O trabalho de defesa de direitos humanos realizado por organizações de direitos humanos, principalmente na América Latina, foi e está sendo desafiado atualmente por um contexto externo de crise global relacionada à Covid e aos impactos que ainda nos atingem, mas também, e muito importante, por situações internas relacionadas à estrutura, capacidade e saúde organizacional. Nesta breve reflexão institucional da Conectas, são compartilhados os desafios, as lições aprendidas e principalmente, as ações concretas que foram implementadas nos últimos anos dentro da organização para fortalecê-la institucionalmente e garantir a segurança e bem-estar das pessoas da equipe; Para tanto, foi e ainda é necessário assumir os erros do caminho, reconhecer a prioridade do cuidado e da saúde da equipe e finalmente avaliar as implicações deste processo nas relações tanto com parceiros quanto com financiadores.
Se este artigo tivesse sido escrito há alguns anos, ele poderia ter traçado um quadro bastante desolador. Eventos e tendências específicos do terceiro setor, e do mundo de modo geral, trouxeram subitamente algumas mudanças na forma como organizações não governamentais (ONG), bem como suas financiadoras e financiadores, abordam questões atreladas ao desenvolvimento institucional. E para melhor!
O que eu gostaria de compartilhar neste texto não são dados e achados extraídos de pesquisas. Em vez disso, quero trazer algumas reflexões e observações sobre a minha experiência como consultora de desenvolvimento institucional em diversas ONGs em São Paulo, principalmente durante a minha atuação como coordenadora de desenvolvimento institucional (de 2012 a 2015) e diretora (desde 2020) na Conectas Direitos Humanos, uma organização de direitos humanos com sede em São Paulo.
Ao longo dos últimos anos, fui testemunha de uma mudança súbita, porém profunda, na forma como as organizações olham e lidam com o desenvolvimento institucional, principalmente no que diz respeito a assuntos como gestão de pessoas e clima organizacional. Profunda porque eu acredito (eu espero) que as novidades aqui descritas são irreversíveis e continuarão produzindo efeito ao longo dos anos. Súbita porque elas podem parecer pequenas aos olhares externos, mas, na verdade, estão balançando as estruturas de poder (internas e externas) que prevaleceram por tanto tempo no terceiro setor. Creio (e anseio) que essas transformações estejam promovendo novas maneiras de olhar para a gestão de pessoas, o desenvolvimento de carreiras, os modelos de trabalho e a cultura organizacional. Tais modelos estão alicerçados nos valores da organização e nos perfis coletivo e individuais de cada integrante, e não nos modelos existentes frequentemente inspirados no mundo corporativo.
Na Conectas, essa mudança foi impulsionada e estruturada a partir de um forte desejo da liderança da organização – principalmente da Diretora Executiva, Juana Kweitel, da Diretora Adjunta, Camila Asano, e do Diretor Adjunto, Marcos Fuchs – de torná-la melhor, de fazer as coisas de um jeito diferente. Essa liderança constatou que as pessoas devem vir em primeiro lugar e que o cuidado e o bem-estar são primordiais. Por esse motivo, começaram a agir.
Eu não quero inferir de forma alguma que nós chegamos ao fim dessa jornada ou que nós encontramos uma solução para todos os problemas existentes no terceiro setor no âmbito da administração e da cultura organizacional. Muito pelo contrário, podemos apenas ter acabado de encontrar o caminho para o início da nossa travessia. Estamos desvendando questões importantes e relevantes para o nosso trabalho e para a nossa sustentabilidade: aprendemos que nossas instituições estão impregnadas pelo racismo estrutural que tentamos combater; fomos forçados a admitir que há colegas com sobrecarga de trabalho e remuneração insuficiente; tivemos de enfrentar o fato de que nem sempre os valores por nós defendidos são o que orienta nossos processos internos. E por mais doloroso que isso seja, identificar o problema é um primeiro passo para resolvê-lo.
Não farei uma análise social e histórica dos elementos que abriram o caminho para a transformação. Outras pessoas o farão de uma forma melhor e mais precisa. Conforme habilmente detalhado em um artigo do The Intercept,11. Ryan Grim, "Elephant in the Zoom." The Intercept, 13 de junho de 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://theintercept.com/2022/06/13/progressive-organizing-infighting-callout-culture/. abuso, desigualdades dentro das equipes, falta de transparência nas políticas salariais, conflitos internos, esgotamento físico e mental, cultura de cancelamento, discriminação racial e de gênero são questões que há anos atormentam organizações de advocacy e que possivelmente foram agravadas pela pandemia de Covid-19. Tais problemas vêm sendo discutidos e enfrentados pela maioria das organizações.
De fato, por muito tempo, como seria ou deveria ser esperado, as ONGs concentraram a atenção e os recursos nos efeitos que elas poderiam ter no mundo: o impacto na vida das pessoas; a capacidade de instigar a mudança; o poder de educar, influenciar e mobilizar. E muitas vezes, embora nem sempre, focar assuntos internos – bem-estar, desenvolvimento, remuneração, planos de carreira, políticas e processos institucionais da equipe – soava como um desvio da missão principal da organização, a perda de um tempo precioso e de recursos escassos.
Além disso, durante um bom tempo, a forma de financiamento – baseada em projetos de curto prazo, com forte ênfase nos “beneficiários finais” – estimulou esse tipo de pensamento. Logo, era difícil incluir no orçamento tudo que não gerasse um impacto direto nas populações-alvo ou que proporcionasse a conquista dos objetivos finais.
Mas é certo que as coisas estão começando a mudar lentamente. Algumas dessas mudanças foram motivadas pelo reconhecimento cruel de que nossas instituições, lamentavelmente, não estão imunes aos males que tentamos combater. A Conectas recebeu algumas denúncias de racismo e, como consequência, deu início a um vasto processo para revelar nossos preconceitos inconscientes. Comprometidas/os com a maior diversidade racial em todos os níveis da organização, reformulamos nossos processos seletivos e analisamos as oportunidades de desenvolvimento de carreira, entre outras ações. O combate ao racismo agora está presente em todos os aspectos institucionais da organização.22. Maryuri Mora Grisales, “Sur 28: a dívida do movimento de direitos humanos no combate ao racismo: A edição que continua mudando estruturalmente a Sur.” Revista Periferias 6, abril de 2021, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://revistaperiferias.org/materia/sur-28-a-divida-do-movimento-de-direitos-humanos-com-o-combate-ao-racismo/.
Ao longo dos últimos anos, em um contexto de grande adversidade política, também tivemos de reconhecer que havia gente em nossa equipe sofrendo com depressão e ansiedade, e que talvez as suas identidades como trabalhadoras/es de ONG e ativistas de direitos humanos pudessem ter alguma ligação com isso.
Por ser uma profissional do segmento de desenvolvimento institucional, costumo sentir a falta de um roteiro para alguns dos problemas com os quais me deparo: como organizações de pequeno e médio porte como a Conectas podem criar espaço para que todas as colaboradoras e colaboradores cresçam e desenvolvam suas carreiras? Quais são os mecanismos ou processos corretos que podem nos ajudar a evitar atos de racismo ou de discriminação? Qual é a plataforma correta para receber denúncias e proporcionar uma rápida resolução? Como as organizações garantem a segurança de suas equipes sem que isso limite nosso trabalho? E a lista não para aqui.
Uma das principais descobertas que fizemos nos últimos anos é que as organizações não têm nada se elas não contarem com um grupo de pessoas comprometidas e dedicadas à sua missão. Logo, concluímos que o bem-estar físico e mental da equipe é de suma importância para uma organização como a Conectas. As organizações de direitos humanos estão repletas de profissionais que acreditam ser possível alcançar uma sociedade melhor e mais justa. Essas pessoas são altamente qualificadas e competentes, conscientes dos desafios e obstáculos que enfrentam. No Brasil, sob um governo antidemocrático e em vista da pandemia de Covid, os últimos anos têm sido bastante desafiadores. Na figura de uma instituição, é importante para nós reconhecer o fato de que trabalhamos em ambientes complexos e estressantes e nos debruçamos sobre questões que podem, às vezes, ser intimidadoras. Também é importante mostrar que nos preocupamos tanto com o bem-estar coletivo quanto com o bem-estar individual, além de nos empenharmos para criar uma cultura por meio da qual possamos compartilhar nossas dúvidas e preocupações e celebrar nossas vitórias.
Na Conectas, optamos pela “cultura do cuidado” como um novo princípio institucional em 2021.33. Ana María Hernández Cárdenas e Nallely Guadalupe Tello Méndez, "Self-care as a political strategy: Sustainability and well-being for women human rights defenders," Sur Journal 26 (dezembro de 2017), acesso em 31 de dezembro de 2022, https://sur.conectas.org/en/self-care-as-a-political-strategy/. Este artigo tornou-se uma referência importante, despertou debates internos e possibilitou a articulação com contatos externos, marcando o início de um processo de aprendizagem institucional que colocou o cuidado e o autocuidado no centro da organização. Por trás dessa escolha estava uma decisão deliberada tomada por todos nós, a qual, resumidamente, implicava que deveríamos nos tratar mutuamente com gentileza dentro do contexto de uma pandemia global que trouxe angústia e tristeza, vivenciadas por cada pessoa de forma diferente. Desde então, temos dispensado cuidado no nosso trato da seguinte forma:
A área de desenvolvimento institucional deve contribuir para um ambiente de trabalho com propósito e estimulante. Há vezes em que algumas das etapas descritas anteriormente exigem um certo investimento, mas há outras em que a mudança precisa apenas de tempo e boa vontade. Por exemplo, um formulário do Google pode ser a solução quando você quiser saber como anda a equipe. A criação de grupos de trabalho transversais pode ajudar a reunir as pessoas em prol de assuntos relevantes para toda a organização, e não apenas para a área em que elas atuam ou em torno de um programa específico.
Ao longo dos últimos anos, colegas expressaram suas palavras de gratidão pelo fato de a Conectas ter se empenhado para demonstrar “atenção, cuidado e abertura com a equipe”, “criado espaço para trocas reais e sinceras”, “estado sempre atenta ao bem-estar das pessoas”. Sabemos que ainda temos um longo caminho a seguir, mas tais palavras nos confortam e indicam que estamos na direção certa.
Meu desejo é que organizações como a Conectas possam ajudar a pavimentar o caminho de melhores práticas na área de desenvolvimento institucional. Ao atravessar contextos cada vez mais adversos e em rápida transformação, acredito que seremos capazes de defender o que mais nos importa: a convicção de que um mundo melhor é possível; a capacidade de mudar, adaptar e aprender com nossos erros; a capacidade de ouvir o outro, principalmente quando discordamos, e a capacidade de construir ambientes de trabalho que reflitam nossos ideais.
Independentemente do porte ou da atuação de uma organização, eu realmente acredito que abordar essas questões interna e externamente – com organizações parceiras e com quem financia – constitui um dever ético. Sabemos que não são conversas fáceis e que isso requer, no mínimo, tempo e dedicação. Mas não ter esse tipo de discussão é bem pior. A construção de um mundo melhor começa em casa, e devemos isso a nós e às instituições que estamos edificando e nas quais acreditamos. Assim sendo, precisamos aprimorar nossas práticas institucionais e preparar o caminho para ambientes de trabalho melhores, mais saudáveis e mais sustentáveis.