Dossiê Sur sobre Raça e Direitos Humanos

Racializando o debate sobre direitos humanos

Thula Pires

Limites e possibilidades da criminalização do racismo no Brasil

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RESUMO

O trabalho mobiliza a categoria de amefricanidade desenvolvida por Lélia Gonzalez para informar uma análise sobre os direitos humanos que é ao mesmo tempo afrodiaspórica e ancorada nos processos de resistência à colonialidade em Abya Yala. Para desdobrar algumas das possíveis implicações do funcionamento do direito nos termos acima descritos, analisaremos a construção política da criminalização do racismo e os desafios que decorrem de sua mobilização jurisprudencial. Encarnando os sujeitos e sujeitas que são posicionados socialmente como representativos da zona do não ser, busca-se explorar os limites e possibilidades do discurso dos direitos humanos para dar conta da realidade genocida a que estamos secularmente submetidos.

Palavras-Chave

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Introdução

Partimos da centralização da categoria raça como lente analítica, política e normativa para pensar os direitos humanos. Busca-se racializar a discussão sobre direitos humanos para politizá-la, oferecendo uma proposta amefricana que permita recentrar a discussão de maneira afrocentrada, radicada na experiência brasileira e comprometida com os atravessamentos entre raça, classe, gênero, sexualidade e capacidade como estruturais e estruturantes de relações intersubjetivas e institucionais (e não como atributos identitários).

A partir da categoria amefricanidade,11. Lélia Gonzalez, “A Categoria Político-cultural de Amefricanidade,” Tempo Brasileiro, nº 92/93 (jan./jun. de 1988): 69-82. pretende-se informar uma análise sobre os direitos humanos que é ao mesmo tempo afrodiaspórica e ancorada nos processos de resistência à colonialidade em Abya Yala.22. De acordo com Yuderkys Espinosa-Miñoso, Abya Yala é o nome em língua Kuna para designar “terra em plena maturidade” ou “terra de sangue vital”, ou seja, o território que representa o continente que os colonizadores espanhóis passaram a denominar América. Nesse sentido, ver: Tejiendo de Otro Modo: Feminismo, Epistemología y Apuestas Descoloniales en Abya Yala, eds. Yuderkys Espinosa Miñoso, Diana Gómez Correal e Karina Ochoa Muñoz (Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014): 15. Encarnando os sujeitos que são posicionados socialmente como representativos da zona do não ser, busca-se explorar os limites e possibilidades do discurso dos direitos humanos para dar conta da realidade genocida a que estamos historicamente submetidas(os).

Tomando por influência o pensamento de Frantz Fanon,33. Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas (Salvador: EDUFBA, 2008). mobilizamos os conceitos de zona do ser e zona do não ser para explicitar as premissas que subsidiam o trabalho. O projeto moderno/colonial mobilizou a categoria raça para instituir uma linha que separa de forma incomensurável duas zonas: a do humano (zona do ser) e a do não humano (zona do não ser). Sendo o padrão de humanidade determinado pelo sujeito soberano (homem, branco, cis/hétero, cristão, proprietário e sem deficiência), também ele definirá o sujeito de direito a partir do qual se construirá toda narrativa jurídica.

Partindo da premissa de que a construção normativa (tanto teórico quanto jurisprudencialmente) se produz a partir da experiência da zona do ser, busca-se uma narrativa que reposicione o papel dos direitos humanos sobre os processos de violência sobre a zona do não ser. Tomar a realidade da zona do ser como o parâmetro para pensar processos de proteção e promoção de direitos humanos produziu um aparato normativo incapaz de perceber e responder às violências que se manifestam na zona do não ser e fez da afirmação do não-ser a condição de possibilidade que sustenta a humanidade como atributo exclusivo da zona do ser.

A normalização da zona do ser como representativa do pleno, autônomo e centrado gera processos de violência que estruturam e condicionam a própria percepção sobre o que pode ser entendido como violência. A violência como modelo normalizado de resolução de conflitos na zona do não ser é subdimensionada em categorias como inefetividade ou violação de direitos, que reproduzem a proteção ilusória que o colonialismo jurídico oferece a corpos e experiências não brancas. Para desdobrar algumas das possíveis implicações do funcionamento do direito nos termos acima descritos, analisaremos a construção política da criminalização do racismo e os desafios que decorrem de sua mobilização jurisprudencial no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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1. As cumplicidades do discurso dos direitos humanos na (re)produção da violência

A crença nas ideias de universalidade e neutralidade dos direitos humanos produziram uma apropriação dessa agenda de forma hierarquizada e violenta para grupos sociais minorizados e alijados dos bens materiais e simbólicos para o bem viver.

Tais aspectos não são exclusivos dos direitos humanos, estão presentes na dinâmica de funcionamento do direito de forma mais ampla. É necessário, portanto, destacar tais limitações para que as iniciativas que busquem produzir condições de vida plena e coibir processos de desumanização sejam dimensionadas não apenas através de suas potencialidades, mas também a partir daquilo a que se acumpliciam.

A confiabilidade na universalidade e neutralidade dos direitos humanos foi acompanhada pelo desenvolvimento de modelos econômico-políticos estruturados na desigualdade e no distanciamento das condições do bem viver para a zona do não ser. A crença compartilhada de que uma atividade legislativa “neutra” ofereceria o caminho para promoção de uma sociedade equitativa, justa e democrática transformou-se em uma “verdade” bastante eficiente para legitimar uma realidade desigual e racialmente seletiva.

A construção dos Estados-Nação foi estruturada na determinação de um modelo colonial que hierarquizava em termos étnico-raciais os civilizados e racionais (europeus) em relação aos bárbaros e selvagens (indígenas e negros), assim como por uma forma de apropriação da natureza que a coloca a serviço do processo de acumulação capitalista. Essa perversa hierarquização foi justificada por correntes teóricas como racismo científico (biológico e culturalista), darwinismo social e positivismo, que reforçaram a humanidade de uns em detrimento da de muitas outras(os).

Objetificados, desumanizados, infantilizados, docilizados, muitas são as expressões que denunciam o tratamento conferido aos que estão na zona do não ser pelo projeto moderno colonial escravista e por formas atualizadas de desrespeito e extermínio.

Levando em conta os efeitos do colonialismo jurídico, defende-se que só faz sentido pensar em ações estratégicas com o uso do direito (usando o direito contra o direito) se estamos pactuados com as limitações desse campo. As potencialidades dos direitos humanos só fazem sentido se entendidas a partir das representações sobre o humano que definem os próprios contornos da proteção jurídica. A cruel realidade dos que vivem na zona do não ser não evidencia violação de direitos, mas a mais bem-acabada aplicação do direito (e dos direitos humanos), nos termos em que foi construído para atuar e para os sujeitos para os quais ele foi pensado para funcionar.

As categorias jurídicas foram pensadas pela e para a zona do ser. Do ponto de vista de elaboração da norma e do seu processo de aplicação, as experiências de violência que atuam episodicamente sobre a zona do ser determinam os contornos da proteção e o vocabulário a partir do qual as violações serão inteligíveis e acessadas. Fora desse espectro, as violências são naturalizadas, o descarte institucionalizado e muitas das vezes legitimado como política de (in)segurança pública. A forma de composição de conflitos na zona do não ser se dá a partir da violência como norma, sobretudo pela via do Estado.

É preciso ter coragem para confrontar um modelo ilusório de proteção dos direitos humanos, que pensa a violência de forma abstrata e eventual, para que possamos construir categorias jurídicas que sejam capazes de responder a violências concretas e permanentes, estruturais e estruturantes das (im)possibilidades de reconhecimento e exercício de nossa plena humanidade.

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2. Criminalização do racismo

As normas jurídicas refletem hierarquias morais e estratégias de poder, evidenciando modelos de sociabilidade e mecanismos de produção/enfrentamento das desigualdades. Contra a difundida narrativa de que não houve segregação legal no Brasil, a análise do sistema de justiça criminal não exaure as hipóteses, mas nos permite acessar os exemplos mais evidentes de iniciativas públicas de apartheid e o seu êxito fica comprovado, entre outros aspectos, pelos números que escancaram a cor da terceira maior população prisional do mundo.

Usar oficialmente o direito para segregar não significa apenas elaborar enunciados normativos com caráter afirmadamente discriminatório. Deixar de aplicar normas de teor antirracista, esvaziar as medidas de promoção da igualdade racial e fortalecer a imagem do negro como não humano, inferior, delinquente, primitivo, lascivo e servil são igualmente exemplos de racismo institucional.

O sistema penal tem como função primordial determinar condutas desviantes, a partir de conflitos sociais específicos. Com um corte racialmente seletivo o Legislativo, Judiciário, Ministério Público, a Polícia e a Prisão, escolhem os grupos sociais (e formas de vida) dignos de proteção e os seus inimigos, cujas vidas são tratadas como descartáveis.

O sistema de valores representados na legislação penal exprime o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, que confere máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orienta-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio dos grupos socialmente marginalizados.44. Alessandro Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal - Introdução à Sociedade do Direito Penal, trad. Juarez Cirino dos Santos, 3ª ed., Coleção Pensamento Criminológico nº 1 (Rio de Janeiro: Revan, ICC, 2002): 176. Os processos de normalização questionados pela lente de classe precisam alcançar outros padrões de opressão a ela imbricados, sob pena de não retratarem todas as dimensões que compõem os processos de desumanização sobre a zona do não ser.

O racismo e, por consequência, a seletividade racial do sistema penal, não é um problema de negros, é um problema da hierarquização racista, sexista, classista, cristã e cis/heteronormativa que por aqui se estruturou, e é preciso que nesses termos se enuncie.

Nesse trabalho, não nos propomos a analisar os fatores que denunciam o racismo dos órgãos de criminalização primária, secundária e terciária quando aplicam normas penais de “proteção” do sujeito de direito e punição desproporcional dos que habitam a zona do não ser. Interessa-nos desvelar o que a magistratura criminal entende por racismo.

Quando levados a decidir sobre se uma determinada conduta configura ou não o crime de racismo, o Poder Judiciário fica obrigado a enunciar os termos a partir dos quais a conduta é percebida. Além disso, tais ações tem a potencialidade de nos informar os contornos que definem a aplicação de legislações antidiscriminação. Ou seja, nesses casos, podemos observar como a magistratura criminal se comporta quando o sujeito de direito normalizado é subvertido: passando a zona do não ser a se constituir como o “modelo” a partir do qual a proteção jurídica precisa ser informada e a figura do delinquente vinculada a corpos que habitam a zona do ser.

No âmbito da constituinte de 1945/46 e na retomada em 1987/88, a proposta da criminalização do racismo disputada pelos Movimentos Negros brasileiros, pretendia desincrustar o racismo como um “problema” da ordem do privado. A constitucionalização dessa demanda objetivava tornar o racismo um problema de ordem pública, cujo combate passaria para a responsabilidade das instituições políticas.

A medida reposicionou na discussão pública a crueldade da estratificação social brasileira, anunciou o clamor por respeito de corpos secularmente violentados e denunciou que invisibilidade, exclusão e atos de fala discriminatórios representam violências graves, que se refletem não apenas nas suas vítimas diretas (de forma desproporcional e violenta), mas também em seus agressores (como demonstra Guerreiro Ramos em A patologia social do branco brasileiro).55. Alberto Guerreiro Ramos, Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995): 215-240. Mais do que “simples ofensas” ou “mau entendidos”, as condutas tipificadas como representativas do crime de racismo se não coibidas oferecem as condições de possibilidade para manutenção de hierarquias de humanidade entre nós e das justificativas públicas para nosso extermínio.

A criminalização de manifestações de desrespeito surge como bandeira política das grupos sociais minorizados como forma de dar visibilidade a violências perpetradas contra elas e de fazer com que o Poder Público assuma sua responsabilidade no enfrentamento das condições materiais e simbólicas que subsidiam suas vulnerabilidades. Pela primeira vez, o texto constitucional se posicionou para coibir de forma grave o tratamento discriminatório em relação aos negros, transformando a prática do racismo em crime inafiançável e imprescritível.

A partir da inscrição do artigo 5o, XLII na Constituição Federal, a Lei 7.716/89 passou a tipificar algumas das condutas reconhecidas como resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

A Lei 7.716/89 estabelece duas maneiras de tratar o crime de racismo: de maneira casuística (artigos 3º ao 14 e 20, §1º) ou sob a conduta geral “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (artigo 20, caput). Se a conduta puder ser enquadrada especificamente nos tipos definidos de maneira detalhada (nos artigos 3º a 14 e 20, §1º), afasta-se a aplicação da norma geral acima transcrita.

As condutas específicas referem-se basicamente a atos relacionados a impedir, negar ou recusar o acesso de alguém a: emprego, estabelecimentos comerciais, escolas, hotéis, restaurantes, bares, estabelecimentos esportivos, cabeleireiros, entradas sociais de edifícios e elevadores, uso de transportes públicos, serviço em qualquer ramo das Forças Armadas; ou impedir/obstar o casamento ou convivência familiar e social.

Quando a discriminação é efetivada através de insultos ou troca de ofensas com motivação racial, o tipo referente é o da injúria qualificada, previsto no artigo 140, § 3º do Código Penal, introduzido pela lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. A injúria racial é constatada, portanto, quando o ofensor se refere à raça, à cor, à etnia, à religião, à origem ou mesmo à condição de pessoa idosa ou com deficiência. Mas, se as ofensas precedem as condutas tipificadas na Lei Caó, deve-se aplicar o tipo especial e as consequências advindas de sua utilização (inafiançabilidade, imprescritibilidade e pena respectiva).

Os crimes previstos na Lei 7.716/89 são objeto de ação penal pública incondicionada, isto é, independem da manifestação do ofendido, cabendo ao Ministério Público apresentar denúncia e promover a responsabilização dos acusados. Até o advento da lei 12.033/09, a injúria qualificada era punível através de ação penal privada. Nesse caso, cabia ao ofendido através de uma queixa crime e no prazo de seis meses levar a questão à apreciação do Judiciário.

Mudança ocorrida no texto do artigo 145, parágrafo único do Código Penal em 2009, pela lei 12.033, fez com que esses crimes passassem a ser persequíveis por ação penal pública condicionada à representação do ofendido. Por esse motivo, nas condutas ocorridas em data anterior, hipótese de muitos processos analisados, a ação foi movida por queixa-crime e não por denúncia.

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Da análise de seus dispositivos percebe-se que boa parte dos enunciados normativos referem-se a práticas de racismo aberto. Sendo o Brasil, um país onde as dinâmicas de racismo se apresentam mais por denegação66. Lélia Gonzalez, “Nanny,” Humanidades 17, ano IV (1988): 23-25. do que pela forma aberta, restou ao artigo 20 da lei Caó (supracitada) coibir tais manifestações.

Entender as dinâmicas a partir das quais o racismo opera em cada contexto é fundamental para construção de respostas político-institucionais que confrontem seu modo de funcionamento de forma concreta. O racismo se manifesta através de condutas individuais que promovem a discriminação racial nas suas mais variadas formas de violência ou através da atuação contundente de órgãos públicos e privados na expropriação da humanidade, do descarte de vidas e na mobilização desproporcional de violência sobre grupos sociais racialmente subalternizados. Em relação à análise do texto legislativo acima enunciado, pretendemos chamar atenção para dois aspectos: um relacionado à maneira pela qual trata as dinâmicas intersubjetivas do racismo e o outro em sua dimensão institucional.

O primeiro deles refere-se ao grande investimento da Lei 7.716/89 em punir condutas de racismo que se manifestam de maneira individual, exigindo ainda que a intenção (dolo) de ofender/apartar/excluir possa ser comprovada. É preciso que as dinâmicas pelas quais o racismo opera nas relações intersubjetivas sejam entendidas para que a aplicação da norma seja potencializada. E, nesse sentido, é preciso destacar que o mito da democracia racial mascara sobremaneira as interpretações acerca das condutas que constituem prática de racismo no Brasil, além do fato de que, seguindo Lélia Gonzalez, entende-se que boa parte de suas manifestações ocorrem mais por denegação do que pela via do racismo aberto.

Em segundo lugar, do ponto de vista da categorização legislativa, são precárias as medidas para promover responsabilizações contra o racismo institucional. Não há na redação da Lei Caó amparo legislativo construído a partir das dinâmicas em que se manifesta o racismo institucional, ainda que seja possível mobilizar o artigo 20 da Lei Caó, principalmente se aplicado em conformidade com o Estatuto da Igualdade Racial (lei nº 12.288/2010), aos tratados internacionais de direitos humanos internalizados no Brasil, bem como em acordo com as diretrizes dos planos nacionais de direitos humanos.

No âmbito jurisprudencial e tomando o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro como referência empírica, percebe-se que os casos judicializados representam uma cifra irrisória em relação à frequência do racismo e apresentam um repertório argumentativo capaz de informar o porquê do caráter residual dos casos.

Foram analisados processos criminais julgados em segunda instância no período de 1989 (ano da edição da lei 7.716) até julho de 2018, gerando um universo de 150 casos envolvendo racismo (em qualquer de suas manifestações) contra negras(os). Em 57,33% dos casos houve condenação e a tipificação como injúria qualificada (artigo 140, parágrafo 3o, do Código Penal) foi aplicada em 83,33% dos casos.

A escolha pela injúria qualificada como tipificação predominante foi mobilizada durante muito tempo para impedir que a imprescritibilidade e inafiançabilidade da Lei Caó fosse aplicada. Em agosto de 2015, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestou no RE686.965-DF no sentido de reconhecer a injúria racial como delito de racismo, aplicando todas as consequências a ele correlatas, entendimento acompanhado pelo Supremo Tribunal Federal (STF, ARE 983.531-DF) em agosto de 2017. Em razão da proximidade dessas decisões do STJ e do STF e pelo fato de terem sido analisados apenas os casos em segunda instância não foi possível medir seus impactos na caracterização dos casos de racismo pelo TJRJ.

Conforme explicitado anteriormente, em 2009, com a edição da lei 12.033, as hipóteses de injúria qualificada passaram a ser objeto de ação penal pública. Se até 2009 o Ministério Público tinha atuado apenas em 36,95% dos casos de racismo, no período entre 2012 e julho de 2018, o índice chegou a 87,8%. Apesar dos poucos casos (150) encontrados no período de 1989-2018, foram 51 casos até 2011 e 99 ações julgadas em segunda instância de 2012 a julho de 2018.

Na leitura dos julgados, percebe-se que a percepção do racismo é reduzida à uma dimensão intersubjetiva, dolosa e aberta e que o Poder Judiciário escancara em sua narrativa processos históricos de desumanização, conforme os exemplos que se seguem.

No caso 0016651-42.1999.8.19.0001 (2000.050.04827), o réu foi condenado por injúria simples sob o argumento de que “nem toda expressão como ‘preto de merda’ […] será informada pela nota do preconceito. […] O primeiro elemento é apenas designativo, indicador do destinatário da ofensa”.

No acórdão de nº 0132379-29.2002.8.10.0001(2003.050.04038), a ré, ao supor que a vítima agrediu seus animais de estimação, proferiu as seguintes palavras: “negro nojento, asqueroso, peste negra … lugar de negro é na senzala”. A ré foi absolvida sob o argumento de que “ao ver seus animais de estimação sendo maltratados pelo Apelado, uma cólera tomou conta da Apelante, que, envolvida por forte emoção acabou desabafando”.

Na Apelação Criminal 0027910-32.2013.8.19.0037, a alegação é de que a ré teria dito:

Essa raça de macaco safado não presta. Não sei porque colocaram essa gente para morar aqui. Preto não é gente. Volta para o morro da pedra seus macacos. Entra de novo no mato, volta para lá, sua cambada de macacos, e leva esta loura, macaca branca, junto com vocês.

A questão foi tratada como “querela” entre vizinhos, alimentada pela construção irregular de janelas para o lado da casa da Ré.

A legislação penal utilizada para expor publicamente as condutas consideradas nocivas e inaceitáveis foi desde sempre muito eficiente no sentido de afirmar aos negros e negras os comportamentos que deveriam evitar, os lugares que poderiam ocupar na sociedade e muito inexpressiva para proteger-nos do racismo. Racismo institucional, encarceramento em massa e a ineficácia histórica das normas penais antirracistas compõem o cenário que faz do sistema de justiça criminal uma cruel engrenagem de moer corpos negros.

A agenda política histórica dos movimentos negros posiciona-se secularmente contra os processos normalizados de encarceramento, tortura e servidão. Da promulgação da Constituição de 1988 até a primeira metade de 2016, avançou-se no campo das ações afirmativas no âmbito da educação e do mercado de trabalho, manteve-se acesa a disputa por acesso à terra e demais medidas de resgate e valorização de nossa cultura e memória no processo de formação da sociedade brasileira.

A mensagem de que insultos não devem ser naturalizados, exclusões não devem ser assumidas com resignação e que lugares sociais determinados relacionam-se a um sistema de privilégios que se pretende romper faz com que negros confrontem os privilégios da branquitude por todas as formas (judiciais ou extrajudiciais) democraticamente admitidas, dentre as quais a criminalização do racismo não deixa de fazer parte.

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3. Amefricanizando os direitos humanos

Diante da maneira pela qual a legislação antidiscriminação é mobilizada pelo sistema de justiça, é preciso assumir o compromisso de acessar outros referenciais para a construção do direito, para que ele seja capaz de responder às demandas da zona do não ser. Busca-se com a categoria político-cultural da amefricanidade as experiências de reexistência que a práxis negra constituiu em Abya Yala e cuja importância histórica nos foi negada. Pretende-se trazê-las ao centro da análise para que se constituam como fontes de novas práticas, novas instituições, novas respostas.

A amefricanidade produz-se, segundo Lélia Gonzalez,77. Ibid. a partir da reexistência e criatividade que a luta negra em diáspora, protagonizada por mulheres, conduziu a partir do legado colonial que por aqui se forjou. No enfrentamento direto, concreto e permanente ao genocídio, em todas as suas dimensões. A categoria possibilita reescrever o percurso histórico de (in)tensa dinâmica cultural entre as heranças afro-diaspórica, ameríndia e europeia, que nos constituiu a partir de processos de resistência, aculturação, assimilação e criação de novas formas de estar no mundo e enfrentar as violências cotidianas e institucionais.

Trata-se de uma proposta epistêmico-metodológica que leva a sério os desafios de autoinscrição, em atenção ao alerta de Achille Mbembe88. Achille Mbembe, “As Formas Africanas de Auto-inscrição,” Estudos Afro-asiáticos 23, no. 1 (2001): 171-209. sobre a necessidade de romper radicalmente com as descrições hierarquizadas que a colonialidade fez de nós. Não disputamos a possibilidade de sermos incluídos (sempre de maneira controlada) na noção de sujeito de direito que está posta, disputamos a possibilidade de produzir o direito, o Estado e a política a partir do nosso lugar e nos nossos termos.

A experiência amefricana tem muito a contribuir para a redefinição dos direitos humanos, com a teimosia e criatividade que permitiu a subsistência do povo negro em diáspora por séculos de opressão. Essas reorientações têm por objetivo responder ao mundo herdado, e não ao mundo idealizado pelas declarações de direitos humanos. A categoria da amefricanidade, informada pela denúncia do mito da democracia racial e das políticas públicas de branqueamento aporta um sofisticado letramento racial para pensar o contexto de disputa política a que estamos submetidos.

Na construção de sociedades políticas complexas como os quilombos e nas múltiplas experiências quilombistas99. Abdias Nascimento, “Quilombismo: Um Conceito Emergente do Processo Histórico-cultural da População Afro-brasileira,” in Afrocentricidade: Uma Abordagem Epistemológica Inovadora, org. Elisa Larkin Nascimento (São Paulo: Selo Negro, 2009): 197-281. que desenvolvemos, os conceitos de resistência e liberdade guardam contornos próprios que poderiam informar mecanismos alternativos de convivência, produção (i)material, relação com a natureza e de organização política.

O banzo, boicote, greve de fome, pedagogia dos terreiros, Teatro Experimental do Negro, Imprensa Negra, Irmandades, núcleos de pesquisa que se constituíram nos anos 1970/80, os bailes soul, escolas de samba, entre muitas outras iniciativas, indicam que os conceitos de resistência e liberdade que são mobilizados para a aplicação do direito não são capazes de dar conta da realidade vivenciada na zona do não ser.

A experiência amefricana oportuniza, por exemplo, que se pense a violência a partir dos impactos desproporcionais dos processos de desumanização sobre a zona do não ser, e não a partir dos processos de desestabilização da normalidade hegemonicamente enunciada e que mantém a liberdade como atributo exclusivo da zona do ser.

A luta antirracismo pressupõe o combate das estruturas que sustentam o legado colonial-escravista, incrustado em um modelo de modernidade que além de racista é sexista, cis/heteronormativo e capitalista. Enquanto vigorar o modelo de produção e apropriação de corpos construído sob a lógica da desumanização e do descarte de seres humanos, formas de hierarquização de pessoas continuarão a ser (re)produzidas e naturalizadas. Contra tudo isso, renovam-se as apostas na política, no direito construído a partir da zona do não ser e na convivência intercultural para a construção de uma realidade livre e concretamente democrática.

Thula Pires - Brasil

Thula Pires é mulher preta de axé, mãe da Dandara e bailarina. Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora da graduação e pós-graduação do Departamento de Direito da PUC-Rio e Coordenadora do Núcleo de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA) na mesma instituição.

Recebido em Outubro de 2018.

Original em Português.