estivesse estampada no meu rosto, minha cor de pele estava, foi realmente assustador para mim.
Conectas • Por fim, qual a melhor forma de apoio que nossos leitores podem prestar aos esforços para combater a discriminação LGBTI em Uganda?
K.J.N. • Respondam aos nossos pedidos de apoio quando os divulgamos, leiam as nossas notícias para que possam saber o que está realmente acontecendo, façam doações para nos ajudar a alcançarmos nossos objetivos para fazer esse trabalho – nosso Paypal é enviado diretamente para nós. Usem as mídias sociais, acessem nossas páginas e digam Kasha “Te envio paz, te envio amor,” isto nos dará alegria para trabalharmos e sabermos que pelo menos temos amigos e amigas que se preocupam conosco, mesmo sabendo que estão longe. Isto nos dá a energia para continuar o que estamos fazendo, porque sabemos que não estamos sozinhas nisso.
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Entrevista realizada em abril de 2015 por Laura Daudén e Thiago Amparo (Conectas Direitos Humanos). Oliver Hudson e Josefina Cicconetti, também da Conectas, auxiliaram com pesquisa prévia à entrevista.