Protegendo a saúde organizacional no campo de direitos humanos
Diante de um ambiente cada vez mais hostil, as organizações que defendem e fazem avançar direitos precisam maximizar sua força. Avaliar sua saúde interna e compreender as formas como sistemas e prática fracos os tornam vulneráveis deve ser uma prioridade. Em discussões entre líderes de direitos em um projeto para construir força e solidariedade no campo dos direitos humanos, três áreas particulares aparecem como necessitando de mais atenção e melhores abordagens: governança da diretoria, transições de liderança executiva e cultura organizacional interna. Em cada caso, a experiência compartilhada sugere que a capacidade de autorreflexão, aprendizagem e confiança é susceptível de apoiar uma melhor saúde organizacional e capacidade de resistir a condições negativas. Embora as organizações sejam responsáveis por sua própria saúde, a prática dos doadores pode afetar de forma acentuada sua experiência e ter um impacto sobre a saúde do campo. A atenção à saúde organizacional é um ponto de partida crítico para a construção de resiliência e força, mas para um campo de direitos humanos mais forte, as organizações e movimentos também precisam olhar externamente na construção de uma maior solidariedade.
Se você ocupa um cargo de liderança em uma organização de direitos humanos nesse momento da história, está enfrentando ventos contrários. À medida que um já desgastado consenso do pós-guerra sobre direitos, em diversos aspectos, se desmancha e os reservatórios de apoio das instituições multilaterais ou do setor não governamental nas democracias ocidentais evaporam, os inimigos locais estão ganhando força. Você precisa ser cada vez mais ágil, maximizar ainda mais seus fundos e construir melhores defesas, mesmo quando está sob ataque.
Esteja em uma parte do mundo na qual essas condições foram a regra durante todo o período de sua liderança, ou mesmo que tenha ingressado na luta recentemente, você se encontra constantemente avaliando sua posição. Onde você está vulnerável? O que você precisa? Onde você pode encontrar um apoio sólido? Essas são as questões que discutimos no “Simpósio sobre Força e Solidariedade pelos Direitos Humanos” (na tradução livre de “Symposium on Strength and Solidarity for Human Rights”, na denominação original em inglês).11. “About,” Strength & Solidarity, 2022, acesso em 20 de dezembro de 2022, http://strengthandsolidarity.org/about. E a nossa percepção é que investir na saúde organizacional neste momento é de vital importância.
Somos um projeto de duração de cinco anos, que reúne líderes de ativismo e advocacy em direitos humanos para uma intensa troca sobre o que está fortalecendo ou enfraquecendo suas organizações e uma percepção renovada sobre como construímos solidariedade (e, portanto, poder) para defender e promover direitos. Nosso objetivo é gerar alguma inovação na forma como o campo de direitos humanos responde ao crescente autoritarismo. Atualmente, na metade do projeto (finalizaremos nossas atividades em março de 2025), já reunimos cerca de 100 líderes em diversas conversas, e pretendemos reunir 250 até sua conclusão. Este parece ser um momento oportuno para compartilhar um pouco do que estamos escutando e aprendendo.
As observações a seguir são fundamentalmente baseadas em impressões e refletem minha própria percepção dos temas dominantes que emergiram. Dito isso, elas estão enraizadas em conversas reais e recorrentes, e também apareceram em nosso podcast,22. The Strength & Solidarity podcast, 2022, acesso em 20 de dezembro de 2022, https://linktr.ee/strengthandsolidarity. “Strength&Solidarity” (“Força&Solidariedade”, na tradução livre do título original em inglês), quando ativistas e trabalhadoras/es do campo de direitos humanos debateram sobre suas organizações e movimentos e as diversas maneiras pelas quais estão tentando superar obstáculos.
As reuniões do Simpósio ocorreram segundo regras de confidencialidade, de modo que quem participou e compartilhou seus pensamentos não terá sua identidade revelada aqui, tampouco o nome de sua organização. Dessa forma, pode ser útil conhecer um pouco mais sobre a participação de modo geral. Reunimos pessoas de todo o mundo (de 48 países até o momento). Suas organizações trabalham em todas as conjunturas de direitos humanos, desde ONGs convencionais com fortes hierarquias organizacionais que se relacionam com sistemas governamentais formais, até movimentos sociais menos rígidos, nos quais o ativismo de base é a ferramenta preferida e a liderança é compartilhada ou minimizada. Até o presente momento , a liderança mais jovem que participou tem 23 anos e a mais velha 70 . Procuramos construir grupos nos quais sejam incluídas múltiplas identidades e almejamos a diversidade de experiência e formação. O recrutamento para participar do Simpósio acontece tanto pela nossa ampla rede de contatos, quanto por outras pessoas. Além disso, é possível se autoindicar para participar por meio de nosso site.33. “Invitational Events,” Strength & Solidarity, 2022, acesso em 20 de dezembro de 2022, https://strengthandsolidarity.org/engage/invitational-events/.
Uma ressalva: pode ser difícil saber onde acaba a saúde de uma organização e começa a do setor mais amplo de direitos humanos. É claro que nem todos os desafios que uma organização ou movimento enfrentam estão radicados em suas circunstâncias específicas e, da mesma forma, um setor só pode ser tão forte quanto as organizações e movimentos que o integram. Pode ser difícil enxergar a fronteira entre os dois . Vou me concentrar principalmente na experiência dentro das organizações, mas dada a necessidade, um arcabouço mais amplo, às vezes, é relevante e voltarei a essa questão no final.
Embora a diversidade do grupo que participou de nossas atividades seja grande, é notável a frequência com que certos temas e experiências emergem, e é nesses relatos e percepções comumente compartilhados que baseei as observações a seguir. Quando quem participou fala sobre a saúde de suas organizações, surgem questões sobre estrutura, prós e contras da hierarquia e da gestão do poder. Lemos estudos de caso sobre crises de financiamento ou sobre como responder a uma repressão ou prisão arbitrária e diversas outras dimensões, mas sempre voltamos ao papel dos conselhos, a estrutura de governança, seja ela formal ou informal, que faz com que a organização preste contas sobre sua missão e supervisiona suas operações. E o que muitas das histórias sugerem é que os conselhos geralmente não entendem verdadeiramente as organizações que supervisionam e podem não ter uma boa compreensão de seu papel.
Isso pode não representar problemas sérios enquanto o trabalho está sendo realizado conforme o esperado. Mas, diante de uma situação na qual as ações do conselho provavelmente serão fundamentais, as pessoas que fazem parte dele podem se mostrar despreparadas. Frequentemente, quem participa de conselhos não refletiu profundamente sobre seu papel e responsabilidades e é um momento de crise que expõe essa lacuna. Talvez o conselho tenha aprovado um orçamento sem realmente entender as finanças da organização. Talvez haja uma disputa séria entre a equipe e a direção ou as pessoas que fazem parte do conselho estejam competindo por poder com a pessoa no cargo de direção. Tais situações representam riscos para a organização.
Uma pessoa que participou das nossas atividades explicou que, apesar de ter avisado o conselho sobre sua intenção de deixar a organização com um ano de antecedência, ele estava tão acostumado a depender da equipe que não assumiu a responsabilidade pela transição, atribuindo a contratação de uma nova pessoa a uma agência de recrutamento sem fazer uma supervisão adequada. As pessoas na lista final de candidaturas selecionadas não se encaixavam nos valores da organização e se mostraram impossíveis de ser nomeadas, deixando um flagrante e prolongado vazio na gestão enquanto o conselho iniciava um novo processo seletivo.
Em outro caso, as pessoas do conselho foram originalmente recrutadas porque eram colegas próximas e estimadas da pessoa que exercia a direção, de modo que a confiança nela era de cunho pessoal. Quando, para a surpresa, ela teve que renunciar sob suspeita, as pessoas que faziam parte do conselho perceberam, enquanto juntavam os cacos, que havia divisões quanto à lealdade delas. Em um terceiro caso, o conselho recebeu informações confiáveis sobre um caso de tratamento abusivo na organização, mas decidiu negligenciá-lo, em vez de pressionar a direção para resolvê-lo. A displicência fez com que os doadores perdessem a confiança e a arrecadação de fundos fosse afetada. E, em um quarto caso, o conselho subitamente se deparou com um buraco nas finanças da organização. Ele havia aprovado o orçamento e visto os relatórios de despesas, mas não percebeu que recursos com destinação vinculada de uma entidade doadora estavam sendo usados para cobrir um déficit operacional, com sérias consequências quando tomou-se conhecimento do ocorrido.
Muitas dessas histórias deram a sensação de que certos conselhos não estavam prestando a devida atenção às obrigações formais e: que as expectativas não haviam sido adequadamente definidas no início dos mandatos; que algumas pessoas que presidiam os conselhos estavam muito ocupadas para dar a atenção necessária à sua função; e que as estruturas de governança, como um comitê de orçamento, não foram criadas ou não reportavam regularmente à totalidade do órgão. Em suma, ou as pessoas que compunham o conselho não tinham as habilidades necessárias ou ingressaram nele por prestígio ou por amizade, sem considerar a provável carga de trabalho ou responsabilidades da função.
Dessa forma, como esses problemas podem ser enfrentados? Uma questão-chave é que, quando não há uma crise, pode haver poucos motivos para duvidar da saúde de uma organização. A fraqueza só se torna óbvia quando surge um problema grave. É por isso que, no Simpósio, nós defendemos a ideia de “consertar o telhado enquanto o sol está raiando”. Cada situação apresentará desafios diferentes, mas parece seguro dizer que, para poder desempenhar bem suas responsabilidades, um conselho precisa investir em sua própria capacitação ao longo do tempo, garantindo a gama necessária de habilidades – como conhecimento contábil e jurídico, assim como sólida experiência em trafegar por questões culturais e sociais contemporâneas. As pessoas do conselho precisam se reunir por mais tempo do que as tarefas de rotina exigem para que possam construir um senso compartilhado de conexão e responsabilidade, obtendo informações de forma proativa sobre sua organização por meio de reuniões, aprendendo com a equipe e fazendo uma autoavaliação honesta sobre sua capacidade de responder de forma decisiva, caso uma intervenção seja necessária. As pessoas que presidem o órgão e a diretoria da organização podem, ao trabalhar em conjunto, orientar esse esforço, mas não há atalhos, isso acontece no dia a dia.
Isso não quer dizer que um grupo de pessoas bem-intencionadas que compõem o conselho, sacudido de sua complacência, não possa salvar uma situação e conduzir sua organização para águas mais calmas, mas esse resultado está longe de ser garantido. A governança não precisa ser um fardo, mas requer constante atenção. No entanto, nada disso deve ser usado para justificar a usurpação da responsabilidade administrativa pelo conselho. O princípio deve ser “nariz para dentro, mãos para fora” – acompanhe de perto, mas respeite os limites.
Um momento em que a saúde de uma organização é sempre de grande importância é quando há a perspectiva de uma transição na liderança. Reiteradamente, as pessoas que participaram do Simpósio optaram por debater as transições. Suas histórias se originam quando elas começam a pensar em trocar de emprego e percebem que suas organizações e seus conselhos podem estar despreparados para as tensões que sua saída produziria. Elas podem acabar ficando muito tempo na organização, apesar de esgotadas e sem muito entusiasmo pelo trabalho, sempre em busca de uma pessoa ideal, que permanece indefinível, para sua sucessão. Mencionei que os conselhos podem não responder de forma eficaz à saída de uma pessoa na diretoria. Mas as pessoas que participaram das nossas atividades também mencionam uma perda de confiança e resiliência na equipe que pode se preocupar com mudanças ou temer seu futuro sob uma nova chefia. Uma pessoa no cargo de direção que está de saída pode encontrar ambivalência das instituições doadoras quanto ao comprometimento delas com a pessoa que lhe sucederá, fazendo com que ela tema que sua partida seja causa de um colapso na receita da organização. E, às vezes, especialmente se essa pessoa for uma das fundadoras da entidade em questão, ela descobre seus próprios receios de que a organização mude depois de sua saída e tenta reduzir esse risco transformando a estratégia, coletando fundos com antecedência e preenchendo vagas antes de partir, mesmo que essas etapas possam limitar a capacidade decisória e atar as mãos da pessoa que a sucederá.
Esses e diversos outros cenários foram compartilhados pelas pessoas que participaram das nossas atividades, que viram como uma transição pode sair dos trilhos. Seu objetivo principal é garantir que sua organização sobreviva e a pergunta frequente é: “qual é a melhor maneira de conseguir isso?” Uma questão relacionada costuma ser: “quando é o momento certo para começar a se preparar para sua saída? Um ano antes? Três anos?” Muitas vezes, o que emerge das respostas é menos o foco em um cronograma e mais o preparo da organização.
Na opinião do principal moderador do Simpósio, Chris Stone, desde o seu primeiro dia como líder organizacional, você deve trabalhar para garantir que sua organização possa substituir você com pouca antecedência. A preparação inclui contratar e manter uma equipe de pessoas qualificadas nas quais se possa confiar para trabalhar com eficiência sem microgerenciamento, um conselho que entenda a organização e saiba o que ela precisa fazer a curto e longo prazo se você desaparecer repentinamente e estabelecer práticas e documentação que tornem a organização e seu funcionamento visíveis e compreensíveis para quem está fora dela. Dessa forma, as instituições doadoras podem depositar confiança na organização, ao invés de depender principalmente de seu relacionamento com a pessoa que ocupa a diretoria.
No entanto, a capacidade de garantir consistência operacional é somente uma das variáveis de uma transição saudável. Uma preocupação diferente levantada é que , muitas vezes, uma substituição de liderança é vista de forma muito limitada, como uma mera mudança de pessoal. Mas ela poderia ser muito mais. Uma transição pode ser uma oportunidade para fazer um balanço, comemorar o que foi conquistado e iniciar uma conversa sobre novos rumos. Um conselho e uma equipe de gestão que se conhecem e que têm confiança mútua podem fornecer a consistência e a estabilidade necessárias para uma mudança de diretoria que seja convidativa e faça uso da criatividade e da imaginação. Por outro lado, se a pessoa na liderança que está de saída não delegou autoridade e não estabeleceu laços de confiança mútua naquelas pessoas que ficaram na organização, a transição pode estagnar, levando a recriminações generalizadas. O que ouvimos das pessoas que participaram das nossas atividades é que, no campo de direitos humanos ao redor do mundo, esses processos estão em aprimoramento e acreditamos que essa é uma área na qual as organizações e os movimentos podem ser significativamente mais fortes. Esses e outros pontos são aprofundados por Ignacio Saiz em um valioso post em nosso blog, “Transition take-aways – five tips on how to leave well” (“Aprendizados sobre transições, cinco dicas de como sair bem”, na tradução livre ao português). 44. Ignacio Saiz, “Transition Take-aways: Five tips on how to leave well.” Strength & Solidarity, 26 de maio de 2022, acesso em 20 de dezembro de 2022, https://strengthandsolidarity.org/blog/transition-take-aways-five-tips-on-how-to-leave-well/.
Um terceiro tópico que vem à tona regularmente em nossas conversas é a cultura organizacional. Não é segredo que o setor sem fins lucrativos tem vivenciado, nos últimos cinco anos, um recrudescimento de conflitos internos, com acusações entre equipes e coordenação, tensões baseadas em questões de identidade e/ou desconfiança intergeracional. Há uma nova concepção sobre desafiar um gerenciamento ruim ou rígido, ou ainda um comportamento que está em desacordo com os valores declarados de uma organização.
Para as entidades de direitos humanos, essas divisões causam problemas como um todo. Internamente, as denúncias de que uma pessoa na liderança vem falhando nessa esfera são tomadas como um sinal de que ela tem debilidades, de que não está comprometida com a justiça e os direitos que se propõe a defender. Externamente, o risco reputacional da organização é alto, dado o compromisso marcadamente público com a defesa de direitos. Governos hostis são céleres em aproveitar essas denúncias como prova de que quem faz as críticas não é melhor do que eles. Esforços meticulosos para entender fatos controversos e explicações conflitantes esgotam e afligem todas as partes, mas podem não alcançar a reparação esperada ou reconstruir a confiança. É um terreno fácil de entrar quando se está distraído e desatento aos sinais de alerta, mas muito difícil de sair.
Às vezes, pode-se observar que esses são problemas encontrados com mais frequência em organizações estadunidenses e europeias, o que pode ser verdade, ou pode ser que lá recebam mais atenção do que os mesmos problemas em outras partes do mundo, principalmente devido à natureza intensa e inflamada de fissuras identitárias na “metrópole” ou no Norte Global (seja qual for a nomenclatura de sua escolha). Ao ouvir as pessoas que participaram das nossas atividades, sinto que onde quer que elas estejam no mundo, estão vivenciando tensões mais intensas em suas organizações e que, à medida que o mundo encolhe devido a uma integração digital cada vez maior, os problemas que aparecem em Nova Iorque também estão surgindo em Bangkok, em Buenos Aires, em Lagos, talvez não exatamente da mesma forma, mas semelhantes o suficiente para serem mutuamente reconhecíveis.
As pessoas que participam de nossas atividades são lideranças organizacionais ou de movimentos, então, um aspecto que discutimos com frequência é a sua experiência como responsáveis em tentar resolver divisões e polarizações profundas em suas entidades. Seus comentários mostram que ter a responsabilidade de restaurar uma cultura organizacional saudável já é difícil; fazê-lo sendo de grupos minoritários ou vítimas de exclusão, diante de expectativas que não estão baseadas em suas experiências, é ainda mais difícil. Quer essas lideranças sejam de mulheres, queer, jovens, parte de grupos minoritários, elas sofrem com críticas e julgamentos mais severos quando estão divididas. Uma jovem de um país asiático falou sobre sua experiência de suceder um homem mais velho na diretoria. O preconceito devido a sua idade e gênero, e o pressuposto disseminado de que ela faria um trabalho ruim, tornaram-se um problema crônico em sua gestão interna e influenciaram as opiniões de parceiros, de instituições financiadoras e do governo.
A julgar pelo que as pessoas que participaram de nossas atividades disseram, os geradores de tensão e as fontes de divisão são frequentemente mais variados do que normalmente se supõe e podem operar simultaneamente, tornando necessário investigar diversas causas e abordá-las. Embora não haja soluções rápidas nem fórmulas garantidas para construir uma cultura de respeito resiliente em uma organização, algumas reflexões parecem surgir com frequência.
Uma delas é que, embora as expressões de indignação sobre identidade e diferenças possam ser a principal causa de descontentamento da equipe, elas podem estar enraizadas ou ser agravadas por uma má gestão e um insuficiente apoio às pessoas sobrecarregadas. Uma pessoa na liderança que se dá ao trabalho de observar a gestão das pessoas abaixo dela, para garantir que sejam adequadamente treinadas e para dar um feedback honesto, está investindo em uma organização que será mais capaz de lidar com conflitos no local de trabalho. Muitas tensões começam com tratamento descuidado, injusto ou arrogante feito por alguém em posição de coordenação e esses comportamentos são comuns em pessoas que receberam poder sobre a equipe, mas não têm habilidades ou experiência para serem boas coordenadoras, ou cujo medo de pessoas que as desafiem as tornam também frágeis para lidar com feedback, ou pior, faz com que procurem divisões para explorar.
Além disso, mesmo equipes bem geridas nas entidades de direitos humanos, às vezes, passarão por dificuldades e precisam que as pessoas na coordenação demonstrem interesse por suas condições de trabalho e façam o que estiver ao seu alcance para ajudar. Ouvimos das pessoas que participaram de nossas atividades sobre a diferença que fez para a saúde da equipe quando elas, proativamente, tomaram medidas para identificar traumas secundários e casos de burnout e providenciaram acesso à assistência profissional de forma regular.
Um segundo tema amplo que vem à tona repetidamente é que as pessoas em cargos de liderança organizacional precisam ser autoconscientes e superar o desejo de evitar conflitos e angústias. Construir uma cultura de respeito exige que a pessoa na função de liderança esteja totalmente presente. Elas podem estar ocupadas, preocupadas com a escassez de recursos, com medo ou traumatizadas pelo trabalho ou simplesmente frustradas com o que consideram uma atitude autocentrada, mas são elas que dão o tom. Se quiserem uma equipe que possa superar decepções, divergências e dar a volta por cima, como líderes, precisam se dedicar e executar isso.
Pessoas que participaram das nossas atividades nos contaram sobre o desconforto, mas também sobre o grande valor de conversar com pessoas da equipe que estão desapontadas com um aspecto de sua liderança e de ouvir um feedback duro. É difícil para a liderança ter sucesso sem empreender uma autorreflexão sobre seu papel, seu poder e, mais importante, o que causa medo nela. Uma pessoa que busca promover direitos e justiça precisa, como Audre Lorde diz, “chegar naquele lugar profundo de autoconhecimento e tocar naquele terror e aversão sobre qualquer diferença que vive lá. Ver a sua cara.”55. A palestra de Audre Lorde, The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House (“As ferramentas do mestre nunca desmontarão a casa do mestre”, na tradução livre ao português do título em inglês), é uma das leituras mais conhecidas que utilizamos no Simpósio, em parte porque situa discussões sobre como e se as pessoas colaboram bem de forma determinada em torno do poder (quem tem o poder, quem depende do poder dos outros e no interesse de quem uma mudança real nas relações sociais pode ocorrer). A capacidade de conduzir uma equipe em direção a saúde melhor e uma cultura de respeito e confiança exige que a pessoa na posição de líder seja um modelo de coragem, honestidade e abertura. É fundamental fazer o trabalho de introspecção necessário e obter informações sobre o que está impulsionando sua prática e não simplesmente fazer um “reconhecimento” pro forma de seu privilégio e seguir adiante.
Na ressalva que fiz no início do artigo, reconheci que nem sempre está claro onde acaba a saúde de uma organização e começa a do setor. Em nenhum lugar a fronteira é mais imprecisa do que no que diz respeito ao relacionamento com as instituições financiadoras.
As organizações não controlam e não podem controlar o que as instituições doadoras fazem. É óbvio que elas são uma parte fundamental do ecossistema no qual uma entidade precisa operar, mas as beneficiárias são responsáveis por sua própria saúde. As pessoas que participaram das nossas atividades concordariam, sem dúvida, com essa afirmação, mas relatam com honestidade que seu relacionamento com essas instituições é difícil e que isso afeta a sua dinâmica interna . Elas frequentemente comentam que as preferências e estratégias das organizações doadoras têm um impacto excessivo, tanto nas obrigações práticas como no planejamento, alocação de pessoal e outras escolhas gerenciais quanto no moral, angústia sobre a continuidade do financiamento, alto estresse quando precisam ser encontrados fundos para reposição e assim por diante.
Embora as pessoas nos cargos de liderança sejam gratas por receberem apoio financeiro, elas expressam angústia (essa definição não é exagerada) sobre o desafio de gerenciar as mudanças imprevisíveis das instituições doadoras sobre compromissos anteriores, comportamentos autocentrados, sua constante falta de humildade ou pior, falta de interesse suficiente.
Dentro da equipe de moderação, discutimos sobre como pesar o impacto da prática de doação como um fator na cultura organizacional. Visivelmente, a saúde das organizações é afetada e até prejudicada quando as instituições financiadoras se comportam mal. Mas, pelo menos até agora, sem surpresas, as beneficiárias não se mostraram dispostas a denunciar o mau comportamento, dado o risco de perder a fonte de financiamento e, enquanto essa prática persistir, é provável que pouca coisa mude.
Não há espaço aqui para elaborar argumentos sobre como as organizações podem apoiar melhor a cultura organizacional saudável por meio de suas políticas e ações, mas existem ótimas pesquisas publicadas e orientações66. Ver, por exemplo, “Leadership,” Trust Based Philanthropy Project, 2022, acesso em 20 de dezembro de 2022, https://www.trustbasedphilanthropy.org/leadership. sobre o que funciona. Ao invés de enquadrar a questão em torno da prática, pode ser mais útil pensar em termos de poder, como as instituições doadoras usam o seu e que tipos de poder as entidades beneficiárias podem reunir e empregar para negociar um relacionamento menos tenso.
As reflexões expressas neste artigo são um fragmento de discussões atuais, uma seleção de questões compartilhadas pelas pessoas que ocupam posições de liderança no movimento de direitos humanos que reunimos. Elas apontam para circunstâncias nas quais há oportunidades de melhora, em que as organizações podem se tornar mais fortes e estáveis em um ambiente difícil, e eu compartilhei algumas das abordagens e estratégias que discutimos.
Algumas pessoas para as quais pedi feedback me disseram que o relato acima é uma avaliação pessimista sobre o estado atual da saúde organizacional. Eu tenho uma visão diferente. Você não consegue resolver um problema se ele não for reconhecido. Ouvir colegas no Simpósio discutirem esses problemas de forma proativa e aberta me dá mais confiança do que preocupação. A coragem de enfrentar divergências internas e tentar entender o que não está funcionando bem e o porquê só pode ser positivo. As vozes mais conservadoras em nosso campo podem reclamar que investir tempo e recursos na saúde organizacional é uma divagação autoindulgente, uma distração do importante trabalho de defender direitos. No entanto, parece evidente, em meio às angustiantes convulsões organizacionais dos últimos anos, que essa visão está enraizada no idealismo. Não há alternativa razoável a não ser empregar oportunidades para fortalecer organizações e movimentos que defendem e promovem direitos. Nossas conversas no Simpósio sugerem que as lideranças estão prontas e até interessadas em fazer o trabalho necessário para conceber entidades mais saudáveis e, portanto, mais eficazes.
Olhando para além do foco na saúde organizacional, como observei no início deste artigo, os ventos contrários que atualmente atingem a área de direitos humanos estão piorando e fortalecer sua organização, embora vital, está longe de ser suficiente. Nosso campo é fragmentado. Está além do escopo deste artigo elaborar sobre a necessidade crítica de uma maior e mais fortalecida solidariedade na arena, mas, em nossa opinião, o poder que pode ser construído por meio disso não apenas melhora os resultados contra as pessoas que cometem opressões e violações de direitos, como também fortalece as organizações e melhora sua resiliência. Acreditamos que trabalhar para construir tanto a força quanto a solidariedade é vital para sobreviver à tormenta.