Ensaios

Reconfiguração do poder

Ronilso Pacheco

Uma análise sobre direitos humanos, religião e a democracia em disputa no Brasil

Jonathan Adami

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RESUMO

A ideia de repensar “o poder”, isto é, repensar sua centralidade e circulação, parte de uma provocação, de um movimento necessário em direção a outras alternativas de enfrentamento dos desafios postos hoje pela extrema-direita em diversos países àqueles e àquelas que defendem os direitos humanos, a liberdade e a democracia. Implica entender como as estratégias da extrema-direita têm agido para obstaculizar o debate sobre estes temas, dificultando o reconhecimento de sua importância e efetividade, assim como reduzindo muitos dos esforços na direção de uma “guerra de narrativa". Repensar o poder também aponta para o desafio que as forças progressistas, comprometidas com os direitos humanos, têm de ouvir e entender o poder que há e circula nas bases, aprendendo alternativas de ação e comunicação, num caminho urgente de diversificação de estratégias, narrativas e, principalmente, de atores e atrizes.

Palavras-Chave

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En todo el mundo las sociedades libres se enfrentan a un enemigo nuevo e implacable. Este no tiene ejército ni armada; no procede de ningún país que podamos señalar en un mapa; está en todas partes y en ninguna, porque no está ahí fuera, sino aquí dentro. En lugar de amenazar a las sociedades libres con la destrucción desde el exterior, como hicieron los nazis y los soviéticos, las amenazan con corroerlas desde el interior.

Un peligro que está en todas partes y en ninguna es esquivo, es difícil de identificar, de distinguir, de describir. Todos lo notamos, pero nos cuesta darle nombre. Se derraman ríos de tinta para describir sus elementos y sus características, pero se nos sigue escapando.

Nuestro primer deber, por tanto, es nombrarlo. Solo así podremos comprenderlo, combatirlo y derrotarlo.

¿Qué es este nuevo enemigo que amenaza nuestra libertad, nuestra prosperidad y hasta nuestra supervivencia como sociedades democráticas?

La respuesta es el poder, en una forma nueva y maligna.

En todas las épocas ha habido una o más formas de maldad política. Lo que estamos viendo hoy es una variante revanchista que imita la democracia al mismo tiempo que la socava y desprecia cualquier límite. Parece como si el poder político hubiera estudiado todos los métodos concebidos por las sociedades libres durante siglos para dominarlos y, después, contraatacar.

Por eso hablo de la revancha de los poderosos.

Moisés Naím em La Revancha de los poderosos11. Moisés Naím, La revancha de los poderosos: Cómo los autócratas están reinventando la política en el siglo XXI (Madri: DEBATE Editorial, 2022).

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I.

Na medida em que a extrema-direita global foi atualizando suas formas de minar a democracia, ela também acabou por influenciar as forças progressistas a repensar, com mais afinco, os meandros do poder. A extrema- direita e os muitos movimentos reacionários (organizados ou não) entenderam a linguagem da “ordem institucional democrática” e passaram a se valer dela. A hermenêutica reacionária sobre democracia, liberdade e outros direitos fundamentais tornou confuso o debate público, a ponto de ser reduzido na desgastada expressão “disputa de narrativas”. A extrema-direita, local e global, empurra o debate público em direção à ideia de um outro projeto de poder a ser combatido: o progressista, o comunista, o esquerdista.

De Jair Bolsonaro a Damares Alves, no Brasil; de José Kast a Chiara Barchiesi, no Chile; de Maria del Rosario Guerra a Maria Fernanda Cabal, na Colômbia; passando por Nayib Bukele, na presidência de El Salvador; a Alejandro Giammattei, na Guatemala, a defesa da “democracia” e a garantia da “liberdade” e defesa da soberania do país aparecem como missão de vida e compromisso político. Esta América Latina de extrema-direita e “democrática” se junta tranquilamente à democracia “iliberal” de Viktor Orbán, na Hungria, e à luta pela identidade nacional e as liberdades individuais de Giorgia Meloni, na Itália, e do Partido Vox espanhol.

Esta conjuntura apresenta imenso desafio para as forças progressistas do continente, é evidente. Mas movimenta estas mesmas forças na tentativa de compreender e reagir às formas em que o poder se coloca e se disputa no contexto atual. Valores caros às pessoas e organizações comprometidas com direitos humanos foram esvaziados e cooptados no debate público, dificultando enormemente a maneira como comunicamos estes valores, identificamos os riscos que os circundam e trabalhamos por uma sociedade livre e inclusiva.

A já clássica obra do jornalista Moisés Naím, O Fim do Poder, de 2013, faz uma contribuição importante para a compreensão do poder, mostrando que tal como o concebemos, um poder representado em imagens e instituições entrou em declínio em um mundo muito mais dinâmico. Naím identifica as principais razões para esse declínio do poder, ou para uma reconfiguração do poder, e as divide em três categorias que ele denomina como “transformações revolucionárias”.

A primeira delas seria a revolução do Mais. Esta se caracteriza pelo crescimento e abundância em tudo: no número de países, no tamanho das populações, nos padrões de vida, nos índices de alfabetização, no avanço da tecnologia médica, na quantidade e diversidade de produtos, partidos políticos, religiões etc. Por outro lado, é um mundo também mais desigual, mais desequilibrado economicamente, a extrema pobreza atinge mais pessoas, a produção de mais armas expõe consequentemente um mundo mais violento. Mas, também, no avanço da democracia enquanto sistema político almejado; e há mais participação popular e uma sociedade civil mais atuante, que se evidencia também na proliferação de movimentos e organizações.

É assim, com esse “mais” simples e aparentemente genérico, que Naím reconhece um tipo de revolução. Este “mais” não é apenas quantitativo, ele é a complexificação de um mundo diverso, com desafios maiores para aqueles e aquelas que desejam que ele se torne mais inclusivo, justo e igual. Dialogando com o autor, eu incluiria o papel fundamental de outros “mais”. A pluralização e diversificação de conceitos e perspectivas críticas sobre a realidade, principalmente desde contextos subalternizados, assim como a criação de novos canais e estratégias de comunicação/interação poderiam ser entendidos como parte desse “mais”. Um “mais” que foi e tem sido essencial para enfrentar as muitas caras do poder colonial. Neste caso específico, refiro-me à força conservadora – que alimenta e é alimentada por essa articulação política, econômica e religiosa que, na sua disputa hegemônica, mantém o poder nas mãos de uma elite minoritária, ao mesmo tempo que tenta forçar e impor à sociedade a sua vontade; também política, econômica e religiosa – nesse último caso, fantasiada de uma moralidade global.

Para exemplificar, nós poderíamos olhar para a realidade de muitas periferias do Brasil, em especial para as favelas, um território que surge da marginalização, da precarização, do alijamento da participação social e da (im)possibilidade de fruição da cidade; territórios que, no entanto, são potentes de criatividade social, cultural e política. Viver nas favelas, entre a carência de serviços essenciais, a repressão violenta do braço armado do estado e o domínio violento do crime organizado (sejam facções do tráfico ou milícias, como no Rio de Janeiro) exige sabedoria, tecnologia social, perspectiva política e muita imaginação.

Exige sabedoria e está relacionada com diferentes táticas de sobrevivência desenvolvidas pelo povo da comunidade ao morar e transitar por contextos de conflito armado; áreas que exigem domar o medo, olhar, mas agir como se não estivesse vendo. Conferir ao absurdo – em termos dos direitos vulnerados e das situações limites que enfrentam – um grau de “normalidade”, ao mesmo tempo que se buscam melhores e mais seguras condições de vida em meio à precariedade. Exige tecnologia social, na medida em que redes de solidariedade se forjam, nem sempre de forma organizada, mas de maneiras que permitem a comunicação e o cuidado na favela. Essa tecnologia social foi fundamental durante a pandemia de Covid-19 e tem sido, há décadas, em contexto de pobreza extrema para administrar a “economia do cuidado”, principalmente em relação ao cuidado de crianças e pessoas maiores que, na maior parte dos casos, recai sob a responsabilidade das mulheres. E mesmo que alguns analistas e pesquisadores não o vejam assim, toda a dinâmica da favela demanda análise de conjuntura e imaginação. É preciso “ler o contexto” e imaginar possibilidades para viver e avançar.

No entanto, muitas vezes a relação com esses territórios ainda está baseada na lógica da precariedade e da carência. Numa relação apoiada nesta lógica, os territórios e a sua população são enxergados como quem tem pouco, ou nada para dar e tudo a receber. Neste sentido, é fundamental reconhecer o papel de coletivos e organizações locais que atuam como redes poderosas de mapeamento e “tradução” desde e para a comunidade. E aqui também é importante mencionar o papel que muitas igrejas evangélicas, principalmente as pentecostais, desempenham nas favelas como exemplo desta tecnologia social. Sim, crentes pentecostais das periferias não são apenas devotos/as repetidores/as de versículos bíblicos e ovelhas submissas de lideranças pastorais conservadoras. Evangélicos/as também são articuladores/as de redes dinâmicas que permitem a manutenção da vida com alguma dignidade, dentro destes territórios e em meio aos seus desafios.

Com a categoria da Mobilidade, Naím afirma que “temos mais de tudo e, além disso, esse ’mais’ se movimenta com uma intensidade inédita”.22. Moisés Naím, O fim do poder: nas salas da diretoria ou nos campos de batalha, em Igrejas ou Estados, por que estar no poder não é mais o que costumava ser? (São Paulo: LeYa, 2013): 17. Essa mobilidade, portanto, faz referência, por um lado, à circulação de produtos e conteúdos, e, por outro lado, ao próprio movimento. A atuação e organização da sociedade em movimentos é fundamental para o avanço da mesma. Mas também existem, e têm aumentado, os movimentos que visam manter as condições da sociedade exatamente como estão, ou mesmo retroceder para as condições das quais saiu.

Movimentos reacionários e de extrema-direita têm, em todo o mundo, intensificado e diversificado seus ataques e suas estratégias para impedir que as sociedades se movam em direção à renovação, à igualdade e ao reconhecimento da diversidade, sendo contrários, assim, ao próprio avanço da democracia. Se “mais” visões de mundo, narrativas e formas de viver têm desafiado o poder ultraconservador de herança colonial, é necessário, então, ampliar e diversificar os movimentos que, apesar das dificuldades e resistências, têm empurrado muitas sociedades para alguma condição de maior inclusão e igualdade. Os movimentos e a sociedade civil organizada não podem ser os únicos atores deste processo de transformação que deve atingir o todo da sociedade. Este movimento também deve ser observado pela – e compartilhado com a – sociedade desorganizada, isto é, os cidadãos e cidadãs que estão alijados do protagonismo político e social.

Por último, o autor fala da revolução da Mentalidade, que refletiria as grandes mudanças nos modos de pensar, nas expectativas e nas aspirações que vêm acompanhando essas transformações. Eu acrescentaria que esta revolução tem sido intensificada pela luta por reconhecimento da existência digna das minorias sociais, mas também pela afirmação identitária reacionária, muitas vezes ancorada no espectro religioso ultraconservador e fundamentalista, que vai na direção oposta do reconhecimento da diversidade e da pluralidade na sociedade. Essa mudança nos “modos de pensar” e nas “aspirações” sociais e políticas tem constantemente tensionado a esfera pública, colocando em evidência o poder que também circula, não só na elite política, mas também na sociedade civil organizada, na tentativa de influenciar o rumo da sociedade.

No mundo inteiro, onde sua ascensão mostra força, a extrema-direita tem mostrado ser profundamente bem-sucedida em canalizar certas aspirações. “Defender a família tradicional” parece ter sido uma saia justa para as forças progressistas que a todo momento precisam elucidar que seus projetos de sociedade e agenda política coletiva não comprometem o reconhecimento do lugar da família na sociedade. De fato, “família” tornou-se aspiração fundamental em muitos contextos concretos em que a precarização, a insegurança e o vazio causado por uma sociedade capitalista desafiam o dia a dia da vida de milhões de pessoas, principalmente nas periferias.

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II.

Pois bem, o mundo mudou e o “poder” no mundo igualmente. Ao menos a maneira como o poder se articula e consegue estabelecer limites, apontar caminhos, centralizar reações e contra-reações. Um exemplo disto é a estreita relação de muitos candidatos a cargos executivos no Brasil (presidente em especial) com o segmento evangélico do país. Até as eleições majoritárias de 2010 e 2014, o diálogo dos candidatos à presidência com os evangélicos era feito principalmente a partir das principais lideranças evangélicas do país.

As disputas entre Dilma Rousseff e José Serra (segundo turno de 2010) e entre Dilma Rousseff e Aécio Neves (segundo turno de 2014) orbitaram em torno dos mais poderosos nomes das mega igrejas brasileiras, entre eles, Edir Macedo, Silas Malafaia, José Wellington, Manoel Ferreira, Valdemiro Santiago e R. R. Soares. Essa estratégia política de diálogo seguia a lógica de falar com os atores que ostentavam o poder religioso evangélico em suas mãos.

Nessa lógica, imaginava-se que o apoio e a adesão dos poderosos líderes das maiores denominações do país implicava necessariamente o apoio generalizado de seus respectivos rebanhos. Uma estratégia que Luiz Inácio Lula da Silva também usou durante suas duas disputas à presidência. Mas o poder religioso desses líderes se mostrou paradoxalmente frágil. A usurpação de um poder baseado em um nível máximo de representação – no caso de um pastor que centralizava e pretendia ser a voz dos evangélicos33. Ainda usando o último dado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como oficial, são 22% da população, cerca de 42 milhões de evangélicos (acredita-se que o Censo de 2022 trará a informação de cerca de 60 milhões). distribuídos em todo o território nacional – sublimou a complexidade e muitas nuances desse papel da religião na esfera pública, em que os indivíduos crentes exercem seu poder de decisão através de escolhas pessoais que são feitas e relativizadas à luz de necessidades e contextos locais. As redes, a tecnologia social desenvolvida a partir das igrejas locais, exerciam mais poder do que o grito histriônico das lideranças evangélicas milionárias diziam sobre si mesmas.

Assim, Bolsonaro disputou o segmento evangélico não apenas a partir de lideranças religiosas e seu poder econômico, religioso e midiático, mas também, ou principalmente, a partir da defesa explícita de um ultraconservadorismo de supremacia cristã que desprezava publicamente o compromisso com a laicidade do estado; que citava o versículo bíblico “conhecereis a verdade e ela vos libertará” (João 8:32) como compromisso pessoal; e que transformou o jargão “Deus acima de todos” em símbolo, simultaneamente, de civismo e fé. Essa defesa pública da fé cristã conservadora foi um elo de conexão vital para Bolsonaro. De maneira consciente, estratégica ou não, ele pareceu ter entendido onde estava o “poder”, de fato, para ter os evangélicos a o seu lado. Obviamente, sua vitória política se dá com a adesão das lideranças evangélicas fundamentalistas, mas algo também foi construído num movimento de baixo para cima, isto é, a despeito da persuasão e pressão dessas lideranças das mega igrejas, grande parte do setor evangélico se identificava com um candidato que defendia, com energia e força, os “valores cristãos”. Ele afirmava, publicamente, a superioridade do cristianismo e que minorias não cristãs deveriam aceitar os padrões morais da maioria cristã conservadora.44. Veja, por exemplo, "Somos um país majoritariamente de cristãos, não admitiremos qualquer retrocesso nessa área, porque temos o povo e Deus ao nosso lado", em: Eduardo Simões, “Bolsonaro diz que não aceitará ’retrocesso’ em maioria cristã no Brasil”. Yahoo! Notícias, 2 de setembro de 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://br.noticias.yahoo.com/bolsonaro-diz-que-n%C3%A3o-aceitar%C3%A1-152746970.html; ainda, “’O Estado é laico, mas nosso governo é cristão’, diz Bolsonaro no Twitter”, Diário de Pernambuco, 16 de setembro de 2020, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/politica/2020/09/o-estado-e-laico-mas-nosso-governo-e-cristao-diz-bolsonaro-no-twit.html; e “Bolsonaro diz que o Brasil ‘está condenado a ser cristão’”, Carta Capital, 14 de agosto de 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-diz-que-o-brasil-esta-condenado-a-ser-cristao/.

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III.

Para Ariel Goldstein, nos últimos anos assistimos a uma perda de legitimidade das instituições e regimes democráticos na região da América Latina, situação que foi agravada pela pandemia. Goldstein afirma que o forte questionamento das elites dirigentes levou ao descrédito do regime democrático. Isso porque, continua ele, “quando as elites dirigentes e oficiais são percebidas como distantes do destino das maiorias populares, o regime democrático perde legitimidade e soluções autoritárias e/ou de fora tornam-se mais aceitáveis”.55. Ariel Alejandro Goldstein, La reconquista autoritaria: Cómo la derecha global amenaza la democracia en América Latina (Buenos Aires: Marea, 2022): 13. Isto é verdade em parte. Há tempos, na América Latina, elites dirigentes e oficiais (militares) estão muito distantes da maioria da população.

O fato é que, na América Latina, principalmente as populações mais empobrecidas e mais vulneráveis sempre lidaram com esta realidade. Nenhum país latino-americano, nem o Brasil, a Argentina, a Venezuela, o Chile, a Guatemala, ou mesmo a Colômbia, teve na sua história um momento Macondo; aquela cidade real-fantástica criada por Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão; ou a coletividade que funda uma cidade no meio do deserto, distribuindo papéis-funções e protagonismo para todas e todos, como a trupe circense no deserto mexicano em Santa Maria do Circo, de David Toscana. Em outras palavras, somos o legado de uma sociedade desigual, colonial e profundamente hierarquizada. Sociedades forjadas em países fundados sob a lógica que se desenvolve entre aqueles que trabalham e lutam pela própria sobrevivência, e aqueles que desfrutam dos privilégios de dirigir os rumos do país, dividir sua riqueza e pautar a moral e o comportamento da sociedade.

Não havendo novidade no distanciamento de elites dirigentes em relação às classes populares, a análise poderia, então, voltar-se para as forças progressistas organizadas que, a despeito de terem a defesa dos direitos humanos e da democracia como princípio, também evidenciam um grau limitado de conexão com “a sociedade desorganizada” – os populares que estão lutando para sobreviver às demandas do dia a dia. O argumento pode parecer descabido considerando que muitas organizações, coletivos, movimentos sociais e redes de atores sociais do campo progressista democrático muitas vezes estão presentes e enraizados nestes locais mais precarizados. Mas parece ser plenamente razoável quando nós analisamos, por exemplo, a complexa relação destes mesmos movimentos com um governo progressista. Quando algumas lideranças do campo dos direitos humanos encontraram nos governos Lula e Dilma diálogo e, principalmente, lugar, os riscos em relação ao que poderia ser formado a partir do ressentimento de uma classe média conservadora e uma minoritária, porém articulada, direita ultra e neoliberal foram minimizados. O distanciamento já frisado foi cada vez mais perceptível e crescente.

Lideranças progressistas, partidos de esquerda e organizações de direitos humanos certamente viram o avanço da direita e da extrema-direita na cooptação do imaginário coletivo das classes populares e, principalmente, no uso da religião para radicalizar a postura conservadora presente em muitos dos contextos dessas comunidades. Este pode ter sido, certamente, o vácuo aberto ao alcance dos fundamentalistas. É verdade que conservadorismo e fundamentalismo estão presentes na própria gênese do evangelicalismo basileiro, seja ele protestante ou pentecostal. Também é verdade que a sociedade brasileira é uma sociedade conservadora, cuja herança colonial e escravocrata permanece impregnando os vários matizes de nossa desigualdade e injustiça estrutural. Não obstante, o nível de radicalização ultraconservadora e reacionária experimentada nos últimos dez anos no Brasil foi gestado sob o distanciamento e perda de capacidade de diálogo dos partidos de esquerda com as classes populares, assim como sob a falta de esforço de muitas organizações e lideranças do campo progressista e democrático para fazer uma leitura coerente e, sobretudo, de respeito e aprendizado com as periferias, principalmente as urbanas. E embora tal distanciamento não implique numa ausência de atuação, tem sido um obstáculo concreto à comunicação eficaz e à ação estratégica diante da urgência e da gravidade das ameaças experimentadas nos últimos anos.

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Conclusão

As forças populares e demais expressões, individuais e coletivas, da sociedade civil organizada que entraram em campo para garantir que um projeto explicitamente autoritário não fosse adiante no Poder Executivo do Brasil não têm nenhuma garantia. As forças pela estabilidade democrática não estão em vantagem com a vitória de Lula; este espaço se mantém aberto e instável. E o caminho talvez não seja apenas repensar a aproximação curiosa e interessada pelas diversas formas de sobrevivência e resistência da sociedade organizada, apesar de ser muito importante; mas também repensar as estruturas de poder.

A estabilidade democrática e o caminho para a consolidação de uma sociedade mais justa, inclusiva, plural e igualitária ainda vai depender muito do debate, e da capacidade de convencimento e estímulo ao engajamento dos diferentes setores da sociedade, em torno do valor e alcance dos direitos humanos, incluindo as liberdades civis e políticas, a justiça racial, de gênero e, claro, da própria democracia. Ainda dependerá muito do quanto entendamos como sociedade que não se trata de modelos políticos em disputa, mas do quão imprescindível é que haja um pacto social que proteja esses conceitos supracitados.

Essa forma de compreender a luta pelos direitos humanos e a democracia tornam a disputa política no mínimo mais complexa e difusa. Porque as instituições, as organizações, as redes de mobilização – seja emancipatória ou reacionária-fascista – vão continuar presentes e agindo. Vão continuar em movimento. O que é importante reconhecer é que atores e atrizes que se encontravam dispersos e pouco considerados nessa disputa – a não ser quando convocados a votar em eleições – também estão presentes, com seus interesses, suas próprias demandas e formas de engajamento.

Embora haja uma sinergia entre estas formas de engajamento popular e as redes reacionárias internacionais que dela se aproveitam, essa sinergia só é bem-sucedida porque encontra lugar e eco nos mais variados contextos em que muitas pessoas são pressionadas a viver. Isso vai desde o medo de que alguém lhe tire a vida violentamente, até a ideia de que um projeto de poder ignore o valor da família ou tire a liberdade dos pais para criarem seus filhos. E encontra eco em medos que, mesmo decorrentes de pânicos sociais instaurados e superdimensionados, são reiterados e compartilhados, não precisamente por criadores de fake news, mas por pessoas da sua própria rede de intimidade, afetividade e solidariedade. Na prática, fica difícil associar fake news e criação de pânico moral organizado à figura do seu pastor amigo que acolheu e ajudou a família nos momentos mais difíceis, às vezes dividindo a própria cesta básica.

Derrotar o projeto da extrema-direita no Brasil, ou em outros contextos de diferentes países da América Latina, vai exigir muito mais do que reforçar argumentos e modelos antigos de abordagem dos temas que comprometem o nosso futuro. A população inflada e excitada pela derrubada do governo recém-eleito no Brasil, presente por muito tempo nas ruas, está longe de ser fruto de um movimento internacional organizado, guiando radicais para ação e perturbação da ordem democrática.

Ronilso Pacheco - Brasil

Ronilso Pacheco é teólogo pela PUC-Rio, mestre em religião e sociedade pelo Union Theological Seminary (Columbia University). Atualmente é professor assistente do departamento de Filosofia da Universidade de Oklahoma, onde também desenvolve pesquisas no campo da Filosofia Política, com interesse sobre a intersecção entre política, raça, religião e esfera pública. É autor dos livros Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teológica em tempos de violência, racismo e opressão (2016) e Teologia Negra: o sopro antirracista do Espírito (2019).

Recebido em Dezembro de 2022.

Original em português.