A política externa em direitos humanos do governo Bolsonaro
Este estudo analisa a política externa em direitos humanos do governo Bolsonaro. As hipóteses de nosso estudo são que (1) o governo iliberal de Bolsonaro, apoiado em posições religiosas do seu eleitorado, instrumentalizou a política externa porque ela permitia a ele espaço para ser ideológico; (2) e porque essa instrumentalização estava aninhada à arena eleitoral, Bolsonaro alterou radicalmente a política externa em direitos humanos do país para manter a lealdade do seu eleitorado evangélico. A partir dessas duas hipóteses, argumentamos que as mudanças estão vinculadas à reconfiguração da política externa, que privilegiou o acesso e protagonismo de organizações conservadoras evangélicas em detrimento das organizações progressistas de direitos humanos.
“O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”.11. Fernanda Vivas, “’Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã’, diz Damares ao assumir Direitos Humanos.” G1, 2 de janeiro de 2019, acesso em 26 de janeiro de 2023, https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/02/estado-e-laico-mas-esta-ministra-e-terrivelmente-crista-diz-damares-ao-assumir-direitos-humanos.ghtml. A frase foi dita por Damares Alves, Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, ao tomar posse em 2 de janeiro de 2019, já sob a presidência de Jair Bolsonaro, antecipando com clareza como as políticas do governo federal romperiam, a partir de sua natureza conservadora, autoritária e não laica, com os pilares constitucionais da democracia brasileira, inclusive em sua dimensão internacional.22. Este texto é uma versão reduzida e atualizada de um trabalho já publicado pelos autores. O artigo está disponível em: Déborah Silva do Monte e Matheus de Carvalho Hernandez, "Human rights foreign policy under Bolsonaro: pleasing the conservative constituency", Revista Videre 13, no. 28 (2021), acesso em 26 de janeiro de 2023, https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/videre/article/view/15329.
A eleição de Bolsonaro é um ponto de inflexão na história do Brasil. Sob sua gestão, em 2019, o governo brasileiro antagonizou a independência do judiciário, a liberdade de imprensa e o desenvolvimento do sistema nacional de educação, além de ameaçar diferentes formas de ativismo na sociedade civil.
Os esforços para impedir retrocessos na política externa brasileira se mostraram menos eficazes. De uma perspectiva internacional, o governo Bolsonaro minou o patrimônio político do país, vinculado a uma ação de cooperação multilateral, transformando a política externa em um catalisador para seu projeto antidireitos. Em junho de 2019, o ministro das Relações Exteriores instruiu os diplomatas brasileiros a defender a visão ultrapassada de que existe apenas o sexo biológico, com o objetivo de prejudicar os debates e impedir o uso do termo “gênero” nos fóruns internacionais dos quais o Brasil participa. Em setembro de 2019, Bolsonaro atacou a Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, ao mencionar a história de seu pai.33. Matheus de Carvalho Hernandez, "Bachelet e Bolsonaro: obviedades, desumanidades e alertas. Gestão, Política e Sociedade." Estadão, 13 de setembro de 2019, acesso em 11 de março de 2021, https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/bachelet-e-bolsonaro-obviedades-desumanidades-e-alertas/. Em outubro de 2020, o Brasil copatrocinou a Declaração sobre o Consenso de Genebra, basicamente uma declaração internacional antiaborto, juntamente com países como Estados Unidos (sob o governo Trump), Egito, Indonésia, Hungria e Uganda. Ainda neste sentido, em fevereiro de 2021, diante do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o ministro das Relações Exteriores brasileiro denunciou as medidas adotadas globalmente para combater a Covid-19, traçando uma dicotomia simplista entre saúde e liberdade.44. “Na ONU, Ernesto Araújo contesta medidas de restrição contra a covid-19”. Poder 360, 22 de fevereiro de 2021, acesso em 12 de abril de 2021, https://www.poder360.com.br/governo/na-onu-ernesto-araujo-contesta-medidas-de-restricao-contra-a-covid-19/.
Esses retrocessos, tanto nacionais como internacionais, são muito graves. No entanto, ao comparar a contenção dos retrocessos domésticos e internacionais na arena dos direitos humanos, as organizações da sociedade civil (OSC) e instituições brasileiras apresentaram diferentes níveis de eficácia em 2019 e 2020. A política externa historicamente é avessa à participação social e às contribuições de entidades políticas fora do Executivo. Contudo, a partir dos anos 2000, tornou-se um canal de mobilização de lutas progressistas e se desenvolveu com base em um processo decisório plural.55. Carlos R. S. Milani, "Atores e agendas no campo da política externa de direitos humanos," in Política Externa Brasileira: as práticas da política e a política das práticas, org. Carlos R. S. Milani e Letícia Pinheiro (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012). O governo Bolsonaro mudou essa tendência. Desta forma, a principal questão deste artigo é: Por que a dimensão dos direitos humanos na política externa brasileira sofreu mudanças radicais no governo Bolsonaro? E uma questão secundária: até que ponto o déficit democrático e a agenda antidireitos do governo Bolsonaro impactaram o desempenho das OSCs?
Nas últimas três décadas, a formulação da política externa brasileira se pluralizou com um número crescente de atores que a influenciam ou tentam influenciá-la. Essa pluralização significa que o processo de tomada de decisões é mais acessível para atores governamentais (outros ministérios e agências) e não governamentais (OSCs).66. Carlos Aurélio Pimenta de Faria, "Opinião pública e política externa: insulamento, politização e reforma na produção da política exterior do Brasil," Revista Brasileira de Política Internacional 51, no. 2 (2008): 80-97. Analisamos o Executivo (a presidência e os ministérios envolvidos com os direitos humanos na política externa) e as OSCs (tanto as progressistas como as alinhadas às preferências do governo).77. Milani, "Atores e agendas no campo da política externa de direitos humanos" (2012).
Focamos a identificação e análise de atores relevantes na formulação dessas posições conservadoras pelo Estado brasileiro nas arenas internacionais dos direitos humanos, seus interesses e recursos, bem como sua distribuição: nosso objetivo é verificar se e como as mudanças de atores e agendas, depois das eleições brasileiras de 2018, reconfiguraram o jogo e apontar novas dinâmicas de interação e a produção de novos resultados políticos no cenário doméstico e internacional.
Após o processo de redemocratização na década de 1980, os governos do PSDB e do PT (1990 a 2003 e 2003 a 2016) passaram a se inspirar por uma narrativa de política externa de direitos humanos, a qual também promoviam, independentemente da diferença em suas diretrizes e escolhas estratégicas, as gestões de ambos os partidos se alinharam ao princípio da prevalência dos direitos humanos, presente na constituição brasileira. Nenhuma dessas gestões viu o Conselho de Direitos Humanos da ONU como um inimigo, como o governo Bolsonaro fez.
Os diferentes tipos de ação escolhidos pelos governos desses dois partidos não estavam desconectados dos seus objetivos domésticos nem da constituição do país e, no âmbito dos direitos humanos, do legado da política externa brasileira, principalmente, daquela formulada após o processo de redemocratização. Na análise empírica, examinaremos como essa desconexão emerge na política externa de direitos humanos de Bolsonaro, principalmente, nas posições iliberais adotadas no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Também examinaremos como essas posições são criadas, quem são seus formuladores, bem como os beneficiários domésticos dessa estratégia e quais são os canais e atores privilegiados por essa guinada iliberal na política externa brasileira de direitos humanos.
Na esteira do atual retrocesso nos direitos humanos,88. Stephen Hopgood, Jack Snyder e Leslie Venjamuri, The Human Rights Futures (Cambridge: Cambridge University Press, 2017). exemplificado pelas mudanças na agenda internacional de Bolsonaro, as OSCs conservadoras também tentam ter acesso a esses fóruns de direitos humanos. Isso também implica uma mudança nos atores que têm acesso à formulação da política externa.
O papel das OSCs na política internacional tornou-se cada vez mais importante desde o final da Guerra Fria. Elas foram alçadas a representantes legítimas do interesse público.99. Peter Willets, Non-Governmental Organizations in World Politics: The Construction of Global Governance. Abingdon (Oxon: Routledge, 2011). Desta forma, tornaram-se atores ativos com os quais os Estados e as burocracias internacionais foram forçadas a lidar. No campo dos direitos humanos, as OSCs são agentes incontestáveis e uma parte indispensável do regime internacional. São responsáveis por pressionar os Estados e organizações internacionais a adotar, atualizar e respeitar os direitos humanos.
Em geral, os modelos analíticos consideram as OSCs como atores pró-direitos humanos, mas a atual conjuntura mundial, particularmente a situação recente da política externa brasileira, levantou alguns desafios políticos e analíticos.
Além disso, apesar dessa recente pluralização de atores com influência na formulação de políticas internacionais, a política internacional ainda permanece relativamente distante dos cidadãos e da opinião pública. Levando em consideração as mudanças substanciais feitas pelo Presidente Bolsonaro nas questões internacionais de direitos humanos, Soares de Lima e Albuquerque afirmam que “por ser um tema altamente centrado no Poder Executivo, em que a necessidade de composição de forças com o Congresso é matizada, propomos que Bolsonaro utiliza a PEB como um espaço de políticas declaratórias que buscam a fidelização de uma parcela mais radical do eleitorado”.1010. Traduzido pelos autores. Maria Regina Soares de Lima e Marianna Albuquerque, "O Estilo Bolsonaro de governar e a política externa," Boletim OPSA 1 (janeiro/março 2019): 15.
A política externa brasileira no governo Bolsonaro tem sido caracterizada como disruptiva.1111. Matias Spektor, Diplomacia da ruptura: Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje, 1 ed. (São Paulo: Cia das Letras, 2019): p. 324-338. Ressaltamos o discurso nacionalista, baseado em valores religiosos e uma forte defesa da pauta moral. A partir dessa nova perspectiva, sob o governo Bolsonaro, as relações internacionais brasileiras começaram a ser pautadas por uma crítica ao multilateralismo, principalmente, contra as instituições e organizações cuja agenda conflita com valores tradicionais, conservadores e religiosos do eleitorado mais leal ao presidente.
Essa guinada antiglobalista é justificada retoricamente pela necessidade de alinhar as ações internacionais com os valores religiosos e tradicionais de um número significativo de cidadãos brasileiros. Nesse pensamento, há uma ideia falaciosa de que a internacionalização da agenda moral por meio da política externa corresponde à sua democratização.1212. Dawisson Belém Lopes, "Deus e o diabo na terra da política externa." O Globo, 6 de janeiro de 2019, acesso em 20 de setembro de 2020, https://oglobo.globo.com/mundo/artigo-deus-o-diabo-na-terra-da-politica-externa-23348545. Ao contrário, adotar os valores de um único grupo não democratiza a formulação da política externa, antes aumenta a distância entre os cidadãos e tal política.
A tabela 1 resume os atores (da gestão Bolsonaro) nas esferas governamental e não governamental1313. Milani, "Atores e agendas no campo da política externa de direitos humanos" (2012). e suas principais arenas e estratégias. Esses elementos nortearão nossa análise apresentada na próxima seção.
Tabela 1. Atores, arenas e estratégias
Atores | Arenas | Arena principal | Estratégias |
---|---|---|---|
Presidente | Executivo Parlamentar Internacional Eleitoral |
Eleitoral | Nomear os ministros e assessores das políticas externas e de direitos humanos. Diálogo direto com os eleitores por meio de redes sociais e pronunciamentos on-line. |
Ministros (Relações Exteriores e da Mulher, Família e Direitos Humanos) | Executivo Parlamentar Internacional |
Executivo, com o objetivo de aumentar a lealdade do eleitorado de Bolsonaro | Controlar a agenda |
Coletivo RPU | Internacional Sociedade civil |
Internacional | Expressar preferências, pressão e advocacy, constranger |
ANAJURE | Internacional Sociedade civil Executivo Parlamentar |
Executivo Parlamentar |
Expressar preferências, pressão e advocacy |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Agora analisaremos os principais atores, suas preferências e os recursos que mobilizaram para moldar a política externa brasileira de direitos humanos entre janeiro de 2019 e março de 2021. Conforme mencionado anteriormente, analisamos os atores governamentais do Executivo (a Presidência e os Ministérios de Relações Exteriores e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). Também ressaltamos como as OSCs com orientações ideológicas opostas, o Coletivo RPU1414. "O Coletivo RPU Brasil é formado por 30 entidades da sociedade civil brasileira e monitora os direitos humanos no país por meio do mecanismo da Revisão Periódica Universal da ONU”. “O Coletivo RPU,” Plataforma RPU BR, (s.d.), acesso em 26 de janeiro de 2023, https://plataformarpu.org.br/o-coletivo-rpu. e a ANAJURE, começaram a atuar diante da política religiosa e ideológica de Bolsonaro.
Jair Bolsonaro venceu as eleições presidenciais de 2018 depois de uma longa trajetória de autoritarismo e discursos contrários aos direitos humanos. Bolsonaro apresentou-se como um líder capaz de destruir as políticas públicas, incluindo a política externa.1515. Spektor, Diplomacia da ruptura…, (2019). Seu estilo de governar tem particularidades como “preocupação zero com a governabilidade […]; relação de oposição e cooptação do sistema político, […] e a ampla base ratificadora de suas posições nas redes sociais, que lhe permite relativizar a oposição midiática por ele enfrentada”.1616. Leonardo Avritzer, "Política e antipolítica nos dois anos de governo Bolsonaro," in Governo Bolsonaro: Retrocesso democrático e degradação política, org. Leonardo Avritzer, Fábio Kerche e Marjorie Marona (Belo Horizonte: Autêntica, 2021): 52. Esta estratégia, chamada de (des)governo pelo autor, é mais bem representada por ministros-chave nas áreas da política pública como a de direitos humanos. Damares Alves foi nomeada como Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos por sua capacidade de restringir a política de direitos humanos, desfazer tendências e avanços anteriores e criar conflito entre a burocracia e a comunidade de políticas públicas,1717. Ibid. incluindo as OSCs.
Conforme mencionado anteriormente, os valores conservadores cristãos estão no centro da plataforma política de Bolsonaro e seu governo é formado por uma crescente direita religiosa. Desta forma, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tornou-se um espaço institucional para as ações e a consolidação desse grupo em um âmbito neoconservador e por meio de uma lógica populista.1818. Ronaldo Almeida, "A religião de Bolsonaro: populismo e neoconservadorismo," in Governo Bolsonaro: Retrocesso democrático e degradação política, org. Leonardo Avritzer, Fábio Kerche e Marjorie Marona (Belo Horizonte: Autêntica, 2021).
Desde 2018, os evangélicos no Brasil são o grupo que mais tem apoiado as ações de Bolsonaro e sua eleição e continuidade no cargo são viabilizadas, embora não exclusivamente, por esse contínuo respaldo.1919. Marcelo Ayres Camurça, "Um poder evangélico no Estado brasileiro? Mobilização eleitoral, atuação parlamentar e presença no governo Bolsonaro," Revista NUPEM 12, no. 25 (2020): 82-104. Esse apoio constante e popular reflete nas políticas e mudanças governamentais no Executivo. Os evangélicos têm uma longa trajetória política, mantendo-se próximos de outros governos, no entanto na gestão Bolsonaro, essa relação entre o poder político e grupos religiosos tornou-se orgânica e mais institucionalizada.2020. Ronaldo Almeida, "A religião de Bolsonaro: populismo e neoconservadorismo" (2021). Nesse sentido, há uma aplicação transversal dos valores neoconservadores e religiosos na estrutura governamental, com as questões de gênero, em particular, sendo desconstruídas em diferentes áreas políticas.2121. Ibid., 6526.
Além disso, Bolsonaro, como um “autocrata eleito”,2222. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Como as democracias morrem (São Paulo: Editora Zahar, 2018). tratou a oposição política como inimiga e ergueu um muro populista, separando “nós”, as pessoas com valores religiosos, e “eles”, usando a valorização da família como ferramenta. Nesse sentido, organizações internacionais como o Conselho de Direitos Humanos da ONU e OSCs progressistas foram consideradas e tratadas como inimigas.
Esta análise mostra que a política externa se aninha na arena eleitoral e como as ações internacionais de Bolsonaro foram implementadas para aumentar a lealdade do seu eleitorado, satisfazendo aqueles com valores conservadores e religiosos. Bolsonaro prometeu retirar o Brasil do Conselho de Direitos Humanos da ONU e,2323. Talita Fernandes, “Bolsonaro diz que cometeu ato falho e que jamais pensou em sair da ONU.” Folha de S.Paulo, 20 de agosto de 2018, acesso em 26 de janeiro de 2023, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/08/bolsonaro-diz-que-cometeu-ato-falho-e-que-jamais-pensou-em-sair-da-onu.shtml. embora não tenha cumprido a promessa, fez mudanças significativas nas diretrizes e decisões do país nesta organização.2424. Além das mudanças no voto do Brasil com respeito às questões de gênero, o país mudou, por exemplo, sua tendência histórica em relação ao conflito entre Israel e Palestina no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Segundo Belém Lopes (2021), o comportamento brasileiro de votação mudou com relação a diferentes itens nesta área, sempre em favor de Israel, uma mudança incomum que demonstra uma nova aliança com Israel. Este alinhamento entre Brasil, Israel e Estados Unidos também visa atender aos valores e às demandas do eleitorado religioso. Ver: Dawisson Belém Lopes, "Dois anos de uma política externa rudimentar," em Governo Bolsonaro: Retrocesso democrático e degradação política, org. Leonardo Avritzer, Fábio Kerche e Marjorie Marona (Belo Horizonte: Autêntica, 2021).
Essas mudanças significativas na política externa de direitos humanos do Brasil têm, pelo menos, dois importantes atores políticos em seu eixo: o ex-ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.2525. A política externa em direitos humanos do governo Bolsonaro tinha formuladores oficiais, como Ernesto Araújo e Damares Alves, e os não oficiais. Destacamos, assim, a importância de Filipe Martins, antigo Assessor Especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República. Sua indicação foi apoiada por Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente que presidiu a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. Assim como Ernesto Araújo, Martins influenciou o alinhamento do Brasil aos EUA durante o governo Trump e se manteve no cargo após a saída do ex-ministro Araújo.
Ernesto Araújo foi ministro das Relações Exteriores entre janeiro de 2019 e março de 2021. Ele foi o executor formal das mudanças nas tendências, discursos e ações internacionais do Brasil nas relações internacionais. Araújo, que é um diplomata de carreira, chegou ao cargo de Ministro graças às suas preferências ideológicas. Segundo as palavras de Araújo, Bolsonaro “[…] era o único líder político capaz de levar o povo ao poder, o único que acreditava na liberdade, na nacionalidade, em Deus, e em sua interação”.2626. Discurso do ex-ministro das Relações Exteriores, Embaixador Ernesto Araújo, Washington: Ernesto Araújo, “O Brasil voltou!”. FUNAG, 11 de setembro de 2019, acesso em 20 de setembro de 2020, https://funag.gov.br/index.php/pt-br/2015-02-12-19-38-42/3011.
Araújo fortaleceu o discurso nacionalista, baseado em preceitos religiosos, e a defesa da agenda moralista, com ataques às chamadas políticas globalistas.2727. Dawisson Belém Lopes, “Deus e o diabo na terra da política externa.” O Globo, 6 de janeiro de 2019, acesso em 26 de janeiro de 2023, https://oglobo.globo.com/mundo/artigo-deus-o-diabo-na-terra-da-politica-externa-23348545. Por exemplo, defendeu que a palavra “multilateralismo” deveria ser evitada ao se referir a instituições internacionais, em defesa da soberania e do sentimento nacional.2828. Diana Lott, "Em fala sobre 2a Guerra ao Conselho de Segurança da ONU, Ernesto ataca multilateralismo." Folha de S.Paulo, 8 de maio de 2021, acesso em 11 de março de 2021, https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/em-fala-sobre-2a-guerra-ao-conselho-de-seguranca-da-onu-ernesto-ataca-multilateralismo.shtml.
Os ataques ao globalismo não são apenas uma crítica ao multilateralismo ou ao funcionamento de instituições internacionais. Na visão de Araújo, o globalismo representa a combinação da economia globalizada com o “marxismo cultural”. Desta forma, a política externa brasileira foi pensada como parte de uma insurgência universal, liderada pela gestão Trump, contra o “globalismo”, “climatismo”, “racialismo”, “ideologia de gênero” e “aborto”.
Isso mostra que a política externa sob a orientação de Araújo tornou-se uma cruzada moral, em detrimento de estratégias reais e pragmáticas. A hostilidade com a China, o parceiro comercial mais importante do Brasil, em defesa e em alinhamento com os Estados Unidos de Trump, exemplifica essa cegueira e ausência de estratégias racionais.2929. Dawisson Belém Lopes, "Dois anos de uma política externa rudimentar" (2021).
Araújo tentou transformar a política externa brasileira em uma aliança liberal-conservadora (liberal na economia e conservadora nos valores) para promover uma “sociedade saudável, confiável e bem-sucedida”, como base nos valores: nação, família e laços tradicionais. Ele concordou que essas diretrizes estavam transformando o Brasil em um pária internacional e elogiou o ostracismo que ajudou a criar.3030. Ricardo Della Coletta, "Se a atuação do Brasil nos faz um pária internacional, que sejamos esse pária, diz Ernesto." Folha de S.Paulo, 20 de outubro de 2020, acesso em 13 de abril de 2021, https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/se-atuacao-do-brasil-nos-faz-um-paria-internacional-que-sejamos-esse-paria-diz-chanceler.shtml. Como resultado de tal retórica, ressaltamos os laços especiais que o Brasil formou com alguns governos conservadores como os de Israel, Hungria, Arábia Saudita, Polônia e Índia. Com exceção da Índia, esses países não representaram uma prioridade nas relações internacionais brasileiras nos governos anteriores. Essas novas relações especiais foram justificadas pelas características religiosas e ideológicas das políticas de Bolsonaro e não por razões pragmáticas. Araújo deixou o governo em março de 2021, após críticas do Legislativo e pressões da mídia e da sociedade civil.
Damares Alves é a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ela foi uma das ministras mais expressivas e uma das principais apoiadoras do governo Bolsonaro e dos seus princípios conservadores. Segundo uma pesquisa realizada em dezembro de 2019, Alves foi a segunda ministra mais popular no Brasil e a única que contava com mais apoio entre a população pobre do que entre a rica.3131. Berardo Caram, "Moro e Guedes têm alta aprovação entre ricos e baixa entre pobres, diz Datafolha." Folha de S.Paulo, 9 de dezembro de 2019, acesso em 15 de abril de 2021, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/12/moro-e-guedes-tem-alta-aprovacao-entre-ricos-e-baixa-entre-pobres-diz-datafolha.shtml. Ela é um personagem político importante, cujo papel precisa ser cuidadosamente examinado para entender a guinada na política externa.
Alves é uma pastora evangélica e advogada que, no final dos anos 1980, começou sua carreira política, mas foi somente no final dos anos 1990 que se tornou assessora de um parlamentar conservador e líder evangélico no Brasil.
Alves também foi Diretora legislativa e uma das fundadoras da ANAJURE, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos, uma importante organização para entender a guinada conservadora e antigênero da política externa de Bolsonaro. Esta associação tornou-se conhecida no Brasil por defender os direitos de professores e escolas de evitar questões políticas e de direitos humanos, principalmente, os debates sobre gênero.
Como ministra, Alves controlou uma parte importante da agenda brasileira de direitos humanos. Primeiro, deveríamos observar o nome da instituição que ela liderou: Mulher, Família e Direitos Humanos. Essa combinação de elementos já mostra o significado, o enquadramento e a escala de prioridades de sua visão ideológica. Até 2019, o Brasil nunca tinha tido um ministério dedicado à família. E “família” não representa um termo neutro e inclusivo aqui. Representa um entendimento muito estrito, conservador e heteronormativo de família, a qual é formada por um casal heterossexual e seus filhos, satisfazendo perfeitamente o eleitorado evangélico conservador de Bolsonaro. Damares disse em seu discurso de posse como Ministra: “Todas as políticas públicas neste país terão que ser construídas com base na família. A família vai ser considerada em todas as políticas públicas”.3232. Vivas, “’Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã’...” (2019). Porém, em 2020, o MMFDH lançava o Programa Município Amigo da Família, com o intuito de fortalecer laços conjugais e vínculos intergeracionais, sem mencionar, em momento algum, outros arranjos familiares, métodos contraceptivos ou violência doméstica.
No entanto, controlar a agenda envolve não apenas a capacidade de definir o tom do debate e das políticas públicas, mas também controlar quem participa (ou não) dos órgãos e processos de tomada de decisões. Em 2019, Bolsonaro e Alves extinguiram o comitê responsável por monitorar a terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), um dos programas de direitos humanos mais completos e progressistas do Brasil, criado de uma forma muito colaborativa e participativa em 2009.
A participação de Damares Alves no Conselho de Direitos Humanos da ONU refletiu seu papel na esfera nacional. Na esfera internacional, em função da natureza da política externa brasileira, ela teve que superar menos obstáculos para satisfazer livremente o círculo conservador de Bolsonaro.
Um exemplo importante das ações internacionais de Alves é o Consenso de Genebra. O Consenso de Genebra foi uma iniciativa lançada em 2020 pela ala conservadora formada por: Estados Unidos, Brasil, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda. Esses países copatrocinaram uma declaração chamada Consenso de Genebra para promover a saúde da mulher e o fortalecimento da família.3333. "Brasil assina declaração sobre defesa do acesso das mulheres à promoção da saúde," Brasil, 23 de outubro de 2020, acesso em 13 de abril de 2021, https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2020/10/brasil-assina-declaracao-sobre-defesa-do-acesso-das-mulheres-a-promocao-da-saude. O Consenso deveria fortalecer a saúde da mulher, no entanto sequer menciona a palavra “direitos” e, claro, seu conteúdo reflete um entendimento conservador, religioso e heteronormativo de família. Na realidade, a Declaração é uma espécie de manifesto diplomático antiaborto e pró-vida. Pretende, assim como Alves, reafirmar a família como unidade principal da sociedade, para evitar qualquer iniciativa internacional que possa garantir o aborto como parte do programa de saúde sexual e reprodutiva da mulher e proteger as jurisdições nacionais contra essas iniciativas.3434. Jamil Chade, “Biden sai de aliança antiaborto com Brasil; Itamaraty não muda de posição.” UOL, 28 de janeiro de 2021, acesso em 13 de abril de 2021, https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/01/28/biden-sai-de-alianca-antiaborto-com-brasil-itamaraty-nao-muda-de-posicao.htm. Após a vitória de Biden, os Estados Unidos abandonaram a iniciativa e o Brasil tornou-se o líder responsável por tentar obter mais apoio para a declaração.3535. No momento da revisão deste texto, o Brasil, já sob a presidência de Lula, se retirava do Consenso de Genebra. Ver Jamil Chade, “Itamaraty assumirá papel de Trump em agenda ultraconservadora, revela email.” UOL, 29 de janeiro de 2021, acesso em 13 de abril de 2021, https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/01/29/itamaraty-assumira-papel-de-trump-em-agenda-ultraconservadora-revela-email.htm. Ciente dessa possibilidade após o resultado eleitoral, Cristiane Britto, que sucedeu Damares Alves, e a Secretária da Família do governo Bolsonaro, Angela Gandra Martins, passaram a liderança da coalizão para a Hungria no final de 2022, como ação governamental no dia internacional da família. Informações disponíveis em: “Consenso de Genebra: Brasil transmite à Hungria a liderança do grupo de países que defendem a vida desde a concepção,” Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 8 de dezembro de 2022, acesso em 26 de janeiro de 2023, https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2022/dezembro/consenso-de-genebra-brasil-transmite-a-hungria-a-lideranca-do-grupo-de-paises-que-defendem-a-vida-desde-a-concepcao.
Este tipo de posição e coalizão afastou o Brasil de sua posição e alianças históricas com relação à saúde da mulher. Em março de 2021, o Brasil não assinou uma declaração de mais de 60 países para celebrar o Dia Internacional das Mulheres e definir uma lista de compromissos com relação à saúde da mulher.3636. Jamil Chade, “Com islâmicos, Brasil tenta esvaziar resolução sobre direito das mulheres.” UOL, 7 de julho de 2020, acesso em 20 de abril de 2021, https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/07/03/com-islamicos-brasil-tenta-esvaziar-resolucao-sobre-direito-das-mulheres.htm. O Brasil, que foi acompanhado por países ultraconservadores como Polônia, Hungria, Arábia Saudita, Egito, Rússia e China, explicou que não aderiu à declaração porque fazia referência aos direitos sexuais e apoiava os movimentos feministas, dois pontos em total discordância com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos3737. Jamil Chade, “Brasil não adere a ato de 60 democracias na ONU pela defesa das mulheres.” UOL, 8 de março de 2021, acesso em 16 de abril de 2021, https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/03/08/brasil-nao-adere-a-ato-de-60-democracias-na-onu-pela-defesa-das-mulheres.htm. e, acrescentamos, com o público conservador evangélico brasileiro.3838. Jamil Chade, “Na ONU, Damares denuncia “afronta à fé cristã” no Carnaval.” UOL, 25 de feveiro de 2021, acesso em 16 de abril de 2021, https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/02/25/na-onu-damares-denuncia-afronta-a-fe-crista-no-carnaval.htm.
No que diz respeito à política externa de direitos humanos, em 2006, o Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa3939. “Histórico,” Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa, 2006, acesso em 26 de janeiro de 2023, http://dhpoliticaexterna.org.br/?page_id=4. foi criado para aumentar a transparência, bem como a participação na elaboração e implementação da política externa brasileira de direitos humanos.4040. Ibid. Os objetivos do Comitê eram promover a criação e o fortalecimento de mecanismos formais de participação cidadã na elaboração, implementação e monitoramento da política externa brasileira de direitos humanos.4141. O Comitê foi originalmente composto por algumas das mais importantes OSCs de direitos humanos do Brasil e órgãos governamentais relevantes: a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados, o Ministério da Saúde e a Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos. Além disso, o Comitê mantinha reuniões regulares com membros do Ministério de Relações Exteriores e da Secretaria de Direitos Humanos. Rodrigo de Souza Araújo, "A crise do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: dinâmicas na posição brasileira sobre o caso," Dissertação de mestrado, Instituto de Relações Internacionais da Universidade São Paulo, São Paulo, 2017.
Uma das características mais interessantes do Comitê eram as reuniões periódicas promovidas antes e depois das sessões do Conselho de Direitos Humanos da ONU com diplomatas brasileiros. Essas reuniões funcionavam como espaços para alinhar as posições entre as OSCs e o governo, sempre que possível, e justificar para a sociedade as posições com relação a resoluções e votos, aumentando assim a transparência. Desta forma, era um canal por meio do qual as organizações de direitos humanos conseguiam monitorar de perto a política externa brasileira de direitos humanos.
O Comitê começou a enfraquecer em 2016 e 2017, quando a Presidenta Dilma Rousseff sofreu o impeachment e foi substituída por Michel Temer. Desta maneira, em 2017, as reuniões periódicas entre o Comitê e o governo brasileiro começaram a cessar. Quando Bolsonaro foi eleito com um discurso contrário aos direitos humanos, às OSCs e à ONU, os canais governamentais de participação, principalmente, o Ministério de Relações Exteriores, fecharam-se totalmente para as organizações de direitos humanos. Não foi possível manter um diálogo construtivo sobre política externa de direitos humanos entre o governo e seus agentes internacionais (como Araújo, Martins e Alves) e as OSCs de direitos humanos, já que essas organizações eram vistas pela gestão Bolsonaro como inimigas políticas.
Diante dessas restrições, as OSCs de direitos humanos mantiveram seu trabalho frente a um governo contrário aos direitos humanos, destinando todos os seus recursos para atividades de monitoramento. A RPU tornou-se o foco. As OSCs de direitos humanos deixaram de ter reuniões periódicas e construtivas com a diplomacia brasileira. Em vez disso, passaram a agir coletivamente por meio de uma plataforma de monitoramento chamada Coletivo RPU .4242. "O Coletivo RPU," Plataforma RPU Brasil, (s.d.), acesso em 12 de abril de 2021, https://plataformarpu.org.br/o-coletivo-rpu. As organizações que o Coletivo congregou são frequentemente atacadas pelo governo.
O Coletivo foi uma das entidades mais vocais ao denunciar o descompromisso da política externa brasileira com os direitos humanos. Ao comentar, por exemplo, o relatório do governo brasileiro enviado no âmbito da Revisão Periódica Universal da ONU, faz a seguinte afirmação: “O Estado Brasileiro repete no Relatório o que foi a tônica de sua atuação neste contexto: o negacionismo, o retardo e a desproteção da população, os ataques e o desmonte das políticas de direitos humanos”.4343. “Carta Aberta do Coletivo RPU Brasil sobre Relatório do Estado Brasileiro para o IV Ciclo da Revisão Periódica Universal,” Plataforma RPU Brasil, 2022, acesso em 26 de janeiro de 2023, https://plataformarpu.org.br/storage/publications_documents/fMoui8aconv1PkQ2XC9Cnmx7dwzjiu7y3VCyAyoX.pdf.
O governo Bolsonaro bloqueou de forma explícita o acesso das organizações de direitos humanos à formulação de políticas externas e seu processo de implementação. O Coletivo RPU denunciou essa postura do governo, ressaltando como as consultas à sociedade civil, no momento que antecede à RPU passaram a ser completamente pró-forma. “Isso revela a ineficácia e a baixíssima representatividade da consulta pública realizada. A sociedade civil reputa este quadro ao modo como foi feito e a ausência total de mobilização para que houvesse participação […]” afirmou o Coletivo.4444. Ibid., 2.
No entanto, se nossas hipóteses estiverem corretas e o referido governo usa essa política principalmente para satisfazer o seu eleitorado conservador e evangélico, então faz sentido que também conceda acesso ao processo de formulação de políticas externas a organizações conservadoras e evangélicas, como a ANAJURE, cofundada por Alves.
A ANAJURE é uma associação brasileira conservadora de direita fundada em 2012 e composta por advogados, procuradores, juízes e professores e estudantes de direito evangélicos. As suas atividades concentram-se principalmente na liberdade religiosa e na liberdade de expressão. A associação possui mais de 600 membros e está presente em 23 dos 27 estados brasileiros. A ANAJURE é afiliada a diferentes instituições internacionais do mesmo tipo, como o Painel Internacional de Parlamentares pela Liberdade de Religião ou Crença (IPPFoRB, sigla em inglês) e a Parceria de Liberdade Religiosa (RLP, sigla em inglês).4545. “Quem somos,” ANAJURE, 20 de janeiro de 2020, acesso em 27 de março de 2021, https://anajure.org.br/quem-somos/.
A ANAJURE realiza esforços para implementar seus objetivos, tornar-se um fórum nacional para influenciar a legislação brasileira, pressionar as autoridades e atuar internacionalmente para desenvolver laços com outras associações do mesmo tipo e construir parcerias para influenciar as discussões em organizações internacionais como a ONU. Desta forma, a ANAJURE procura atuar internacionalmente. Um objetivo institucional inclui a adesão a organizações internacionais como uma OSC autorizada a participar de forma ampla em debates, fóruns e atividades. A ANAJURE já alcançou este status na Organização dos Estados Americanos (OEA) e está em busca de conseguir o mesmo na ONU.4646. No caso da ONU, a adesão ainda não foi aprovada porque Cuba e China levantaram algumas questões sobre o trabalho que a ANAJURE realiza em países como Portugal, Estados Unidos e Jordânia. "ANAJURE concludes participation in Annual Session of the UN Committee on NGOs," ANAJURE, 29 de janeiro de 2020, acesso em 17 de março de 2021, https://anajure.org.br/wp-content/uploads/2020/01/ANAJURE.Nota_.ONU_.English-2.pdf; e Felipe Frazão, “Após China, Cuba retarda adesão de associação de juristas evangélicos na ONU.” O Estado de São Paulo, 23 de janeiro de 2020, acesso em 13 de abril de 2021, https://www.estadao.com.br/internacional/apos-china-cubaretarda-adesao-de-associacao-de-juristas-evangelicos-na-onu/. A ANAJURE é completamente alinhada às ideias e ações da política externa de direitos humanos do governo Bolsonaro, principalmente no tocante a questões como gênero, “família” e direitos LGBT. ANAJURE, por exemplo, foi uma entusiasta da participação do Brasil no Consenso de Genebra,4747. Justamente por isso, a ANAJURE teceu severas críticas à recente saída do Consenso de Genebra, promovida pelo atual governo Lula. Ver: "O Coletivo RPU," Plataforma RPU Brasil (s.d.). posição diametralmente oposta à do Coletivo RPU.4848. “(...) o país, em especial na figura do executivo, tem defendido posturas retrógradas e conservadoras em matéria de direitos humanos e se alinhado em nível internacional a países de caráter autoritário e com pouca ou nenhuma tradição.” (Coletivo RPU, 2022, p. 7).
Portanto, apesar do argumento da ANAJURE de que o seu objetivo é defender a liberdade religiosa internacionalmente, a associação está engajada em uma luta para estabelecer uma hegemonia cultural dos valores cristãos tanto no país como internacionalmente.
A política externa do Brasil é mais ideológica e menos pragmática em função dos padrões de governança (baixa participação social, baixo monitoramento e predominância do Poder Executivo, em comparação com outras políticas), além do (des)governo gerado pela estratégia política de Bolsonaro.
Tabela 2. Atores, preferências e recursos
Atores | Interesses/preferências | Recursos |
---|---|---|
Presidente (Jair Bolsonaro) | Sucesso eleitoral | Poderes de agenda Nomear ministros, assessores e membros do Supremo Tribunal Diálogo direto com seu eleitorado |
Mudanças na política externa brasileira | ||
Tratar a oposição como inimiga | ||
Ministros das Relações Exteriores (Ernesto Araújo) | Mudanças na política externa brasileira | Definição e implementação da Política Externa |
Criticar a ordem internacional multilateral, principalmente, nas questões de direitos humanos (agenda antiglobalista) | ||
Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (Damares Alves) | Política externa de direitos humanos pautada por uma visão não laica e submetida à vontade de uma maioria religiosa e vitoriosa eleitoralmente | Definição e implementação da política de direitos humanos |
Coletivo RPU | Monitorar os direitos humanos no Brasil a partir da perspectiva das recomendações da RPU | Expressar as preferências, pressão e advocacy, constranger Focar o campo internacional em função das limitações dos canais domésticos |
Lutar contra os retrocessos na política de direitos humanos | ||
ANAJURE | Promover uma visão de direitos humanos baseada nos valores cristãos | Expressar as preferências, pressão e advocacy |
Valorizar a liberdade religiosa e de expressão |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Este artigo mostra como diferentes atores atuaram na redefinição da política externa de direitos humanos no Brasil. Acreditamos que contribui para uma visão mais analítica, não apenas prescritiva, dos direitos humanos e das políticas externas de Bolsonaro.
As principais conclusões apontam para uma nova dimensão da politização da política externa brasileira: seu uso como uma ferramenta política permanente.4949. Lopes, "Dois anos de uma política externa rudimentar" (2021). Essa politização não significa que a política externa se torne mais plural. Pelo contrário, leva homogeneidade às questões de direitos humanos em todas as políticas, fortalecendo o contato e o diálogo com as OSCs alinhadas aos valores cristãos e conservadores que unem o governo, principalmente, a ANAJURE. As OSCs progressistas como a RPU devem ajustar suas estratégias para influenciar instituições internacionais, visto que os canais institucionais com o governo foram fechados ou esvaziados. Deste modo, o processo de tomada de decisão com respeito à política externa de direitos humanos tornou-se menos plural, menos conflituoso, visto que há apenas uma visão sobre a mesa, e baseado em valores cristãos.
Nossa análise ajuda a entender a complexidade do significado e o alcance do atual retrocesso nos direitos humanos. É um tipo de fenômeno transnacional, compartilhado por diferentes países, o qual também está diretamente ligado à arena eleitoral dos países e grupos nacionais e seus valores. Nesse sentido, nosso estudo de caso mostrou como o retrocesso dos direitos humanos também é composto por grupos antilaicos de forte atuação que votam, apoiam seus líderes políticos e esperam ser atendidos por eles.
Bolsonaro e seus ministros justificam uma política externa antilaica e conservadora de direitos humanos afirmando que estão atendendo à vontade de uma maioria cristã/evangélica no Brasil. No entanto, essa justificativa subverte totalmente o sentido da democracia, cuja realização plena depende da proteção dos direitos humanos das minorias e da garantia de que suas vozes sejam efetivamente representadas e ouvidas.
Após os primeiros dois anos de governo, a situação política mudou significativamente. Bolsonaro perdeu parte do eleitorado que votou nele em 2018. Mesmo com mudanças pontuais nas estratégias de campanha, Bolsonaro seguiu a mesma lógica usada durante seu governo: falar para o seu eleitorado mais assíduo e procurar formas de retê-lo. Até aqui, a política externa continuou a ser usada para tentar satisfazer e reter esse eleitorado, distanciando o Brasil da defesa dos direitos humanos na arena internacional.
Apesar do nosso esforço analítico, a recente vitória da chapa Lula/Alckmin sobre Bolsonaro e a vocação editorial da Sur nos motivam a algumas palavras prescritivas: como as organizações progressistas da sociedade civil poderão operar, em um contexto de articulação internacional da extrema direita, pensando na defesa da democracia e dos direitos humanos?
Parece-nos que o primeiro elemento é resgatar uma relação complexa com o Estado. Isso significa que será necessário reestruturar a rota de ação, não mais numa lógica de enfrentamento entre Estado e sociedade civil (única possibilidade durante a gestão Bolsonaro, tendo em vista o fechamento dos canais de participação e a identificação das ONGs de direitos humanos como inimigas). Evidentemente, o exercício de denúncia e eventual constrangimento ao governo eleito deverá estar sempre presente, especialmente na cobrança das promessas em matéria de direitos humanos, de política externa e da articulação entre elas. Entretanto, será preciso tentar recuperar uma lógica de colaboração construtiva entre Estado e sociedade civil na produção de políticas públicas e defesa da institucionalidade. É necessário cobrar a criação de canais de interlocução permanente, com institucionalidade suficiente para garantir maior estabilidade à política externa em direitos humanos, evitando novos retrocessos.
Este primeiro ponto se desdobra em mais dois: na reocupação de fóruns de participação social e na promoção/facilitação de articulação internacional entre bancadas parlamentares progressistas. Além do ingresso ou reingresso das organizações de direitos humanos nos fóruns internacionais relevantes ligados à temática, é imprescindível que as organizações ocupem espaços de participação ligados às grandes agendas de direitos sociais e econômicos. Nesse sentido, acreditamos que a temática dos direitos humanos deverá ser trabalhada de forma transversal entre os diferentes ministérios e agências governamentais.
Sobre a articulação internacional entre bancadas parlamentares progressistas, parece-nos muito importante incentivar que tais intercâmbios ocorram. As bancadas progressistas, que geralmente no sul global são minoritárias, precisam se fortalecer mutuamente e trocar boas práticas e estratégias de contenção legislativa aos retrocessos.
Mas, como nosso artigo evidenciou a partir da atuação da ANAJURE, a extrema direita se ocupa, sim, de disputar também o espaço da sociedade civil. Sendo assim, as organizações de direitos humanos precisarão atuar de modo a construir a preponderância progressista nesses espaços, articulando-se inclusive juntos a organizações e representações diplomáticas de outros países de maneira, por exemplo, a impedir que essas organizações conservadoras e retrógradas obtenham status consultivo na ONU.
Tratando especificamente do “legado maldito” do governo Bolsonaro, às organizações de direitos humanos caberá também o papel de articular iniciativas de catalogação, sistematização e divulgação dos retrocessos, desmontes e desconstruções de políticas, instituições e direitos, pois, tendo em vista a magnitude do estrago, esta tarefa não poderá ficar restrita apenas ao grupo de transição presidencial e à academia. Como o frame de memória e verdade desperta muitas tensões no Brasil, uma tática alternativa a uma comissão da verdade seria a pulverização de processos judiciais, iniciando-os pelos segundo e terceiro escalão do governo Bolsonaro, de forma a constituir um ecossistema de accountability em rede, não personificado na figura do presidente.
A missão de proteger direitos humanos e defender a democracia em um ambiente de intensa articulação internacional da extrema direita é árdua, mas o legado de Viena nos fornece um farol e uma centelha de esperança: a atuação deve estar calcada no chamado 3D, ou seja, na articulação inescapável entre direitos humanos, democracia e desenvolvimento.