Embora reconhecendo a natureza interconectada dos ataques ao espaço civil, continua sendo essencial amplificar as vozes da sociedade civil e apoiar as reações locais
Estamos enfrentando uma situação de emergência global no espaço civil. Trata-se agora de um fenômeno universal, não mais restrito a autocracias e democracias frágeis. Embora exista um interesse crescente pela natureza e pelo impacto dessas restrições, há pouca análise das causas mais profundas do fenômeno e ainda menos sobre como apoiar as reações locais. Argumentamos que é fundamental reconhecer a natureza global e interconectada do que está promovendo os ataques ao espaço civil, mas que é mais importante ainda encontrar formas de apoiar as respostas locais, inclusive através de um exame das práticas da sociedade civil. Além disso, o espaço civil não pode ser “salvo” de fora; precisamos construir uma sociedade civil resiliente e independente, pronta e disposta a reagir - juntos, sempre que possível - aos problemas que enfrenta. O desafio mais abrangente não é o técnico e de curto prazo de repelir os ataques ao espaço civil, mas o político e de mais longo prazo de reimaginar um cenário mais participativo, no qual as contribuições da sociedade civil sejam celebradas e a democracia substantiva prospere.
Enquanto o início da década de 2010 tenha-se caracterizado por revoltas populares de grande escala – fosse contra ditadores ou contra políticas econômicas neoliberais -, parece que a segunda metade da década será definida pelo surgimento do homem forte e por uma degradação geral da democracia constitucional.11. Dhananjayan Sriskandarajah, “Revolutions, But Not As We Know Them.” Al Jazeera, 9 de junho de 2014, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2014/06/protests-brazil-turkey-201466191250202505.html; Mandeep Tiwana, “Neoliberalism and Public Unrest: Time to Make the Connection.” Al Jazeera, 11 de julho de 2013, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2013/07/201374123247912933.html. Essa mudança representa um forte golpe para os ativistas dos direitos humanos e para as organizações da sociedade civil que buscam justiça social, que já enfrentam a manipulação rotineira do discurso da segurança global para esmagar a dissidência em nível nacional. No entanto, se situarmos essa mudança dentro de um contexto de causa e efeito, no qual revoltas levam a repressões e repressões levam a revoltas, então, nós da sociedade civil temos motivos para ter esperança. O estreitamento do espaço civil e dos princípios democráticos – mesmo em lugares que pensávamos que já constituíam democracias estabelecidas – é uma questão de preocupação permanente, como atesta o Monitor CIVICUS, que utiliza uma metodologia participativa para avaliar o estado das liberdades civis em todo o mundo.22. “Ratings Update October 2017,” CIVICUS, CIVICUS Monitor, outubro de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, https://monitor.civicus.org/Ratingsupdatesept17/. Mas essas tendências também estão mobilizando a sociedade civil global. A inclinação para o autoritarismo já está levando a fortes reações. A marcha das mulheres sobre Washington e as marchas associadas de irmãs em todo o mundo após a posse do presidente americano Donald Trump, em novembro de 2016, talvez tenha atraído atenção maior dos meios de comunicação, mas vários novos e grandes movimentos de resistência estão surgindo em reação a discursos políticos neofascistas, xenófobos e sexistas.33. “New Democratic Crisis”, in CIVICUS State of Civil Society Report, CIVICUS, 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.civicus.org/documents/reports-and-publications/SOCS/2017/year-in-review/new-democratic-crisis.pdf.
Muitas das restrições contemporâneas à sociedade civil são reações automáticas, às vezes preventivas, a mobilizações populares de sucesso, um resultado triste e inesperado da esperança inicial da assim chamada Primavera Árabe. Evidentemente, esse padrão de causa e efeito não é a única causa importante do aumento das restrições às liberdades cívicas. Uma combinação de líderes políticos que provocam divisões e a ocorrência contínua de ataques terroristas encorajaram os extremistas religiosos e ideológicos de todos os tipos a solapar a capacidade da sociedade civil de promover os direitos das comunidades LGBTI, das minorias étnicas e religiosas e das populações de refugiados. A consolidação do fundamentalismo de mercado também contribuiu para um ambiente de crescente intolerância das elites políticas e econômicas em relação à sociedade civil envolvida na denúncia da corrupção de alto nível e da destruição ambiental.
Além disso, aqueles que procuram restringir a sociedade civil estão coordenando cada vez mais seus esforços transnacionais para enfraquecer o marco internacional de direitos humanos. As restrições ao financiamento internacional para a sociedade civil, o enfraquecimento das instituições multilaterais e o recuo de acordos internacionais utilizando argumentos frágeis de soberania de Estado ou a suposta ameaça de terrorismo são todos meios pelos quais poderosos interesses estabelecidos procuram desfazer a cooperação e o progresso alcançado no discurso dos direitos humanos. Esses fatores conduziram a vários propulsores de restrições às liberdades cívicas, muitas vezes observáveis em todo o mundo. Pensamos que vale a pena prestar atenção a três deles.
Embora haja um interesse crescente dos organismos de desenvolvimento e das grandes organizações internacionais não governamentais (ONGs) em envolver as empresas na resolução dos problemas do mundo, inclusive na implementação da Agenda 2030, há um reconhecimento menor da influência das Com efeito fato, há uma tensão inerente entre a adoção de políticas econômicas neoliberais nos mais altos níveis da tomada de decisões nacional e internacional e a rejeição delas por parte das pessoas comuns em nível local, muitas vezes lançando atores da sociedade civil que trabalham em comunidades locais contra empresas poderosas com fortes conexões políticas.
As influências do setor privado na sociedade civil decorrentes do conluio entre as elites políticas e econômicas são particularmente claras na área da exploração de recursos naturais por indústrias extrativas e agronegócios gigantescos. Os defensores locais do meio ambiente, muitas vezes indígenas, enfrentam retaliações por proteger os recursos naturais da exploração externa. Por exemplo, na Argentina, o desaparecimento do ativista Santiago Maldonado levou a acusações de que as forças de segurança do governo estão atacando os cidadãos para proteger os interesses empresariais.44. Lucas Radicella, “Santiago Maldonado’s Death Overshadows Elections.” Al Jazeera, 22 de outubro de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.aljazeera.com/news/2017/10/santiago-maldonados-death-overshadows-elections-171022103135489.html. Maldonado foi encontrado morto em outubro de 2017 após um choque entre forças de segurança do governo e ativistas dos direitos indígenas que protestavam contra a exploração pela Benetton de terras ancestrais da comunidade mapuche. O assassinato da premiada ativista hondurenha Berta Cáceres, que se opôs a um enorme projeto hídrico, é emblemático dos desafios que transcendem as fronteiras globais Norte-Sul.55. Nina Lakhani, “Berta Caceres Court Papers Show Murder Suspects’ Links to US Trained Elite Troops.” The Guardian, 28 de fevereiro de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.theguardian.com/world/2017/feb/28/berta-caceres-honduras-military-intelligence-us-trained-special-forces. Nos Estados Unidos, manifestantes indígenas que se opõem ao controverso oleoduto Dakota Access Pipeline por acreditar que ele destruirá cemitérios ancestrais e envenenará seu abastecimento de água enfrentaram uma série de restrições, levando a União Americana pelas Liberdades Civis a apoiá-los.66. “Standing with Standing Rock,” ACLU, 15 de janeiro de 2016, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.aclu.org/issues/free-speech/rights-protesters/stand-standing-rock.
Como ficou evidente acima, os Estados não são os únicos a restringir o espaço civil. Em ambientes propensos a conflito, bem como em outros, os defensores de ideologias extremistas consideram a sociedade civil, com sua ênfase na diversidade e na coesão social, um obstáculo para alcançar seus objetivos. Terroristas e forças políticas extremistas compartilham o alvo comum de dividir sociedades em torno de interpretações estreitas de etnias ou religiões. Eles põem a culpa dos problemas contemporâneos nos grupos excluídos. A sociedade civil que resiste a esse divisionismo é acusada de antitética a valores religiosos, nacionais ou culturais supostamente compartilhados. Na Europa, os grupos da sociedade civil que trabalham com direitos das populações de refugiados e migrantes estão enfrentando uma reação violenta.77. “France: The Harassment of Cédric Herrou, Defender of Migrants’ Rights, Must End,” FIDH, 4 de setembro de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.fidh.org/en/issues/human-rights-defenders/france-the-harassment-of-cedric-herrou-defender-of-migrants-rights. Em muitas partes da Ásia ocidental, os defensores dos direitos das mulheres têm sido atacados por grupos armados que procuram impor pela força doutrinas religiosas puritanas às populações, chamando a busca pela igualdade de gênero de uma invenção ocidental. Por exemplo, no Afeganistão, os talibãs assassinaram várias ativistas dos direitos das mulheres e forçaram outras a fugirem de suas casas por segurança.88. Sune Engel Rasmussen, “Afghanistan’s Women Risk Their Lives to Demand Equal Rights and Protection.” The Guardian, 25 de novembro de 2015, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.theguardian.com/global-development/2015/nov/25/afghanistan-women-risk-lives-demand-equal-rights-protection.
No sul da Ásia, o assassinato da jornalista indiana Gauri Lankesh, crítica proeminente das ações dos extremistas direitistas hindus, evoca os desafios enfrentados na região por blogueiros e jornalistas por se manifestarem contra a imposição de costumes religiosos e culturais de mentalidade estreita.99. Karnika Kohli, “Gauri Lankesh Assassination: How the Right Wing Is Trying to Spin the Narrative.” The Wire, 7 de setembro de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, https://thewire.in/174542/gauri-lankesh-assassination-right-wing/. Na África, os evangelistas religiosos com ligações intercontinentais estimularam a homofobia e os ataques a organizações e ativistas que promovem os direitos das pessoas LGBTI.1010. Rev Kapya Kaoma, “US Christian Right and the Attacks on Gays in Africa.” Huffington Post, 2009, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.huffingtonpost.com/rev-kapya-kaoma/the-us-christian-right-an_b_387642.html.
Enquanto a mídia global e a atenção da sociedade civil se concentravam na degradação das liberdades cívicas devido ao surgimento de políticas “neofascistas” em democracias (por exemplo, Brasil, Hungria, Índia, Filipinas, Polônia, EUA etc.), “homens fortes” e regimes despóticos de vários países foram incentivados, no clima atual de recuo do internacionalismo, a consolidar seu poder mediante a manipulação dos processos eleitorais e dos limites dos mandatos constitucionais (por exemplo, Angola, Burundi, Camboja, República Democrática do Congo, Ruanda, Turquia, Uganda, Zimbábue etc.). Da Rússia à Turquia e à Venezuela, há uma batalha em andamento para silenciar aqueles que falam “verdade ao poder”, onde a repressão contra aqueles que falam a língua dos direitos humanos está se tornando a norma e não a exceção. Chama a atenção o fato de que, logo após a visita à Arábia Saudita do presidente Donald Trump, um oponente visceral da mídia independente, o quarteto alinhado de Bahrein, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos bloqueou o Catar para silenciar a rede de notícias Al Jazeera, entre outras coisas.1111. Marwan Bishara, “What is the GCC-Qatar Showdown Really About?.” Al Jazeera, 26 de junho de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2017/06/qatar-gcc-crisis-reasons-170625140544893.html. O segmento em inglês da Al Jazeera, apoiado pelos catarenses proporciona muitas vezes uma plataforma para a sociedade civil realçar as violações dos direitos humanos e promover discursos alternativos.
Os eventos acima mencionados, que coincidem com a ascensão da China à categoria de superpotência mundial, estão contribuindo para um recuo espetacular do marco internacional de direitos humanos. O modelo de desenvolvimento da China, com sua ênfase no crescimento econômico e na supressão das liberdades civis e políticas, proporcionou um modelo e uma tábua de salvação para o comércio internacional de muitos regimes autoritários que, de outra forma, não teriam sido tolerados pela comunidade internacional. Embora a falta de transparência da política externa da China dificulte avaliar com precisão seu impacto, os documentos oficiais do governo chinês indicam uma falta de compromisso com os valores democráticos e os direitos humanos que, segundo observadores externos, é uma característica das investidas de desenvolvimento da China até o momento. Por exemplo, um “livro branco” da política externa do governo chinês divulgado em 2016 menciona o desenvolvimento, mas não faz referência a “democracia, liberdade pessoal e direitos humanos”.1212. Jared Ferrie, “If Trump’s America Shrinks Humanitarian Support, Will China Fill the Void?.” Irin News, 5 de dezembro de 2016, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.irinnews.org/analysis/2016/12/05/if-trump-s-america-shrinks-humanitarian-support-will-china-fill-void. É possível dizer que o domínio econômico da China é um fator agravante na redução da influência dos governos democráticos e do Ocidente em geral sobre a promoção dos direitos e da participação da sociedade civil no Sul Global. Porém, deve-se notar também que, embora os doadores ocidentais aparentemente apoiem muito mais os direitos humanos e as liberdades democráticas, ainda permanecem pontos cegos baseados em suas prioridades geopolíticas estratégicas. Por exemplo, a Human Rights Watch informou que a União Europeia não conseguiu monitorar o uso indevido de sua ajuda ao desenvolvimento da Etiópia, que ela diz ter aumentado a “capacidade repressiva do governo”.1313. “Human Rights Watch Statement to the European Parliament,” Human Rights Watch, 12 de outubro de 2016, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.hrw.org/news/2016/10/13/human-rights-watch-statement-european-parliament.
Tudo isso corre o risco de solapar várias vitórias fundamentais obtidas pela sociedade civil em nível internacional, entre elas as resoluções da ONU sobre a proteção aos defensores dos direitos humanos e a indicação de um representante especial da ONU para denunciar as represálias contra membros da sociedade civil que participam de fóruns multilaterais. Muitos membros da sociedade civil estão questionando o valor da participação em mecanismos internacionais, quando há tão pouca influência positiva na prática. Não obstante, uma retirada da arena internacional equivaleria a abandonar os ganhos – mesmo que imperfeitos – em liberdades cívicas e participação da sociedade civil. Apesar das dificuldades, processos como a revisão periódica universal feita pela ONU ou os procedimentos para registrar denúncias junto aos especialistas da ONU oferecem vias importantes para concretizar direitos e ressaltar violações.
Como escrevemos na edição do 20o. aniversário da revista Sur em 2014,1414. Dhananjayan Sriskandarajah e Mandeep Tiwana, “Towards a Multipolar Civil Society,” Sur Journal 11, no. 20 (June 2014): 511-17, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.conectas.org/en/actions/sur-journal/issue/20/1007383-towards-a-multipolar-civil-society. havia (e continua havendo) uma necessidade de que as vozes da sociedade civil do Sul Global sejam amplificadas e ouvidas em discursos globais sobre direitos humanos. As discussões sobre o espaço civil não são diferentes e, com efeito, é ainda mais importante encontrar maneiras de fortalecer os atores locais. Nisso vemos também três questões às quais vale a pena prestar atenção.
Numa época de vínculos crescentes entre organizações da sociedade civil voltadas para os direitos (OSCs) e a comunidade filantrópica/de doadores, o financiamento tornou-se uma área importante de contestação. O relatório CIVICUS 2015 sobre o Estado da Sociedade Civil1515. “State of Civil Society Report,” CIVICUS, 2015, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.civicus.org/images/StateOfCivilSocietyFullReport2015.pdf. destacou que apenas uma pequena proporção da ajuda ao desenvolvimento vai realmente direto para a sociedade civil no Sul Global. Enquanto isso, inúmeros governos procuraram limitar ou interferir no financiamento internacional da sociedade civil mediante uma série de leis e práticas restritivas bem documentadas. Contudo, mesmo quando esses fatores não estão presentes, as prioridades instáveis dos doadores e a deferência excessiva aos caprichos governamentais criaram uma situação em que várias organizações menores estão fechando enquanto as maiores, mais versadas em marketing e peritas em atender aos sofisticados requisitos contábeis e financeiros dos doadores, estão expandindo-se. Por exemplo, uma organização administrada por refugiados sírios na Turquia diz ter experimentado dificuldades em obter financiamento internacional, apesar de ter um conhecimento local muito mais relevante do que as organizações internacionais que atraem doadores globais.1616. Lyndal Rowlands, “Supporting Local Organisations: A Syrian Perspective.” IPS News, 10 de fevereiro de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.ipsnews.net/2017/02/supporting-local-organisations-a-syrian-perspective. O relatório ao Secretário-Geral da ONU do Painel de Alto Nível sobre Financiamento Humanitário de 20161717. Nota: o coautor deste artigo Dhananjayan Sriskandarajah foi membro do painel. “High-Level Panel on Humanitarian Financing Report to the Secretary-General: Too Important to Fail - Addressing the Humanitarian Financing Gap,” ReliefWeb, 17 de janeiro de 2016, acesso em 12 de novembro de 2017, https://reliefweb.int/report/world/high-level-panel-humanitarian-financing-report-secretary-general-too-important-fail. informou que naquele ano apenas 0,2% do financiamento humanitário foi direcionado para organizações locais.
As OSCs internacionais costumam abocanhar recursos que poderiam ter sido encaminhados para organizações menores, mas igualmente eficazes. Infelizmente, se essa tendência continuar, o panorama da sociedade civil organizada começará a se assemelhar ao mercado com grandes franquias que expulsam empresas de propriedade local e enraizadas no lugar. Os doadores internacionais precisam ter consciência de que sua burocracia pode excluir as organizações que estão enraizadas nas comunidades, possuem expertise local e têm despesas gerais significativamente mais baixas do que organizações maiores com cadeias de suprimentos sofisticadas.
Em todo o mundo, a legitimidade de muitas organizações da sociedade civil está sendo questionadas em várias frentes, de políticos que as demonizam, acusando-as de serem grupos de interesses especiais desconectados da realidade, a movimentos sociais que consideram que as OSCs tradicionais são, na melhor das hipóteses, esotéricas e, na pior, cooptadas. Enquanto isso, as formas usuais com que as OSCs demonstram sua accountability – mediante o cumprimento de requisitos regulatórios e entrega de relatórios aos doadores – provavelmente não são suficientes para convencer políticos ou públicos céticos. “A accounts-ability [capacidade de prestar contas] não deve ser confundida com a accountability”, como diz um ativista indiano. “Accounts-ability” refere-se à accountability puramente contábil. Também pode ser entendida como accountability forçada de fora. Embora ela tenha seu lugar, especialmente em relação ao cumprimento de requisitos, será somente através do estabelecimento de conexões melhores e mais receptivas com as comunidades que alegam servir que as OSCs serão capazes de estabelecer uma defesa robusta contra os ataques políticos que porventura sofram.
Ir “além da accounts-ability” é alcançar uma compreensão mais profunda do raciocínio que está por trás do que fazemos enquanto sociedade civil. Isso envolve franqueza e transparência, não por motivos contábeis, mas porque são fundamentais para realizar mudanças significativas. Isso poderia incluir coisas como a tomada de decisões centradas nas pessoas, a adaptação em tempo real às necessidades dos interessados e a criação da próxima geração de promotores de mudanças sociais. Essa forma de accountability não diz respeito apenas a relatórios financeiros e transparência para os doadores, mas ao diálogo significativo com as comunidades afetadas e as partes interessadas, e a ficar de olho nos resultados mais amplos para orientar o processo de tomada de decisão organizacional.
É necessária uma resposta enérgica, global, liderada pela sociedade civil para combater os ataques às liberdades civis. Muitos de nós fizemos um bom trabalho para garantir que a realidade do fechamento do espaço civil apareça no radar da comunidade internacional, mas os esforços para lutar contra as restrições são muitas vezes duplicados e descoordenados, e muito raramente eles parecem estar produzindo uma influência positiva nos debates políticos em nível nacional sobre o papel da sociedade civil. Em um número demasiado de países, aqueles que se opõem à sociedade civil conseguem safar-se, acusando mqaliciosamente aqueles que desafiam seu poder de traidores, desconectados, corruptos e comprados por financiadores estrangeiros. Além disso, a sociedade civil deve explorar novas maneiras de falar sobre seu próprio valor e defender as liberdades civis junto aos públicos globais. Devemos deixar claro que a ativação dos direitos da sociedade civil é uma parte essencial da defesa da democracia. Para tanto, precisamos fazer alianças progressistas e trabalhar nelas, reunir massas substanciais de cidadãos e conectar as OSCs clássicas, movimentos de protesto, jornalistas, sindicatos, grupos juvenis, empresas sociais, plataformas artísticas e muitas outras partes do universo da sociedade civil. Precisamos proporcionar as plataformas e a liderança necessárias para reunir uma gama tão diversificada de partes interessadas da sociedade civil em nível regional e de todo o mundo que garanta vitórias cruciais e de curto e longo prazo a fim de recuperar o espaço civil em nível nacional e incubar novas formas de resistência e organização.
Um espaço civil robusto só pode existir dentro de uma democracia em funcionamento e, portanto, salvaguardar a sociedade civil também envolve reimaginar modelos de democracia mais participativos, com as pessoas em seu centro. Visto dessa forma, o desafio mais abrangente não é o técnico, de curto prazo, de repelir os ataques ao espaço civil, mas um desafio político de longo prazo de reimaginar um cenário mais participativo onde a democracia substantiva prospere.
Ao fazê-lo, nós, na sociedade civil, precisamos questionar o impulso divisório do “vencedor leva tudo” da democracia eleitoral, e reforçá-la com a âncora inclusiva da democracia constitucional. Em essência, a democracia eleitoral separa as pessoas de acordo com linhas partidárias baseadas em ideologias e demandas. Populistas de todo o mundo interpretam seus mandatos eleitorais como sinais para ignorar as opiniões daqueles que não votaram neles ou não concordam com eles. O constitucionalismo, por outro lado, impõe aos líderes eleitos a responsabilidade de respeitar as opiniões minoritárias e buscar políticas inclusivas do tipo que a sociedade civil apoie. Há muito a ser feito para fortalecer as instituições democráticas com seus controles e contrapesos inerentes a fim de proteger os grupos subalternos da “tirania” do populismo da direita.
Enquanto falamos, várias lutas para criar sociedades melhores estão sendo travadas através de mobilizações públicas em muitas partes do mundo. Na Romênia, centenas de milhares de pessoas que foram às ruas no início de 2017 para protestar contra a corrupção do governo forçaram o primeiro-ministro a revogar as medidas de emergência que teriam reduzido as punições para os políticos condenados por corrupção.1818. Rick Lyman e Kate Gillet, “Romania Reverses Decision to Weaken Corruption Law.” The New York Times, 4 de fevereiro de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.nytimes.com/2017/02/04/world/europe/romania-protests-corruption.html. Na Polônia, os defensores dos direitos das mulheres conseguiram deter uma lei contra o aborto regressiva que teria impedido as mulheres de terem qualquer poder sobre seus direitos sexuais e reprodutivos.1919. Robert Tait, “Thousands Protest Against Stricter Abortion Law in Poland.” The Guardian, 18 de setembro de 2016, acesso em 12 de novembro de 2017, https://www.theguardian.com/world/2016/sep/18/thousands-protest-against-proposed-stricter-abortion-law-in-poland. Na Coréia do Sul, protestos em massa contribuíram para o impeachment da presidente conservadora Park Geun-hye, que havia sido uma firme proponente do enfraquecimento dos direitos trabalhistas.2020. Sook Jong Lee, “A Democratic Breakthrough in South Korea.” Carnegie Endowment, 24 de março de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, http://carnegieendowment.org/2017/03/24/democratic-breakthrough-in-south-korea-pub-68394. Na Gâmbia, a sociedade civil mobilizou com êxito a comunidade regional e internacional para pressionar o líder ditador Yahyeh Jammeh – que certa vez prometeu enforcar os defensores dos direitos humanos – a respeitar o veredicto popular e renunciar à presidência.2121. “The Gambia: Time to Respect the Will of Gambians,” CIVICUS, 17 de janeiro de 2017, acesso em 12 de novembro de 2017, http://www.civicus.org/index.php/media-resources/media-releases/2712-the-gambia-time-to-respect-the-will-of-gambians.
Além disso, os ganhos obtidos em nível internacional mediante a adoção de compromissos da Agenda 2030 para a proteção das liberdades fundamentais e a promoção de parcerias da sociedade civil são oportunidades para a sociedade civil organizada informar ao mundo sobre o desempenho dos Estados em relação ao espaço civil e dialogar sobre a participação da sociedade civil na tomada de decisões nacionais.
Desse modo, nem todas as causas profundas da atual crise democrática global sinalizam que a sociedade civil está em declínio ou aceita uma narrativa de desempoderamento. Há muitos de nós lutando por um mundo justo, inclusivo e sustentável, levando a luta para as ruas, salas de redação e tribunais.