Como os regimes econômicos internacionais impõem aos Estados mandatos contraditórios em relação a direitos humanos.
No artigo, discute-se como o pluralismo jurídico global gera mandatos conflitantes aos Estados, que respondem a abordagens e pontos de partida opostos para examinar os mesmos conflitos. No decorrer do texto são apresentados três exemplos da contradição existente entre a regulamentação econômica e o sistema de direitos humanos: o regime para proteção do investimento estrangeiro, o regime global de concessões relacionadas à mineração e o regime internacional de comércio. Nesses exemplos, o autor argumenta como os diferentes atores, empresas transnacionais, comunidades locais afetadas e suas redes de ativismo global, buscam um fórum mais favorável dentro da constelação jurídica internacional para apresentar suas demandas e proteger seus interesses. Entretanto, não existem regras ou mecanismos para solucionar essas contradições jurídicas.
A autonomia e a segmentação dos diversos regimes internacionais11. De acordo com a definição clássica de Stephen Krasner, um regime internacional é “um conjunto de princípios implícitos ou explícitos, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões em torno do qual as expectativas dos atores convergem em uma determinada área das relações internacionais” (Stephen Krasner, “Structural Causes and Regime Consequences: Regimes as Intervening Variables,” International Organization 36, no. 2 (1982): 185). Em suma, os regimes internacionais são estruturas do sistema internacional que regem diferentes áreas das políticas públicas nacionais e internacionais, e que convocam atores estatais e não-governamentais, sob princípios e normas de aceitação universal. implicam que dimensões de um mesmo problema jurídico sejam tratadas por diferentes regimes, com abordagens, princípios e procedimentos próprios, resistentes à influência dos demais e com fortes contradições entre si. Isso tem consequências concretas sobre o alcance e a exigibilidade dos direitos ao projetar diferentes obrigações aos Estados que, com frequência, são diretamente conflitantes.
Embora o processo de globalização como uma tendência atenue o exercício da soberania vestfaliana, no sentido de exclusão de interferência externa, os Estados nacionais conservam um amplo poder de regulamentação econômica. Além disso, nos últimos anos, vários Estados da América do Sul começaram a regulamentar questões econômicas que tinham sido desregulamentadas, ou nunca regulamentadas. Esse processo se sustenta no âmbito jurídico pelo desenvolvimento de um direito social mais robusto, reforçado em boa parte pelo direito internacional dos direitos humanos e por uma abordagem mais aberta à intervenção do Estado na vida econômica e na promoção de políticas sociais.22. Rodrigo Uprinmy, “Las transformaciones constitucionales recientes en América Latina: tendencias y desafíos,” en El Derecho en América Latina. Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI, ed. César Rodríguez Garavito (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2011): 109–37; Raquel Z. Yrigoyen Fajardo, “El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo a la descolonización,” en El derecho en América Latina, Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI, ed. César Rodríguez Garavito (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2011): 139–59; Víctor Abramovich y Laura Pautassi, “La Revisión Judicial de las Políticas Sociales. Estudio de casos,” en La revisión judicial de las políticas sociales. Estudio de casos, comp. Víctor Abramovich y Laura Pautassi (Buenos Aires: Editorial Del Puerto, 2009): 279–340; Instituto de Políticas Públicas en Derechos Humanos del MERCOSUR (IPPDH), Ganar Derechos: Lineamientos para la formulación de políticas públicas basadas en derechos (Buenos Aires: IPPDH, 2014).
O constitucionalismo social de recente criação na América do Sul e o regime internacional de direitos humanos constitucionalizado na região expandiram significativamente os deveres estatais de proteção e garantia dos direitos fundamentais. O dever de proteção, tal como concebido pelo regime de direitos humanos, obriga os Estados a agir com a devida diligência para prevenir que os direitos sejam violados por atores não-estatais, produzir informações sobre grupos ou coletivos estruturalmente discriminados ou excluídos, e adotar ações afirmativas, medidas preventivas e reparações adequadas e transformadoras, diante de situações generalizadas ou padrões sistemáticos que produzem ou reproduzem essa desigualdade de cidadania.
Além disso, a releitura dos direitos civis em termos de igualdade estrutural amplia as obrigações positivas dos Estados, inclusive sua responsabilidade indireta pela ação de particulares quando existem riscos que podem ser razoavelmente previstos e evitados pelo Estado. Ademais, o reconhecimento constitucional e legislativo dos direitos sociais (trabalho, seguridade social, saúde, educação etc.), culturais e ambientais projeta para os Estados uma considerável ampliação de suas funções.
Consequências diretas desse processo são o alargamento das funções prestacionais dos Estados e a ampliação dos deveres de regulamentação das relações econômicas, das atividades empresariais e dos mercados. Assim, por exemplo, o direito ambiental impõe regulamentações sobre os processos produtivos das empresas, desenvolvimento de atividades extrativistas, avaliações de riscos e diretrizes para a reparação por danos coletivos. O direito do consumidor obriga regulamentar mecanismos de produção de informação e de consulta, modera a autonomia contratual e impõe medidas de reparação de danos com base em riscos objetivos e de alcance coletivo (ou que afetem interesses individuais homogêneos). Os direitos culturais dos povos indígenas sobre seus territórios, terras e recursos naturais impõem a regulamentação das atividades de mineração e extração, a criação de diretrizes e procedimentos de consulta e busca de consentimento, a determinação de sistemas de participação do lucro das empresas investidoras e a proibição de determinadas formas de exploração desses recursos.
Da mesma forma, o emergente direito à saúde impõe fortes obrigações de regulamentação aos prestadores privados dos serviços de saúde, diretrizes mínimas, benefícios para sistemas privados ou semi-públicos, salvaguardas de setores ou grupos tradicionalmente discriminados, padrões de desempenho definidos pelo Estado para evitar abusos contratuais e deveres específicos de reparação baseados na prevenção dos riscos. O emergente direito à comunicação social impõe obrigações de produção de informação pública e ao mesmo tempo o dever do Estado de evitar uma concentração excessiva dos meios de comunicação e garantir na esfera pública o acesso à expressão de grupos ou setores historicamente relegados. O princípio de igualdade estrutural ou de apoio a grupos subordinados obriga a regulamentar medidas de ação afirmativa (por gênero, raça, condição social ou deficiência) no acesso ao sistema de ensino privado, em processos de contratação, ou no acesso a serviços sociais ou serviços públicos.
Em vários casos esses novos campos de regulamentação estatal afetam interesses de empresas privadas nacionais e multinacionais, impõem restrições à propriedade e à autonomia contratual e autorizam a interferência do Estado em várias áreas do mercado e da atividade econômica. Além disso, a ampliação de mandatos de regulamentação para proteger os direitos entra em conflito com os mandatos “desreguladores” impostos pelos regimes econômicos internacionais mencionados, orientados à proteção dos mercados. A seguir, apresentaremos alguns exemplos que ilustram essa divergência.
Este artigo pretende apresentar um panorama geral de algumas das discussões atuais sobre a conformação de uma pluralidade de regimes internacionais, suas relações, diferenças e convergências possíveis. Para tanto, serão citados exemplos de como os diversos ordenamentos internacionais projetam aos Estados nacionais mandatos contraditórios no campo da regulamentação das relações econômicas. Ilustraremos alguns casos especiais de exercícios de harmonização dos diversos sistemas jurídicos. Em particular, usaremos como exemplo o regime de proteção do investimento estrangeiro, o regime global de concessões mineiras e o regime internacional do comércio. Por fim, descreveremos como os diferentes atores, empresas transnacionais e comunidades locais afetadas e suas redes de ativismo global, buscam o fórum mais favorável dentro da constelação jurídica internacional, para apresentar suas demandas e proteger seus interesses.
O regime político sul-africano que sucedeu a supressão do regime de segregação racial impulsionou uma série de políticas públicas na área econômica que buscavam incluir setores sociais historicamente excluídos das atividades comerciais e produtivas. A finalidade dessas medidas era contribuir para desmantelar as consequências do apartheid, com ações afirmativas na esfera econômica, semelhantes àquelas implementadas, por exemplo, no acesso a empregos do setor público e em planos de habitação em cidades segregadas. Essas medidas de integração racial exigiam de empresas de determinados setores estratégicos a incorporação como sócios e a contratação de uma proporção mínima de gerentes provenientes da população maioritariamente negra. As medidas foram questionadas como expropriatórias por empresários italianos do setor de mineração, que invocaram estar abarcados pelo direito a um tratamento justo e equitativo em tratados bilaterais de proteção de investimentos (TBIs).33. Centro Internacional de Arreglo de Diferencias Relativas a Inversiones (CIADI), Piero Foresti, Laura de Carli y otros vs. Sudáfrica, caso n. ARB(AF)/07/1.
Em 2010 os requerentes desistiram da demanda por considerarem que o governo sul-africano tinha adotado medidas que atendiam suas exigências. Para muitos estudos, essa ação perante o mecanismo do Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI) teve um efeito inibidor (“resfriamento regulatório”) sobre o governo nacional na promoção de ações afirmativas na esfera econômica, restringindo o poder regulatório do Estado diante da perspectiva de novas demandas internacionais dos investidores estrangeiros em alguns setores estratégicos da economia, como o setor de mineração.
Os TBIs padronizados e algumas normas multilaterais (por exemplo, as que regulam o CIADI do Banco Mundial, ou as incorporadas ao NAFTA,44. NAFTA é uma sigla em inglês para Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (originalmente, North American Free Trade Agreement). ou ao Mercosul), assim como as interpretações, princípios e padrões estabelecidos pelos tribunais arbitrais e painéis de arbitragem criados por essas normativas, configuram um regime internacional com o objetivo principal de proteger a propriedade privada do investidor estrangeiro, e em geral a preservação da integridade patrimonial das empresas transnacionais nas economias dos países emergentes. Esse regime inclui uma regra geral de tratamento justo e equitativo, que é declarada como um princípio de não-discriminação, ou de igualdade formal perante a lei a favor do investidor estrangeiro em relação ao tratamento que seja dado a um investidor nacional.
A leitura dessa cláusula feita pelos tribunais arbitrais foi alargando o princípio da igualdade formal, e configurando gradualmente uma espécie de garantia de estabilidade absoluta dos marcos jurídicos levados em conta pelo investidor no momento de decidir o negócio. Assim, entende-se como incluída na noção de tratamento justo a preservação das expectativas legítimas do investidor quanto ao comportamento do Estado receptor do investimento. É uma noção ambígua e subjetiva que excede o conceito mais claro de confiança legítima, que orienta a figura dos atos próprios dos Estados no direito internacional público.55. Para uma crítica jurídica detalhada e baseada em princípios de direito internacional, interpretação extensiva do princípio de tratamento justo e equitativo e conceito de expectativas legítimas do investidor em precedentes de arbitragem do CIADI, consultar o voto separado do árbitro Pedro Nikken, na decisão sobre a responsabilidade no caso Centro Internacional de Arreglo de Diferencias Relativas a Inversiones (CIADI), Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal, S.A. Y La República Argentina, caso n. ARB/03/19, 22 de octubre de 2007. O conceito de expectativas legítimas do investidor funciona como um parâmetro para analisar a razoabilidade das políticas e normas decorrentes do exercício dos poderes regulatórios do Estado, permitindo impugnar aquelas que podem mudar ou alterar as condições de mercado e as expectativas de rentabilidade, consideradas no momento inicial do investimento.
A incidência nessas expectativas de lucro se assemelha a uma desapropriação indireta (taking of property), possibilitando pedidos indenizatórios. Esse conceito de desapropriação indireta permite que um investidor questione normas jurídicas ou políticas gerais dos Estados, no âmbito nacional, em temas ambientais, de serviço social, de saúde, que possam como resultado afetar as expectativas de ganhos definidas pela empresa no momento de decidir sobre o investimento no país receptor.66. David Schneiderman, “Investing in Democracy. Political process and international investment law,” University of Toronto Law Journal 60, no. 4 (2010): 909–940. Essa leitura da cláusula de tratamento justo e o conceito de desapropriação indireta impõe fortes restrições aos poderes regulatórios dos Estados, já que estes jamais poderão prever as situações sociais e econômicas supervenientes ao recebimento do investimento, ou que ocorram durante a operação, de modo a garantir a inviolabilidade do ambiente jurídico e econômico em que se desenvolve um projeto. Além disso, os Estados têm o dever de preservar interesses sociais imperativos em cenários de crise ou situações de emergência, de modo que frequentemente devem implementar políticas públicas ou impor regulamentos que podem mudar o cenário inicial do investimento.
A partir de uma interpretação exorbitante, a cláusula de tratamento justo e equitativo torna-se uma cláusula de estabilização, que busca imobilizar os marcos regulatórios e até mesmo as políticas públicas nacionais. Essa leitura excede consideravelmente o princípio básico de igualdade perante a lei entre nacionais e estrangeiros do direito internacional público; pois, à luz da interpretação ampla utilizada nas decisões arbitrais, parece mais uma regra de tratamento preferencial, consistindo em blindar o investidor estrangeiro diante de qualquer alteração de política pública ou do marco jurídico vinculante e obrigatório para os cidadãos e empresas nacionais. Ao invés de ser uma regra de igual proteção, torna-se um privilégio diferenciado.
Os princípios de tratamento justo e de desapropriação indireta têm como base a proteção da empresa investidora diante de normativas não-razoáveis ou arbitrárias, que, por exemplo, proíbam abruptamente e sem justificativa atividades anteriormente autorizadas, ou que alterem desproporcionalmente regras de impostos ou ambientais existentes. Tal como a noção de tratamento justo e equitativo, o conceito de desapropriação indireta garante que não seja alterado arbitrariamente o marco jurídico estatal considerado no momento de iniciar o negócio, de modo que exige sempre um exame da ponderação da razoabilidade das medidas impugnadas. No entanto, a interpretação realizada pelos organismos responsáveis pela aplicação da normativa, com forte viés pró-empresas, termina praticamente eliminando o requisito de arbitrariedade e impondo uma espécie de direito à permanência inviolável do marco jurídico predeterminado, independentemente de mudanças nos cenários, situações excepcionais de crise ou de emergência e as funções sociais dos Estados.77. Pia Eberhardt, Investment Protection at a Crossroads: The TTIP and the future of International Investment Law (Berlin: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2013), acesso em julho de 2015, http://library.fes.de/pdf-files/iez/global/10875.pdf. Além disso, os órgãos do regime de investimento são refratários aos argumentos baseados em obrigações constitucionais ou de direitos humanos.88. Nos últimos anos, alguns estudos desenvolveram sólidos argumentos de direito internacional sobre o dever jurídico de que os painéis de arbitragem do regime de investimento, ao examinar os princípios-chave de tratamento justo e equitativo e desapropriação indireta, levem em consideração as obrigações dos Estados de proteção aos direitos humanos. Não se trata de excluir o cumprimento das obrigações internacionais em normas internas, mas compatibilizar as várias fontes internacionais. Esse tipo de análise também pode ser visto como exercícios de interlegalidade, buscando modificar aspectos da abordagem do regime de investimentos para torná-lo permeável a princípios do regime de direitos humanos, de modo a proteger as margens de soberania do Estado e poderes regulatórios para a preservação de direitos civis e sociais. Ver a esse respeito: Juan Pablo Bohoslavsky y Juan Bautista Justo, Protección del derecho humano al agua y arbitrajes de inversión (Santiago: CEPAL, 2010).
As pessoas e comunidades cujos interesses diretos são afetados por essas disputas, como os usuários dos serviços prestados pelas empresas investidoras ou os beneficiários das regulações questionadas pelos investidores, não podem participar desses mecanismos, os quais limitam a controvérsia entre as empresas e o Estado. O caso sul-africano evidencia o conflito entre as políticas de igualdade, como estratégia para a reestruturação das relações econômicas e sociais segregadas, e as regras de tratamento justo e equitativo e desapropriação indireta do regime de investimento, que reduzem e condicionam os poderes regulatórios dos Estados.
Um tema de especial relevância é o conflito entre o regime de investimento e os direitos dos usuários dos serviços públicos. Um caso ilustrativo ocorreu na Argentina, após a crise de 2001, quando o governo de transição congelou as tarifas de serviços públicos domiciliares (água, saneamento, gás, eletricidade). O objetivo anunciado foi de preservar a cesta básica no contexto da crise econômica e social, frente ao aumento acentuado dos níveis de pobreza e indigência. Esse congelamento, combinado com a forte desvalorização da moeda local, afetou diretamente as expectativas de receita em dólares de empresas de concessionárias de serviços, que enviavam remessas em moeda para suas matrizes. Isso representou uma mudança no marco regulatório levado em conta no momento do acordo para o ingresso no negócio, que pressupunha uma atualização periódica do valor da tarifa de acordo com a variação dos custos das empresas. A empresa Suez, responsável pelo serviço de água e esgoto na província de Buenos Aires, acionou o Centro de Arbitragem do Banco Mundial-CIADI, citando o acordo bilateral sobre a proteção do investimento estrangeiro que o governo argentino havia assinado com a França.
Neste caso colocou-se um conflito jurídico semelhante ao caso da África do Sul. Se o Estado queria garantir aos usuários o acesso ao serviço público, especialmente para os setores da população que demandam maior proteção do Estado em contextos de crise, isso necessariamente afetaria a equação econômico-financeira da empresa investidora. Portanto, causaria uma lesão ao direito de propriedade no sentido quase absoluto, considerando a forma como esse direito é compreendido pelo regime de investimento, de modo que essa empresa poderia requerer a consequente reparação econômica por meio dos mecanismos previstos no TBI. Mas se o Estado negligenciasse os direitos dos usuários de acesso ao serviço, poderia ser responsabilizado por transgredir legislações ou normas constitucionais nacionais em tribunais locais, e mesmo demandado em órgãos do regime de direitos humanos. A pluralidade de regimes e autonomia entre eles faz com que as empresas busquem os fóruns mais favoráveis para influenciar políticas que lhes afetem. Ao escolher o fórum, determinam-se a perspectiva e o marco jurídico com base nos quais a controvérsia será analisada.
Um aspecto relevante do caso Suez é que um grupo de organizações de usuários e de direitos humanos se apresentou perante o CIADI, sob a forma de amicus curiae, para apresentar uma defesa da política de congelamento de preços do governo, argumentando que tal política buscava proteger os interesses e direitos dos usuários do serviço de água e que também era legitimada pelas normas de direitos humanos e constitucionais, as quais impunham ao Estado a adoção de medidas específicas para aliviar os efeitos da crise econômica sobre a população em situação de pobreza e indigência. A forma de apresentação foi uma petição de amicus curiae, pois o procedimento do CIADI não prevê expressamente que outras pessoas além das empresas e do Estado possam participar das controvérsias, nem serem ouvidas.
“Poucos casos de cruzamento de fóruns são desenvolvidos por um setor minoritário de organizações sociais, que se movem entre as diferentes instâncias como ‘ativistas anfíbios’ ”
Nesse caso, o painel de arbitragem aceitou a apresentação de amicus curiae, sustentando que embora o conflito se referisse principalmente ao investimento realizado pela empresa, o Estado tinha alterado a regulamentação de determinada maneira, considerando o interesse público envolvido no serviço de água e saneamento para uma população socialmente vulnerável. Foi o primeiro precedente de aceitação de terceiros em um litígio no CIADI, o que significa uma mudança muito importante na tradicional opacidade e isolamento do mecanismo arbitral, ainda que a decisão final não tenha ponderado sobre os argumentos apresentados pelos terceiros e tenha considerado ilícita a regulamentação estatal contestada pela empresa.99. Em outro caso posterior, sobre re-nacionalização do serviço de água potável na Tanzânia, um grupo de organizações se apresentou como amicus curiae, explicando as implicações dos direitos humanos no caso; na decisão final não foi ponderado se havia alguma relação entre o direito fundamental de acesso à água potável, a rescisão do contrato e os direitos do investidor. Ver: Centro Internacional de Arreglo de Diferencias Relativas a Inversiones (CIADI), Biwater Gauff vs. Tanzania, caso n. ARB/05/22, laudo del 24 de julio de 2008.
Um ponto chave para a análise das petições das organizações sociais, em relação à questão da autonomia dos regimes globais privados1010. Santos denomina “regulação transnacional do comércio” e considera como expressão de um renascimento de uma nova lex mercatoria, como “direito próprio do capitalismo global”, caracterizada como uma forma de direito não-estatal, e um campo importante de justiça privada, que envolve a arbitragem comercial internacional, a OMC e outros processos institucionais mais ou menos ocultos, por meio dos quais as relações comerciais transnacionais são conduzidas (Boaventura de Sousa Santos, Toward a New Common Sense: Law Science and Politics in Paradigmatic Transition (New York: Routledge, 1995). destacados por Teubner,1111. Gunther Teubner, “Regímenes Globales Privados: ¿Derecho Neoespontáneo y Constitución Dual de Sectores Autónomos?,” en Estado, Soberanía y Globalización, de Gunther Teubner, Saskia Sassen y Stephen Krasner (Bogotá: Siglo del Hombre, 2010). é que essas petições utilizam a linguagem e os conceitos jurídicos do regime de investimentos, buscando vincular uma ordem jurídica a outra. As organizações fazem um esforço para “traduzir” e “adaptar” problemas de direitos sociais, para que eles sejam compreendidos na linguagem e com as abordagens e modelos conceituais do regime de investimento. Nesse sentido, questionam o alcance que os painéis do CIADI, e em geral o regime de investimento, conferem ao conceito de tratamento justo e equitativo e desapropriação indireta. Elas argumentam que a interpretação ampla desses conceitos reduz as margens de regulamentação estatal nos assuntos públicos que envolvem direitos.1212. Centro Internacional de Arreglo de Diferencias Relativas a Inversiones (CIADI), Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal, S.A. Y La República Argentina, caso n. ARB/03/19, febrero 2007. Petição como amicus curiae do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), Asociación Civil por la Igualdad y la Justicia (ACIJ), Consumidores Libres Cooperativa Ltda. de Provisión de Servicios de Acción Comunitaria Unión de Usuarios y Consumidores, Center for International Environmental Law (CIEL). Além disso, para uma crítica detalhada da interpretação extensiva do princípio de tratamento justo e equitativo, sua leitura abrangente de um direito à estabilidade do marco regulatório com o consequente detrimento do poder estatal regulatório e aplicação inadequada da “legítima expectativa do investidor” como parâmetro de razoabilidade, ver o voto separado do árbitro Pedro Nikken, na decisão sobre a responsabilidade do caso Suez c. Argentina. Em suma, não alegam que o regime de investimento seja sobreposto pelo regime de direitos humanos, mas que certos conceitos do regime de investimento devem ser ajustados de acordo com uma interpretação harmonizadora que incorpore as obrigações internacionais dos Estados.
Esses poucos casos de cruzamento de fóruns são desenvolvidos por um setor minoritário de organizações sociais, que se movem entre as diferentes instâncias como “ativistas anfíbios”, com certa plasticidade para adequar a descrição dos problemas e as configurações fáticas e jurídicas à linguagem necessária para argumentar em um território hostil. Embora essas experiências não tenham em princípio suficiente densidade para construir pontes sólidas entre regimes que funcionam de modo contraposto e autônomo, elas determinam pontos de contato incipientes que poderiam ser explorados e investigados em maior profundidade, inclusive sob o conceito de “interlegalidade” desenvolvido por Sousa Santos.
Uma estratégia de internacionalização de conflitos, inversa a das empresas transnacionais no regime de investimento, é o litígio de casos coletivos que impulsionam as comunidades locais afetadas em seus direitos ambientais, sociais e culturais, nas instâncias do regime de direitos humanos. Trata-se também, em nossa opinião, da busca de um fórum global mais favorável, ou seja, que modifique as relações de poder locais em que predominam os interesses das empresas. Em tais casos, o apelo ao regime de direitos humanos pretende reforçar os deveres do Estado de proteção, refletidos em termos de regulamentação e supervisão das atividades das empresas privadas que desenvolvem projetos de investimento extrativistas no território das comunidades afetadas. Vários países da América Latina atraíram investidores do setor de petrolífero e de mineração, criando marcos regulatórios e assinando contratos de concessão, que respondem a modelos padronizados ajustados às necessidades do capital transnacional.
O desenvolvimento desse tipo de contrato pode ser enquadrado no que Teubner denomina regimes globais privados. Isso seria assim, em nossa opinião, porque o modelo de contrato contém elementos comuns nos diversos países receptores de investimento e são condicionantes para o investimento estrangeiro. Esse tipo de contrato, geralmente acompanhado de leis de mineração também padronizadas, limitam o controle do Estado na atividade, delegam às empresas funções de monitoramento ambiental e gestão de conflitos com comunidades locais afetadas e protegem com sigilo aspectos-chave do processo de extração, o que dificulta a implementação de mecanismos de consulta e facilita evasão do controle político e social dos empreendimentos.
“Alguns governos têm defendido com argumentos nacionalistas suas concessões mineiras, dissimulando o conflito entre grandes empresas e comunidades locais”
Em muitos casos, além das empresas transnacionais que entram na exploração de projetos extrativistas em territórios indígenas, adiciona-se a proteção garantida pelo regime de investimento estrangeiro, com seu fórum favorável para eventuais disputas e seu efeito inibidor das regulamentações invasivas às expectativas de lucro das empresas. Em paralelo, o regime de direitos humanos estabelece obrigações estatais de consulta e busca de consenso com as comunidades potencialmente afetadas, em particular comunidades e povos indígenas em territórios coletivos; tenta evitar medidas que levam ao deslocamento massivo de populações; e desenvolve de forma incipiente princípios que visam a proteção cautelar ou preventiva dos direitos.1313. Ver, por exemplo Corte IDH, Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam 2007; Corte IDH, Cuatro Comunidades Indígenas Ngöbe y sus Miembros, 2010; Corte IDH, Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay, 2006; a Corte IDH expôs em obiter dictum que o Paraguai não poderia invocar um TBI para justificar uma atividade que violaria a Convenção Americana (no caso, afetava direitos culturais e econômicos em território coletivo indígena), configurando uma espécie de prioridade da obrigação de direitos humanos em relação ao acordo de investimento estrangeiro.
O ponto de tensão é claro, pois enquanto um regime regulatório conduz em termos gerais para a desregulamentação e a autolimitação das funções de controle estatal, o outro regime impõe pesados deveres de intervenção na regulamentação e controle da atividade das empresas. Em vários conflitos, as comunidades locais indígenas, camponesas e negras têm recorrido a mecanismos internacionais de direitos humanos, tais como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos ou comitês da ONU, para exigir o respeito de seus direitos coletivos, enfatizar os deveres de regulamentação dos Estados e, em termos políticos, contrapor a pressão que as grandes empresas transnacionais de mineração exercem sobre os Estados.1414. Há também diretrizes e políticas operacionais das Instituições Financeiras Internacionais sobre essas questões. Por exemplo, há, no Banco Mundial, a respeito de projetos financiados pelo banco. Assim, outra experiência semelhante de cruzamento de fóruns são as apresentações de organizações sociais, sindicais, indígenas e ambientais em Painéis de Inspeção do Banco Mundial, em que são supervisionadas as políticas e normas do próprio banco, e perante o ombudsman da Cooperação Financeira Internacional. Nesse fórum, governado pelo regime das instituições financeiras, os ativistas traduzem conflitos de direitos em potenciais violações das diretrizes e políticas operacionais do banco, e discutem falhas nos processos de supervisão dos agentes locais da entidade durante a execução de programas e projetos financiados pelo banco. Por essa via oblíqua, o painel tem estudado casos de deslocamentos da população e danos ambientais por projetos de infraestrutura, planos de reforma agrária e problemas de acesso à terra, o desinvestimento de programas sociais garantidos sob empréstimos de ajuste estrutural, inadequação de procedimentos estatais de consulta e participação de comunidades locais afetadas, déficit de transparência dos projetos, entre outros temas (ver Dana Clark, Jonathan Fox y Kay Treackle, Derecho a exigir respuestas. Reclamos de la sociedad civil ante el Panel de Inspección del Banco Mundial (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2005)). A questão é controversa, porque alguns governos têm defendido com argumentos nacionalistas suas concessões mineiras, dissimulando o conflito entre grandes empresas e comunidades locais, e têm acusado grupos e redes de ativistas de atacar projetos autônomos de desenvolvimento por meio de pressão internacional. Esses governos argumentam que algumas normas internacionais sobre território indígena e proteção ambiental são excessivas e na prática funcionam como imposições dos países centrais para boicotar as estratégias de desenvolvimento dos países emergentes.1515. Ver Víctor Abramovich, “Autonomía y Subsidiariedad: El Sistema Interamericano de Derechos Humanos frente a los sistemas de justicia nacionales,” en El Derecho en América Latina. Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI, ed. César Rodríguez Garavito (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2011): 211–230; César Rodríguez Garavito, “Navegando la Globalización: un mapamundi para el estudio y la práctica del derecho en América Latina,” en El Derecho en América Latina. Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI, ed. César Rodríguez Garavito (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2011):69–86; César Rodríguez Garavito, Etnicidad.gov: Los recursos naturales, los pueblos indígenas y el derecho a la consulta previa en los campos sociales minados (Bogotá: Editora Dejusticia, 2012). O argumento é difícil de sustentar, sobretudo nos países que incorporaram esses parâmetros em seus próprios sistemas constitucionais e como resultado de recentes processos políticos de exercício da autodeterminação coletiva em emocionantes assembleias constituintes.
O regime internacional de comércio, que também apresenta graves pontos de divergência com o regime de direitos humanos, é baseado em acordos multilaterais celebrados pelos Estados no âmbito da Organização Mundial do Comércio (GATT/OMC). Seu principal objetivo é a eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias no comércio internacional. Abrange três áreas principais: o comércio de bens (GATT), de serviços (GATS) e propriedade intelectual (TRIPS). Um princípio jurídico básico desse sistema de regras é a proibição de conceder aos produtos de origem estrangeira um tratamento diferente ao dos produtos nacionais. Isso acarreta que grande parte das disputas comerciais judicializadas nesse âmbito se concentram na determinação se dois produtos são iguais, ou se competem pelo mesmo espaço de mercado ou tem a mesma utilidade para os consumidores (cláusula III do GATT). Os Estados têm uma margem para adotar medidas incompatíveis com o tratado como salvaguardas (cláusula XX do GATT), para proteger a saúde pública, a moral pública ou o ambiente; mas essas medidas são excepcionais, examinadas sob um critério restrito e exigem provas quantitativas e qualitativas para atestar sua proporcionalidade, sendo anuladas se comprovado que o mesmo objetivo poderia ser alcançado com medidas alternativas não-prejudiciais ao livre comércio e que não envolvam uma carga excessiva ou indevida para o Estado.1616. Ver, John Jackson, William Davey y Alan O Sykes, Legal Problems of International Economic Relations. Case, Materials and Text (Minnesota: West Group, 1995).
Dentre uma das principais questões de conflito que foram identificadas, podemos mencionar o tratamento que recebem, em painéis da OMC, as barreiras que alguns Estados tentam apresentar como salvaguardas para preservar bens e serviços culturais. Enquanto o regime de direitos humanos reconhece o direito à identidade e à diversidade cultural, o que foi reforçado com a Declaração da UNESCO de 2002 e o Tratado da UNESCO de 2005 sobre diversidade cultural, a OMC é refratária a essa perspectiva.
“As normas sobre propriedade intelectual (TRIPS) também entraram em tensão com algumas políticas públicas de saúde, implementadas por países emergentes para tentar reduzir o custo dos medicamentos”
Um caso relevante para discussão é a questão do Material Audiovisual na China, em que os Estados Unidos questionaram uma série de medidas chinesas que regulamentam as atividades de importação e distribuição de material impresso, de entretenimento doméstico, discos e filmes para cinema. A China justificou as medidas nos termos da cláusula XX do GATT, que permite que um país estabeleça medidas inconsistentes com o GATT, mas necessárias para proteger a moral pública. A esse respeito, a China invocou expressamente a Declaração da UNESCO de 2001, destacando que bens e serviços culturais têm uma natureza específica como veículos de identidades, valores e significados, e que não buscam somente atender às necessidades de consumo ou de comércio, mas que desempenham um papel fundamental na influência e definição de vários aspectos sociais. No Painel de Apelações, a China novamente insistiu na necessidade de considerar esses aspectos específicos dos bens e serviços culturais. Embora o Painel de Apelações não tenha analisado essa característica particular dos bens envolvidos no caso, foi admitido que a exceção de moral pública poderia ser invocada para justificar medidas incompatíveis com o GATT em relação a bens e serviços culturais. Ao analisar as medidas impostas pela China, foi considerado que elas não eram justificas sob a cláusula de salvaguarda, pois haviam outras medidas possíveis que seriam menos prejudiciais à livre circulação de bens, como uma revisão periódica do material que era importado, tal como havia sido proposto pelos Estados Unidos.
Apesar da China ter perdido essa demanda, para analistas da jurisprudência do GATT essa decisão possibilita que no futuro essa exceção (moral pública) possa ser usada moderadamente a respeito de serviços e bens culturais. Isso também mostrou a potencial utilização da normativa da UNESCO para argumentar no âmbito do regime da OMC. No entanto, a maioria das análises aponta as limitações evidentes do sistema de resolução de controvérsias da OMC em apresentar maior flexibilidade e abertura diante de questões relacionadas com bens e serviços culturais. São destacadas principalmente a dificuldade de definir de maneira precisa e objetiva o valor ou significado cultural de determinados bens e de mensurar, com parâmetros quantitativos e qualitativos habituais nesse mecanismo, o potencial efeito ou impacto das medidas em litígio. Se um Estado pretende demonstrar a necessidade de restringir ou condicionar a entrada de determinados bens em seu território para preservar interesses ou valores relacionados com a reprodução da cultura local, identidades culturais ou formas características de expressão cultural de uma comunidade local, enfrentará sérias dificuldades para produzir evidências empíricas que cumpram os padrões ordinários de prova desse mecanismo.
As normas sobre propriedade intelectual (TRIPS) também entraram em tensão com algumas políticas públicas de saúde, implementadas por países emergentes para tentar reduzir o custo dos medicamentos e garantir maior acesso em períodos de emergência. Por exemplo, as grandes empresas farmacêuticas, com o apoio dos países centrais provocaram uma batalha no âmbito da OMC, no início dos anos 2000, contra a África do Sul e o Brasil para impugnar a política de medicamentos genéricos. Os governos justificaram suas políticas com base nas obrigações impostas não somente por suas respectivas legislações nacionais, mas também pelo regime de direitos humanos, que consagra o direito fundamental à saúde pública. As empresas transnacionais de medicamentos expuseram que as políticas locais violariam a normativa da OMC sobre direitos de patentes e propriedade intelectual. De um lado argumentos com base nos direitos sociais e, do outro, argumentos baseados na defesa irrestrita da propriedade. Nesse conflito, de forma semelhante ao caso de Suez sobre água e propriedade, houve uma forte aliança entre organizações sociais locais e globais e os Estados nacionais, para defender o poder regulatório do Estado e enfrentar a pressão das grandes empresas farmacêuticas e dos países centrais. Alguns autores consideraram esse exemplo como uma expressão de novas formas de ativismo global em cenários não-tradicionais, descrevendo o potencial de um conjunto de relações complexas entre Estados e organizações sociais, que podem combinar fiscalização e denúncia, com ações de cooperação.1717. Paul Nelson y Ellen Dorsey, “New Rights Advocacy in a Global Public Domain,” European Journal of International Relations 13, n. 2 (2007): 187–216.
A partir desses poucos exemplos mencionados podemos concluir preliminarmente que o pluralismo jurídico global tem, como uma de suas consequências mais relevantes, não apenas a limitação da soberania vestfaliana, mas também os obstáculos e restrições impostos ao exercício da soberania nacional, entendida como o exercício do poder político no espaço nacional. Constatamos que esses regimes globais propõem aos Estados mandatos jurídicos contrapostos, que respondem a abordagens e pontos de partida diametralmente opostos para examinar o mesmo conflito. Os regimes internacionais de orientação de mercado funcionam como fóruns para impugnar regulamentações sociais, inibem e condicionam o desenvolvimento do direito social de cunho constitucional em países sul-americanos e em outros países emergentes. Neste texto, discutimos de maneira esquemática como algumas dessas controvérsias são apresentadas: ações afirmativas vs. igualdade formal de investidores nacionais e estrangeiros; segurança jurídica para o investidor vs. direito à água e acesso a serviços públicos; atividade extrativista vs. direitos culturais coletivos; liberdade de comércio vs. a preservação da diversidade cultural; acesso a medicamentos vs. propriedade de patentes.
“Não existem regras consensuadas para solucionar os conflitos normativos, nem instituições internacionais que tenham competências formalmente atribuídas para resolvê-los”
Trata-se, no entanto, de uma problemática bastante complexa e repleta de diferentes matizes, na qual a pesquisa jurídica deveria se aprofundar a fim de especificar as disputas e tornar visíveis os principais pontos de conflito, mas também as possíveis conexões ou sobreposições entre os diferentes regimes. Neste artigo apresentamos brevemente alguns esforços para introduzir considerações sobre deveres de proteção de direitos humanos em regimes econômicos e o uso incipiente de uma hermenêutica que procura “harmonizar” os diferentes sistemas jurídicos. Apesar disso, entendemos que um núcleo quase irredutível dessa contradição é a diferente expectativa sobre a função estatal na regulamentação das relações econômicas. O problema geral resulta do pluralismo jurídico global autônomo e fragmentado, poderia ser apresentado da seguinte maneira: alguns regimes, como o regime de direitos humanos, ampliam o espaço público, desenvolvem obrigações estatais positivas de proteção e garantia de direitos e exigem maior intervenção do Estado na atividade econômica e nos mercados, expandindo o alcance das competências regulatórias e, correlativamente, da responsabilidade indireta do Estado pela ação de atores privados, como as grandes empresas. Enquanto outros regimes, tais como o regime de investimento e o regime internacional de comércio, por sua história, seus atores e suas lógicas de intervenção, conduzem a uma limitação do poder estatal de regulamentar e fiscalizar, ampliando a autonomia contratual e desregulamentação dos mercados e da atividade econômica.
Diante dessa contradição, não existem regras consensuadas para solucionar os conflitos normativos, nem instituições internacionais que tenham competências formalmente atribuídas para resolvê-los.
Os diferentes atores, empresas transnacionais e comunidades locais afetadas e suas redes de ativismo global, buscam um fórum mais favorável dentro da constelação jurídica internacional para apresentar suas demandas e proteger seus interesses. Geralmente situam os Estados no centro do conflito, seja como garantidores de direitos, seja como guardiões da propriedade e segurança jurídica, colocando-os em um espaço de fogo cruzado. Em alguns casos, ativistas sociais e acadêmicos “anfíbios” envidam esforços para cruzar os diversos ambientes e ajustar as interpretações jurídicas aos princípios de harmonização. Algumas outras discussões globais, como a que se refere a processos de reestruturação da dívida soberana e práticas abusivas dos fundos de investimento, também revelam disputas sobre a definição do regime internacional dominante: ou o regime privado de mercado de capitais, definido por atores econômicos globais, com sua lógica de autonomia e desnacionalização que é imposta nos espaços locais; ou um regime multilateral no âmbito formal das Nações Unidas, sujeito a normas de direito internacional público, em que os Estados recuperam a autoridade para definir as regras do jogo.