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Dilemas jurídicos no controle dos discursos de ódio11. Esta versão é um fragmento do artigo de mesmo nome, publicado no livro El límite democrático de las expresiones de odio, coords. Víctor Abramovich, María José Guembe y María Capurro Robles (Ciudad de Buenos Aires: editorial Tesseo y Universidad Nacional de Lanus, 2021): 17-57, disponível em: https://www.teseopress.com/ellimitedemocraticodelasexpresionesdeodio/.

Víctor Abramovich

Discriminação, liberdade de expressão e regulação estatal

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RESUMO

Regulamentar o discurso do ódio, como ameaça à dignidade humana, à convivência pacífica e à democracia, é uma responsabilidade do Estado protegida por padrões internacionais. Entretanto, o cumprimento deste mandato de ação enfrenta um dilema jurídico: por um lado, os princípios constitucionais de igualdade e não discriminação e, por outro, os princípios legais que protegem a liberdade de expressão e impõem a proibição da censura prévia. O texto examina esta aparente contradição e oferece algumas diretrizes para orientar a resposta do Estado a este tipo de discurso, a fim de ampliar a cidadania e garantir o debate público.

Palavras-Chave

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Introdução

Os discursos discriminatórios contribuem para reafirmar estigmas que afetam diferentes setores sociais. Isso se agravou, desde o início do século, com o surgimento de grupos políticos que constroem identidades a partir de expressões de ódio sustentadas em visões autoritárias sobre questões como migração, segurança pública, modelos de família e sexualidade e identidades de gênero, entre outros assuntos.

No âmbito jurídico, os Estados-nação enfrentam certas tensões decorrentes da imposição de mandatos de atuação aparentemente contraditórios. Por um lado, os princípios constitucionais sobre igualdade e não discriminação exigem que eles intervenham e restrinjam a circulação de discursos de ódio violentos e estigmatizantes. Por outro, os princípios jurídicos que protegem a liberdade de expressão impõem a proibição da censura prévia, delimitam o poder de regular conteúdo e demarcam a imputação de responsabilidades penais e civis pelos discursos sobre temas de interesse público.

Neste artigo, nos propomos a examinar essa aparente contradição. Para tanto, começaremos com uma breve descrição das transformações produzidas no âmbito dos direitos à igualdade e à liberdade de expressão nos regimes internacionais de direitos humanos, a fim de oferecer algumas diretrizes que orientem a resposta estatal ante a esse tipo de declarações hostis.

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1. A evolução do direito à igualdade e a prevenção da violência discriminatória

Com base no princípio da igualdade substancial ou positiva, os Estados são obrigados a definir políticas e estratégias voltadas à reversão de injustiças sociais, políticas e também culturais ou de reconhecimento. Essa obrigação estatal faz com que sejam utilizadas estratégias específicas na área das políticas educacionais e culturais, e projeta suas consequências no âmbito da comunicação social, uma vez que os Estados são proibidos de promover discursos estigmatizantes, e, ademais, são obrigados a desempenhar um papel ativo para restringir, desmantelar e neutralizar a circulação deles, qualquer que seja a fonte emissora. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante “Corte IDH”) definiu os estereótipos negativos de gênero como uma preconcepção de atributos, comportamentos, características ou funções sociais que são ou deveriam ser desempenhados por homens e mulheres, respectivamente.22. Sobre o conceito de estereótipos negativos de gênero, entre outros, ver Corte IDH, González, J. e outras contra o México “Campo algodonero”, sentença de 16 de novembro de 2009 parágrafo 401, Espinoza, Gonzalez e outra contra o Peru, sentença de 20 de novembro de 2014, parágrafo 268. No âmbito de outros conflitos, a Corte IDH considerou as construções sociais de estereótipos raciais, homofóbicos ou xenófobos e sua decisiva influência no desenvolvimento de práticas enraizadas de discriminação e violência. Nesse sentido, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD, no original em inglês) impõe aos Estados a proibição e punição de declaração de incitação ao ódio racial e o dever de promover medidas imediatas e efetivas nas esferas da educação, cultura e informação para combater esses preconceitos (Artigos 4 e 7 da ICERD). Por sua vez, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) impõem a proibição legal do discurso de ódio que incite à violência contra qualquer pessoa ou grupo social (Artigo 20 do PIDCP e Artigo 13.5 da CADH). 33. A Convenção Interamericana contra toda forma de Discriminação e Intolerância, e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância estabelecem no seu artigo 4 em termos semelhantes, que: “Os Estados comprometem-se a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e manifestações de discriminação e intolerância, inclusive: ii. A publicação, circulação ou difusão, por qualquer forma e/ou meio de comunicação, inclusive a internet, de qualquer material que: a) defenda, promova ou incite o ódio, a discriminação e a intolerância; e b) tolere, justifique ou defenda atos que constituam ou tenham constituído genocídio ou crimes contra a humanidade, conforme definidos pelo Direito Internacional, ou promova ou incite a prática desses atos”.

A normativa internacional de direitos humanos vincula a construção de estigmas sociais não apenas à exclusão socioeconômica e política, mas também à exposição a riscos de violência. Nessa linha, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, reconhece (em seu Artigo 8) a existência de estereótipos e representações nos meios de comunicação e propõe, como parte das políticas de ação positiva do Estado para prevenir a violência de gênero, a intervenção na mudança desses padrões socioculturais que podem reproduzir, naturalizar ou aprofundar a desigualdade. Além disso, o Artigo 6 da Convenção de Belém do Pará estabelece que o direito de toda mulher à uma vida livre de violência abrange o direito de ser livre de todas as formas de discriminação e de ser valorizada e educada sem padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação.

Disso se conclui que, as medidas para coibir os discursos violentos de ódio contra grupos discriminados, encontram um fundamento sólido na obrigação estatal de agir com a devida diligência para evitar a materialização de riscos de violência. Isso inclui o dever legal de intervir para limitar sua circulação e, num sentido mais amplo, declarações estigmatizantes e discriminatórias. Essa obrigação positiva estatal desencadeia uma evidente tensão com as normas que regem a liberdade de expressão, segundo as quais os Estados devem se abster de estabelecer normas sobre os conteúdos discursivos a fim de salvaguardar uma deliberação pública ampla e sem restrições.

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2. A evolução do direito à liberdade de expressão e o discurso discriminatório

Uma das chaves para tentar responder a essa pergunta é ressaltar que a evolução do conceito de igualdade determinou uma nova conceituação do direito à expressão.

A postura clássica sobre a liberdade de expressão, associada às teorias liberais-conservadoras, que vincula esse direito à autonomia individual, passou a dar lugar a uma visão mais complexa, na qual o direito individual de cada pessoa de se expressar se vincula ao direito social de buscar e receber informações, ideias e pensamentos, e que considera a solidez e a amplitude da deliberação pública no âmbito do processo democrático como condição para o exercício de ambos os direitos. Para essa perspectiva mais ampla, as persistentes condições de desigualdade afetam tanto o direito de expressão de cada pessoa quanto o da comunidade de receber informações.

Essa segunda concepção da liberdade de expressão, que podemos chamar de “igualitária”, não adota uma confiança cega no papel dos Estados. É claro que a intervenção estatal pode obstruir o livre debate de ideias e opiniões e a imposição de limites e proteções às suas ações é justificável, por exemplo, para que ela não reprima o discurso político dissidente. Mas, às vezes, dado o papel hegemônico de alguns atores privados no ecossistema da comunicação, a ação distributiva dos Estados contribui para assegurar a discussão equilibrada e o pluralismo da informação por meio da inclusão de setores e perspectivas silenciados sistematicamente. Devido às estruturas de comunicação desiguais, o Estado pode ser amigo da liberdade de expressão.44. Ver a respeito, Owen Fiss, Libertad de expresión y estructura social (México: Fontamara, 1997). Não apenas pode regular, como também, em algumas ocasiões, é obrigado a fazê-lo para reverter injustiças discursivas ou políticas. Assim, a agenda de intervenção estatal inclui vários temas relevantes, como as regulações sobre a concentração da propriedade dos meios de comunicação, políticas para preencher as lacunas no acesso à internet e às tecnologias de informação e sobre os meios de comunicação públicos e comunitários, entre outras questões. 55. Ver sobre esse tema Damián Loreti e Luis Lozano, El Derecho a Comunicar. Los conflictos en torno a la libertad de expresión en las sociedades contemporáneas (Buenos Aires: Siglo XXI, 2014).

Ao mesmo tempo, essa concepção igualitária da liberdade de expressão promove mecanismos regulatórios, proibições e sistemas de monitoramento e responsabilização ante os discursos de ódio e discriminatórios.

No entanto, se levarmos em conta que eles contribuem para configurar injustiças culturais,66. Ver Charles Taylor, El Multiculturalismo y la política del reconocimiento (México: Fondo de Cultura Economica, 1993); Nancy Fraser, Justitia Interrupta. Reflexiones críticas desde la posición “postsocialista” (Bogota, Siglo del Hombr, Universidad de los Andes, 1997). como as representações distorcidas e difamatórias que aprofundam a subordinação de grupos sociais, pode-se concluir que esse tipo de discurso não somente aprofunda a desigualdade, como afeta sua livre expressão77. Como afirma o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) “O discurso de ódio racista pode silenciar a liberdade de expressão de suas vítimas (…) e a liberdade de expressão ajuda os grupos vulneráveis a restabelecer o equilíbrio de poder entre os componentes da sociedade, promove a compreensão e a tolerância interculturais, auxilia na desconstrução de estereótipos raciais”. Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD, na sigla em inglês), Recomendação Geral Número 35, “A luta contra o discurso de ódio racista”, 2013, parágrafo 27.. Isso ocorre porque a construção de estigmas sociais agrava as dificuldades discursivas dos setores vulneráveis, limitando sua capacidade de mobilização e ação coletiva, bem como seu acesso à esfera pública política. Ao mesmo tempo, reduzem a possibilidade de que suas demandas setoriais sejam aceitas e compartilhadas como questões transversais e de interesse geral. Portanto, o sentido excludente dele prejudica o debate democrático.

Nesses termos, então, a tensão que enfrentamos não é apenas entre o livre discurso e a igualdade, mas entre duas concepções (uma conservadora e outra igualitária) da própria liberdade de expressão. Segundo essa perspectiva, a preservação de uma esfera pública íntegra, plural e heterogênea exigirá estratégias para desconstruir estereótipos e segregações nos processos comunicativos.88. “Os princípios da Convenção serão cumpridos mediante o encorajamento do pluralismo dos meios de comunicação, por exemplo, facilitando o acesso e a propriedade dos meios de comunicação pelos grupos minoritários, indígenas e outros grupos no âmbito da Convenção, incluindo os meios de comunicação nas suas próprias línguas. O empoderamento local por meio do pluralismo da mídia facilita o surgimento de discursos que podem combater o discurso de ódio racista”. CERD, R.G. 35, CERD parágrafo 41. No mesmo sentido, ver Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH-ONU), Plano de Ação de Rabat, 2013, parágrafo 38. Compreendendo o problema dessa forma, pode-se afirmar que as injustiças culturais aprofundam as dificuldades na liberdade de expressão e de participação política dos grupos afetados pelos processos de estigmatização, de modo que nesse tipo de conflito ela se encontra nas duas pontas da equação .

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3. A classificação do discurso e os diferentes padrões de proteção

Na interpretação do Artigo 13 da CADH, definiu-se um núcleo básico de garantia da liberdade de expressão integrado a três proteções ou salvaguardas fundamentais. A primeira é a proibição absoluta da censura prévia, que limita também a supressão de informações já veiculadas. A segunda é o princípio da neutralidade, que baliza a regulação de conteúdo discursivo. A terceira é a norma que sujeita a condições estritas a procedência das responsabilidades posteriores ao discurso, que determina a não penalização em matéria de interesse público e circunscreve a responsabilidade civil indenizatória aos casos de dolo real.

A segunda salvaguarda do mecanismo de proteção merece algumas explicações adicionais. O princípio da neutralidade significa que o Estado deve garantir a circulação de qualquer tipo de expressão ou ideias. Não devem ser permitidas somente as ideias e informações recebidas favoravelmente, ou consideradas inofensivas ou diferentes, mas também aquelas que ofendem, chocam, inquietam, desagradam ou perturbam o Estado ou qualquer setor da população. Um ponto a destacar é que o Artigo 13 da CADH estabelece que são protegidos discursos de toda natureza. O princípio de neutralidade estabelece que o conteúdo do discurso não pode, por si só, justificar a restrição, e que toda moderação baseada no conteúdo do que é expresso deve ser submetida a um escrutínio rigoroso. Essa regra surge para evitar a censura direta e indireta de declarações políticas classificadas como subversivas, insurgentes ou perigosas para a segurança e a ordem pública, situação comum no cenário da Guerra Fria e das ditaduras americanas. Por esta razão, a jurisprudência constitucional diferencia as normas baseadas em critérios de oportunidade e tempo daquelas baseadas no conteúdo, e submete essas últimas a um rigoroso teste de escrutínio de razoabilidade.99. Ver Corte Suprema dos Estados Unidos, caso United States et al v. Playboy Entertainment Group Inc. de 22 de maio de 2000, ver também os votos de Petracchi e Belluscio, Corte Suprema da Argentina, caso Asociación de Telerradiodifusoras Argentinas y otros c. Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires, 7 de junho de 2005. Neste ponto, é bom recordar que, a preservação da regra da neutralidade, que contribui para evitar a censura de ideias e discursos perigosos para a defesa da ordem estabelecida, é uma condição necessária para promover, na arena política, a agenda de mudanças sociais que a igualdade exige, sobretudo na sua dimensão mais profunda e estrutural.

Mas como esses princípios se aplicam aos casos de discurso de ódio e discriminação? Até que ponto eles podem ser autorizados ou permitidos?

Para determinar os níveis de interferência estatal nos discursos em circulação, o sistema interamericano (a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão; a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH; e a Corte Interamericana) desenvolveu uma espécie de classificação de acordo com o grau de tutela exigido pela liberdade de expressão, identificando três níveis: nos extremos, o discurso não protegido e o discurso especialmente protegido, e no meio, o discurso protegido. 1010. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão CIDH-OEA(CIDH/RELE), Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de expressão, 2009.

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3.1. Discurso não protegido

Para o sistema interamericano, o discurso não protegido é aquele que, por seu conteúdo, deve ser proibido legalmente e que, portanto, não está coberto pelo sistema de garantias do Artigo 13 da CADH, de modo que, os Estados têm amplos poderes de intervenção em relação a ele.1111. Ibid. Podem avançar no estabelecimento de responsabilidades posteriores e, em certos casos, podem impor mecanismos limitados de censura ou restrição da circulação de informações para evitar a materialização de riscos concretos, claros e iminentes de violência. A possibilidade de aplicação de mecanismos de censura prévia aos discursos de ódio violento é, no entanto, uma matéria de debate. Algumas posições consideram que, mesmo nesses casos, aplica-se a proibição absoluta de censura prévia que caracteriza o sistema regional de direitos humanos. Elas destacam, por exemplo, que a versão em inglês do Artigo 13.5 da Convenção não estabelece o dever de proibir legalmente o discurso de ódio, apenas impõe a sanção do delito, o que apontaria responsabilidades posteriores a ele, sem habilitar a censura.1212. Ver Damián Loreti, Tensiones entre libertad de expresión y protección contra la discriminación: la incidencia de las regulaciones sobre censura previa y el debate sobre el rol del Estado (Buenos Aires: Rede Universitária sobre Direitos Humanos e Democratizações para a América Latina, 2012); Eduardo Bertoni, La libertad de expresión en el Estado de Derecho (Buenos Aires: Del Puerto, 2007): 179-184; Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão CIDH- OEA (RELE-OEA), Relatório Anual da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão de 2004, Capítulo VII, “Las expresiones de odio y la Convención Americana de Derechos Humanos”, 171- 192.

O Artigo 13.5 da CADH refere-se à proibição legal da propaganda de guerra e apologia ao ódio (nacional, racial ou religioso, entre outros), que constitui incitação à violência, ou qualquer outra ação ilegal similar contra qualquer pessoa ou grupo de pessoas por qualquer motivo. Essa mesma definição é contemplada em outros instrumentos internacionais vinculantes.1313. Conforme o artigo 20 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o artigo 4 da CERD. Da mesma forma, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, impõe punição aos discursos que constituam incitação direta e pública ao genocídio, (artigo 3 da Convenção).

Então, o discurso não protegido é o discurso de ódio quando é preenchido outro requisito essencial que o identifica, que é a incitação direta à violência, a qual inclui a violência física, a ameaça à vida e à integridade física, e também a criação de um clima grave de assédio e perseguição direta de um determinado grupo social. Convém precisar que a proibição desse tipo de discurso obedece a um propósito que transcende o objetivo de evitar a discriminação racial, étnica ou religiosa, uma vez que integra também as políticas de prevenção e não repetição de crimes em massa. A obrigação de proibir e penalizar ele surge com maior nitidez em contextos históricos ou estruturais específicos, em que a política estatal de prevenção emerge devido à existência de um risco real e iminente de violência enfrentado por determinados grupos sociais, nacionais, étnicos ou religiosos, por exemplo, no contexto de conflitos em curso ou em função de antecedentes históricos próximos de extermínio ou ataques sistemáticos.1414. Ver a respeito, Tribunal Constitucional da Espanha, decisão 235/2007 sobre a constitucionalidade dos crimes de negação e justificação do genocídio no código penal espanhol, e caso TEDH, Garaudy v. França, 2001 e Perincek vs. Suíça 2013. O debate mais complexo refere-se às normas que penalizam a negação e justificação do genocídio e dos crimes contra a humanidade, assimilando esses discursos ao discurso de ódio e, portanto, qualificando esses discursos como não protegidos pela liberdade de expressão, a fim de ampliar as margens de restrição estatal.

O discurso de ódio não protegido pela Convenção Americana é aquele que poderíamos chamar de discurso de ódio em sentido estrito. Esse tipo não abrange qualquer expressão estigmatizante pelos fatores anteriormente mencionados, inclui apenas aqueles que implicam em um perigo claro, atual e específico, uma vez que estão em condições de determinar comportamentos violentos iminentes ou um clima ostensivo de assédio ou perseguição em detrimento de um determinado setor da população por suas características já mencionadas.1515. Ver doutrina da Corte Suprema dos Estados Unidos, em Brandenburg v. Ohio 395 U.S. 444,1969, e de modo semelhante, o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas (CERD), Observação Geral Número 35. Sobre o tema consultar Henrique Bianchi y Hernán V. Gullco, El derecho a la libertad de expresión, Análisis de fallos nacionales y extranjeros (Editorial Platense, 2009): capítulo III, 9-139; Eduardo Bertoni, La libertad de expresión…, 2007. Nesses casos, o discurso de ódio que incita diretamente a violência é entendido como uma conduta hostil contra um grupo de pessoas, com a propensão de causar um dano a elas e, portanto, extrapola e vai além da troca de opiniões ou ideias.

3.2. O discurso não protegido, critérios para sua regulação e punição

O Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD, no original em inglês), retomando o Plano de Ação de Rabat da Organização das Nações Unidas (ONU), apresenta alguns fatores contextuais para considerar que o discurso de ódio deve ser passível de punição, entre os quais menciona: i) seu conteúdo e forma: se é provocativo e direto, de que forma ele é construído e disseminado e o estilo em que é transmitido; ii) o clima econômico, social e político prevalente na época em que ele foi feito e disseminado; iii) a posição ou status da pessoa emissora do discurso na sociedade e o público para o qual é dirigido; iv) o seu alcance, incluindo o tipo de audiência e os meios de transmissão, a frequência e extensão da comunicação, em particular quando a repetição da mensagem sugere a existência de uma estratégia deliberada para suscitar hostilidade contra grupos sociais; e v) seus objetivos .1616. Ver, CERD, Observação Geral Número 35, e Plano de Ação de Rabat.

No que diz respeito à avaliação da posição ou condição da pessoa emissora do discurso de ódio, várias organizações dos sistemas de proteção de direitos humanos têm apontado a influência de lideranças políticas, autoridades e pessoas formadoras de opinião na criação de climas negativos que favorecem a violência contra grupos sociais vulneráveis. 1717. Ver entre outros, CORTE IDH, ¨Rios y otros c. Venezuela¨, sentença de 28 de janeiro de 2009; Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão CIDH-OEA (RELE-OEA), Relatório Anual da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão de 2008, 180.

Por essa razão, é importante especificar que a proibição do discurso de ódio violento visa sempre proteger os grupos em situação de risco histórico ou estrutural de violência ou perseguição. Dessa forma, os casos sancionados devem ser rigorosamente definidos de forma a abranger aqueles que são graves e sem perder de vista esse objetivo igualitário. Ao contrário, pode acontecer que o conceito seja desviado e usado em sentido antagônico ao objetivo da normativa internacional, por exemplo, como ferramenta para censurar de forma direta ou indireta os discursos contestatórios que desafiem uma ordem política ou social ou que questionem um sistema de crenças religiosas.

Outra questão que deve ser destacada é que existe uma ampla gama de discursos ou expressões de ódio (racial, religioso, xenófobo, classista ou de gênero, por exemplo) que não se enquadram nessa definição estrita, pois não conduzem a atos lesivos iminentes, e, portanto, não podem ser estritamente classificados como não protegidos pela liberdade de expressão. Pelo contrário, esse tipo , que não atinge o patamar estabelecido no Artigo 13.5 da CADH, se insere no conceito mais amplo e abrangente dos discursos discriminatórios, que incluem também outras expressões difamatórias, ofensivas ou que promovem estereótipos negativos, ou ainda a estigmatização de grupos sociais vulneráveis. Os discursos discriminatórios também ensejam deveres de intervenção estatal para garantir a igualdade no âmbito da comunicação e do debate público, mas, diferentemente do de ódio em sentido estrito, estão abrangidos pelo sistema de garantias da liberdade de expressão da CADH. Por isso, a apreciação das restrições impostas a esse tipo requer um estudo mais cuidadoso.1818. Ver, Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão CIDH- OEA (RELE-OEA), Relatório Anual da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão de 2015 e RELE-OEA, op. cit., 2009.

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3.3. Discurso especialmente protegido

No outro extremo da classificação encontramos os “discursos especialmente protegidos”, que são aqueles em relação aos quais a intervenção estatal não é permitida ou deveria ser mínima, excepcional e baseada nos mecanismos de responsabilidade após o ato expressivo. São discursos ligados à crítica ao governo, ao funcionalismo público ou pessoas que aspiram a essa carreira ou intervir na formulação de políticas, bem como, em geral, ao discurso político e a qualquer expressão que trate de assuntos de interesse público. Nos últimos anos, também foram adicionadas declarações ligadas a elementos de identidade cultural ou religiosa. 1919. Nesse sentido, no caso “López Álvarez”, a Corte IDH analisou a situação de membros da comunidade garífuna detidos em uma penitenciária de Honduras que não podiam falar em seu idioma. Para a Corte IDH, na medida em que a língua própria é expressão de identidade cultural, trata-se de um discurso especialmente protegido pela liberdade de expressão-RELE-OEA, 2009-.

De acordo com os padrões internacionais, quando o discurso especialmente protegido se choca com outros direitos (privacidade ou reputação, por exemplo), o estabelecimento de responsabilidades posteriores deve ajustar-se aos parâmetros de legalidade, estrita necessidade e proporcionalidade mencionados acima. Além disso, os mecanismos de réplica, resposta ou retificação devem ser priorizados sempre que possível, no lugar de medidas de reparação econômicas. Também ficou notoriamente definido que a responsabilidade posterior, nesse tipo de discurso especialmente protegido, em princípio, não deve ser a sanção criminal. No caso “Kimel” 2020. Corte IDH, Caso Kimel vs. Argentina, sentença de 2 de maio de 2008., por exemplo, a Corte IDH considerou que a responsabilidade penal por discursos de interesse público é uma medida excepcional e um último recurso, e ponderou que a sentença que recaiu contra um jornalista que havia noticiado a conduta de um juiz durante a ditadura foi desproporcionalmente severa em relação aos danos causados, razão pela qual violava a liberdade de expressão. A Corte regional também se pronunciou sobre as responsabilidades civis no caso de discursos especialmente protegidos no caso “Fontevecchia”. 2121. Corte IDH, caso Fontevecchia y D´Amico Vs. Argentina, sentença de 29 de novembro de 2011.

Com base nessa classificação, a questão mais árdua consiste em determinar as regras que devem ser aplicadas a aqueles discursos discriminatórios emitidos no âmbito de discursos especialmente protegidos, tais como críticas políticas e eleitorais, debates com pessoas do funcionalismo público, sobre políticas públicas, ou expressões de valor histórico ou científico ou qualquer outro assunto de interesse geral. O que é paradoxal nesse tipo de é que ele recebe a máxima proteção do Artigo 13 da CADH e, ao mesmo tempo, devido ao seu alcance social, possui o maior poder discriminatório. O paradoxo poderia ser formulado nestes termos: como discursos devem ser protegidos, por serem condutas discriminatórias devem ser limitados.

3.4. Discurso especialmente protegido, critérios para sua regulação

É importante considerar alguns elementos no momento de graduar o alcance da regulamentação do discurso especialmente protegido. Em primeiro lugar, na medida em que esses discursos discriminatórios são protegidos pelo sistema de garantias da liberdade de expressão do Artigo 13 da Convenção Americana, não é adequado aplicar mecanismos de censura prévia. Em segundo lugar, quando esses são incluídos no arcabouço do tipo especialmente protegido, qualquer restrição deverá limitar-se à imposição de responsabilidades posteriores e essas, por sua vez, serão examinadas em sua configuração legislativa, e em seu controle judicial, sob parâmetros de estrita razoabilidade.

Por um lado, as medidas de responsabilidade posterior à emissão do discurso devem ser estabelecidas por uma lei formal, na qual corresponde definir de modo preciso, sem ambiguidade, em quais supostos objetivos esse discurso poderá ser restringido e o tipo de sanções ou reparações que a pessoa emissora enfrentará. Isso é o mesmo que sustentar que a restrição deve ser tipificada em lei formal. Por outro, as responsabilidades posteriores devem obedecer a uma necessidade social imperiosa e não basta invocar razões de mera conveniência ou utilidade da medida. Além disso, seu alcance deve ser estritamente necessário para atender a essa necessidade, o que implica demonstrar que ela é idônea para atingir o objetivo proposto e que não existem outras medidas menos prejudiciais disponíveis para atingir o mesmo fim.

Demonstrada a necessidade, deve-se considerar igualmente que a magnitude da restrição imposta à liberdade de expressão pela sanção civil ou criminal tenha relação de proporcionalidade adequada com a magnitude do dano causado pelo discurso questionado. Não existe uma fórmula rígida para realizar esse exame, mas convém graduar os dois extremos da equação, em função das circunstâncias específicas de cada caso.

O fato de que a regulação estatal deve ser ponderada segundo um padrão de escrutínio rigoroso obedece também à ideia de que se trata, como dissemos, de uma restrição não neutra, baseada no conteúdo do discurso. Mas, embora isso desencadeie uma revisão rigorosa, há casos nos quais, mesmo seguindo esse parâmetro, é possível justificá-la. A pessoa proponente da restrição é obrigada a provar mais do que a mera razoabilidade da norma, sua necessidade para a realização de um “interesse público imperioso” e que é “adequadamente projetado” para atender a isso.2222. Por exemplo voto de Petracchi e Belluscio, em Asociación de Telerradiodifusoras Argentinas, citado acima.

Pode ser observada a contradição de que exista um interesse estatal em resguardar a circulação de um discurso estigmatizante de um grupo social. No entanto, é possível identificar situações que evidenciam esse tipo de conflito. Pensemos no contexto de um debate eleitoral se uma/um dirigente política/o e candidata/o a um cargo eletivo, ao se referir à política de imigração, faz referência a uma comunidade migrante por sua tendência a cometer certos crimes e, assim, reforça seu argumento a favor de um controle extremo das fronteiras. O assunto discutido é de interesse público e é até geral conhecer as ideias de uma/um candidata/o sobre esse assunto. Outro exemplo, jornalista de grande audiência critica a lei de identidade de gênero promulgada pelo Congresso Nacional, mantendo sua resistência em aceitar a nova identidade de uma atriz famosa. Na medida em que se expressa uma crítica a uma determinada política adotada pelo Congresso, o assunto em debate apresenta evidente interesse social. Em ambos os casos, os discursos discriminatórios são emitidos no contexto de interesse para a sociedade. As restrições impostas a eles para reverter padrões estigmatizantes também têm como efeito limitar ou inibir a circulação de ideias ou opiniões políticas e, portanto, estreitam o campo de discussão. Dessa forma, pode-se explicar por que as restrições devem ser projetadas cuidadosamente.

Porém, o fato de que seja imposto um escrutínio mais rigoroso da restrição não significa que o Estado não possa estabelecer limites e responsabilidades posteriores para esse tipo de discurso. O objetivo de evitar a disseminação de estereótipos negativos e difamatórios é uma finalidade social imperativa de importância suficiente para justificar restrições ao discurso mesmo no âmbito dos assuntos públicos. É aqui que as políticas de igualdade na esfera do reconhecimento fornecem aos Estados democráticos argumentos de peso suficiente para intervir na esfera comunicativa.

Na medida em que limitar a circulação de discursos discriminatórios é geralmente uma necessidade social incontornável, o exame rigoroso deverá se limitar a aferir o grau dessa restrição ou se a configuração da medida restritiva é adequada.

Para ponderar o alcance das responsabilidades posteriores, os fatores contextuais de cada ato expressivo também deverão ser considerados. Sem entrar em detalhes sobre essa questão complexa, a imposição de sanções penais privativas de liberdade será excepcional pela sua gravidade, e exigirá a comprovação de que não existem outras formas menos lesivas para alcançar os mesmos objetivos antidiscriminatórios. Em grande medida, as considerações jurisprudenciais levadas em conta para evitar a penalização de discursos sobre assuntos públicos nos conflitos envolvendo reputação ou privacidade, que proíbem a ação penal ou a concebem como ultima ratio, também serão aplicadas nesse tema específico.

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4. Algumas medidas corretivas e preventivas contra discursos discriminatórios2323. Ver versão completa nas páginas 50 a 56 do livro El límite democrático de las expresiones de odio (2021).

A existência de interesse social imperioso na reversão desse tipo de discursos discriminatórios confere maior margem para impor, em certos casos, responsabilidades indenizatórias, administrativas e mecanismos de réplica ou de resposta individual e coletiva, inclusive com um critério mais amplo do que aquele que rege a responsabilidade ante declarações ofensivas ou invasivas.

Uma alternativa é a regulação da via da réplica. O direito de resposta, consagrado no Artigo 14 CADH, foi historicamente considerado como um mecanismo individual a danos à honra ou à honra pessoal e à privacidade ante informações falsas ou caluniosas, dirigidos a uma pessoa específica. No entanto, também poderiam ser contemplados mecanismos mais amplos que abarquem uma resposta a discursos discriminatórios de alcance geral, não dirigidos a uma pessoa determinada, mas que afetam direta e desproporcionalmente determinados grupos ou setores sociais.

Nesse caso, o bem jurídico tutelado pela réplica não seria a honra em sentido estrito, mas o direito a não sofrer discriminação, o que inclui a reputação e a identidade do grupo lesado, na medida em que, como já defendemos, a estigmatização de grupos são formas de aprofundar a subordinação e submissão deles.

Os discursos discriminatórios, como uma espécie de ato discriminatório, também geram direito à reparação tanto para as vítimas individuais, que podem estabelecer um determinado dano concreto, quanto para o benefício de grupos afetados por declarações pejorativas de alcance geral. Esse sistema de reparação civil coletivo poderia ser regulado em conjunto com o mecanismo de resposta mencionado acima. A lei antidiscriminatória da Argentina2424. Ver Lei 23.592 de 1988 do Congresso Argentino. Ver Suprema Corte da Argentina, caso "Sisnero, Mirta Graciela y otros c/Taldelva SRL. y otros s/amparo". Ver também análise do Tribunal Constitucional da Colômbia, na ação de tutela, Acórdão T-500 de 2016, Processo T-5336862, Caso: Ação de proteção proposta pela Organización Nacional Indígena de Colombia, ONIC, contra o diretor do programa Séptimo Día, o diretor do canal Caracol, e a Agencia Nacional de Televisión, ANTV. Neste caso, o tribunal aceitou a posição legal das organizações indígenas para agir em nome da honra, dignidade e direito à igualdade das comunidades indígenas afetadas por informações errôneas e estigmatizantes sobre o funcionamento da jurisdição autônoma e a ligação das comunidades com grupos armados ilegais, ordenando à mídia que retificasse as informações. O caso foi processado como uma ação tutelar coletiva. em sua atual redação prevê a reparação de danos materiais e morais derivados do ato discriminatório, além do direito de anulá-lo e fazer cessá-lo. Poderia ser considerada, por exemplo, a prática relevante do Sistema Interamericano de Direitos Humanos2525. Ver, entre outros, o caso das Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossas Terras) contra a Argentina, Sentença de 6 de fevereiro de 2020; o caso da Comunidade Garífuna de Punta Piedras e seus membros contra Honduras, sentença de 8 de outubro de 2015. sobre reparações econômicas em benefício de comunidades afetadas, por exemplo, o estabelecimento de fundos comunitários de promoção ou desenvolvimento, ou dos tribunais nacionais em matéria de reparações patrimoniais coletivas em ações coletivas de consumidores ou em assuntos ambientais.

Por fim, é importante mencionar que esse mecanismo também deveria incluir os discursos discriminatórios feitos na internet, nas redes sociais e nas plataformas digitais. Se levarmos em conta que esse espaço oferece possibilidades de réplica ou resposta muito mais amplas do que outras mídias, especialmente no caso de discursos especialmente protegidos, a regulação deve abordar os aspectos próprios do ambiente digital, incluindo os dilemas regulatórios relacionados a essas plataformas.2626. No livro El límite democrático de las expresiones de ódio também são analisados os dilemas regulatórios em relação às plataformas digitais.

Conclusão

Em suma, os Estados têm o dever de adotar medidas para restringir a circulação de discursos de ódio e discriminatórios. As normas internacionais, que protegem a igualdade substantiva e procuram prevenir padrões de violência discriminatória, estabelecem de forma evidente esse mandato de intervenção. Esse tipo de discursos não apenas aprofundam a desigualdade, mas também excluem os setores atacados dos processos de comunicação e limitam severamente suas capacidades expressivas. No entanto, o cumprimento desse mandato de atuação apresenta enormes desafios para os sistemas democráticos. Trata-se de escolher formas de intervenção e regras de moderação que preservem o núcleo duro da liberdade de expressão, que é uma ferramenta fundamental para ampliar a cidadania, promover mudanças sociais e assegurar uma ampla deliberação pública. Nesse ponto, é necessário explorar diferentes tipos de medidas não tradicionais de prevenção e reparação que contribuam para combater os estereótipos, sem prejudicar indevidamente a divulgação de discursos de interesse social.

Víctor Abramovich - Argentina

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de Lanús, na Argentina. Ex-membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, CIDH. Procurador do Supremo Tribunal Federal da Argentina.

Recebido em Outubro de 2022

Original em espanhol. Traduzido por Fernando Sciré.