Diálogos

“Lavar, costurar, agitar a bandeira”

Claudia Coca

Relato de uma luta sem fim pela democracia no Peru

Miria Grunick

+ ARTIGOS
0

Entrevista com Claudia Coca
por Revista Sur

Nesta edição da Revista Sur, em nossa Galeria de peças artísticas, incluímos o registro fotográfico de uma ação paradigmática do Colectivo Sociedad Civil realizada no ano 2000 no Peru, a “Lava la bandera”. Esta intervenção política e coletiva, realizada como um clamor simbólico pela democracia, contestava o sentido historicamente atribuído à bandeira como uma insígnia, a marca distintiva de um povo. Levar as bandeiras nacionais às praças e lavá-las coletivamente, ao mesmo tempo em que se configurava como uma crítica a um símbolo gasto e sua frágil representação, forjava, a muitas mãos, outros significados possíveis.

O contexto em que a ação foi realizada foi muito específico. A violação sistemática dos direitos humanos, a perseguição política, a corrupção e a pobreza acompanharam os longos anos da ditadura de Alberto Fujimori no país.

Hoje o Peru experimenta novamente uma profunda crise política. Uma crise que em pouco mais de um mês deixou um número alarmante de pessoas mortas e feridas em um cenário de violenta repressão estatal contra os manifestantes.11. “Guterres preocupado com protestos no Peru que mataram dezenas”, ONU News, 26 de janeiro de 2023, acesso em 30 de janeiro de 2023, https://news.un.org/pt/story/2023/01/1808777 Milhares de pessoas têm ocupado as ruas peruanas com suas bandeiras hasteadas; as bandeiras de um país que hoje, como há 20 anos, vive um momento de instabilidade, resultado de profunda desigualdade nacional, racismo estrutural e uma crise institucional que se torna evidente numa violação sistemática dos direitos humanos.

Nesta breve entrevista com a Revista Sur, Claudia Coca, artista peruana, ativista política e professora, nos conta sobre sua experiência no Colectivo Sociedad Civil à época das intervenções de “Lava la bandera”. Entre outras coisas, ela fala sobre as expectativas daquele período, o significado e o impacto dessas ações artísticas de rua que encheram muitas praças no Peru, e, finalmente, sobre a importância atemporal da ressignificação e apropriação do valor simbólico da bandeira para criar ações coletivas diante da violação dos direitos humanos e como parte de uma constante busca pela manutenção da democracia.

• • •
01

Revista Sur • Conte-nos sobre o Colectivo Sociedad Civil, quais ideais os uniram e quem fazia parte?

Claudia Coca • Para mim, o Colectivo Sociedad Civil era um coletivo de cidadãs e cidadãos que queria ativar a sociedade civil para recuperar a democracia. Em 2000, com grande ingenuidade, endossamos a seguinte frase: “Pela derrubada cultural da ditadura”, e digo ingenuidade porque nunca esperávamos estar no mesmo lugar hoje, e digo isto com desespero e dor.

Éramos poucos no início e muitos no auge da luta democrática.22. Os membros fundadores do Colectivo Sociedad Civil são oriundos das artes visuais. Nas primeiras semanas de formação, criação e trabalho faziam parte, além de Claudia Coca, Susana Torres Márquez, Abel Valdivia, Emilio Santisteban, Sandro Venturo, Gustavo Buntinx, Fernando Bryce e Natalia Iguiñiz.

Sur • O que foi mais marcante para vocês como grupo na realização da ação “Lava la bandera”?

C.C. • Estivemos nas ruas durante muitos meses com diferentes ações cidadãs. Embora a “Lava la bandera” fosse a mais famosa, tivemos experiências cruciais em diferentes momentos. Poderia dizer, pelo meu testemunho, que o mais marcante foi a união da força cidadã; começamos como poucos e nos tornamos muito participantes no coletivo, muitas pessoas que saíam para levar a cabo diferentes ações simbólicas contra a ditadura.

A importância da ação “Lava la bandera” foi que se manteve durante 6 meses, antes, durante e após a queda de Fujimori. Lavar a bandeira todas as sextas-feiras na Plaza de Armas significava que esta ação era replicada em outras regiões do país. Até mesmo cidadã e cidadãos peruanos em outros países replicavam a ação em praças e embaixadas. As réplicas não foram coordenadas por nós, foram a iniciativa da própria cidadania.

Documentação da repercussão midiática das ações do Colectivo Sociedad Civil. Arquivos cedidos pela artista Claudia Coca.

Sur • Como interpretam a repercussão e o efeito político em relação às expectativas que tinham no início?

C.C. • Os meios de comunicação democráticos cobriram as ações, que foram depois publicadas nos meios de comunicação escritos, radiofônicos e televisivos. Isso foi muito importante para o público ver as ações simbólicas de natureza pacífica e reflexiva. Era importante para nós sermos acompanhados pelos meios de comunicação, especialmente por razões de segurança, e isso foi um fator importante para atrair mais cidadãos a participar. Um tipo diferente de protesto das cidadãs e dos cidadãos significava que o medo de perseguição e de serem chamados de “terroristas” se diluía, e por isso saímos para protestar. O regime Fujimori já tinha assumido a linguagem simbólica e todos os que saíram para protestar foram vinculados ao terrorismo; infelizmente isto continua até hoje e estamos a vivê-lo novamente.

Sur • Quais são as convergências entre o contexto atual e o contexto em que a ação foi realizada? Fale-nos um pouco sobre as exigências sociais e políticas que motivam os protestos no Peru de hoje; quais são as saídas democráticas?

C.C. • Os regimes fascistas têm as mesmas características, pois existem muitas semelhanças entre o regime atual e o regime de Fujimori. A falta de direitos constitucionais é a questão mais importante. Hoje em dia, as vidas de peruanas e peruanos estão sendo tomadas da mesma forma que há 23 anos .

O Peru é um país com um centralismo injusto, onde outras regiões do país são abandonadas e vítimas de pobreza, desigualdade e discriminação. O racismo estrutural nos impede de pensar numa sociedade onde cidadãs e cidadãos tenham direitos iguais.

A situação atual foi provocada pelo golpe de Estado falido do ex-presidente Pedro Castillo, que esteve ligado a muitas investigações sobre corrupção e teve um governo populista, medíocre e corrupto durante um ano e meio. A exigência popular é que a presidente Dina Boluarte se demita, antecipando novas eleições presidenciais.33. Harold Quispe, “Mayoría de peruanos exige adelantar elecciones en 2023: nueva encuesta del IEP este domingo.” La República, 28 de janeiro de 2023, acesso em 30 de janeiro de 2023, https://larepublica.pe/politica/actualidad/2023/01/28/adelanto-de-elecciones-mayoria-de-peruanos-exige-adelantar-elecciones-2023-encuesta-del-iep-de-domingo-dina-boluarte-334590 O Congresso seria obrigado a mudar o seu conselho de administração, elegendo um novo presidente de consenso que depois assumiria a Presidência da República.

Registro da ação “Cose la bandera”, 2021. Arquivos cedidos pela artista Claudia

Sur • Partindo da situação atual para pensar nos símbolos nacionais, na possibilidade de contestá-los e de interromper o seu sentido hegemônico e colonial, que significado teria hoje uma intervenção como a que foi feita naquela época? A que seria comparável hoje?

C.C. • Pensar sobre a colonialidade dos símbolos patrióticos é um assunto que engloba uma extensa reflexão. Contudo, um símbolo como a bandeira ainda representa um lugar comum em que as pessoas se sentem refletidas, daí a importância da ressignificação e apropriação do valor simbólico para criar ações/situações de união face à violação dos direitos humanos e democráticos.

Hoje as marchas estão cheias de bandeiras vermelhas e brancas, bem como de bandeiras pretas e brancas; o vermelho foi substituído pelo preto como sinal de luto pelos mais de 60 peruanos que perderam a vida nas mãos do regime da presidente Dina Boluarte e do seu primeiro-ministro, Alberto Otárola.

Em 2021, vários coletivos de cidadãs e cidadãos tomaram medidas para promover a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. Como Colectivo Sociedad Civil, realizamos a ação “Coser a bandeira”. Assim, uma bandeira em preto e branco foi feita com roupas que simbolizavam as roupas que eram usadas nos velórios sem corpo daqueles que desapareceram durante o conflito armado. Esta ação foi levada a cabo pelos familiares dos desaparecidos e pela sociedade civil em solidariedade.

Hoje o Peru está mais uma vez de luto, hoje vemos as bandeiras em preto e branco que seguem sendo levantadas e agitadas.

A bandeira continua sendo um símbolo de comunhão, de reconhecimento; para muitos é um grito de inclusão e de direitos. Uma mulher indígena com uma bandeira luta pela sua inclusão e a do seu povo, que continuam a lutar por um lugar, pelos seus direitos, tal como faziam há mais de 500 anos.

Mulheres viajam de diferentes partes do país para Lima – protestos de 2023. Crédito: Reuters.

Entrevista realizada em Janeiro de 2023.
Original em espanhol. Traduzido por Maryuri Mora Grisales e Renato Barreto.