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Vigilância em massa de E-mails: A próxima batalha

Anthony D. Romero

Como - apesar das recentes mudanças na legislação dos EUA - a vigilância em massa de e-mails continua a ser generalizada, e o que que devemos fazer a esse respeito.

Photo by arbyreed / CC BY-NC-SA 2.0

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RESUMO

A promulgação da Lei da Liberdade dos EUA em junho 2015 foi um momento histórico, por se tratar da primeira vez em que os poderes de vigilância do governo dos EUA foram reduzidos desde 11 de setembro. No entanto, o autor argumenta que este é apenas o início do que vem rapidamente se tornando um movimento de direitos humanos da Internet. Ele explica a legislação que foi deixada de lado pela Lei da Liberdade dos EUA, que permite que o governo dos EUA continue espionando cidadãos americanos e também os não americanos, coletando o conteúdo de seus e-mails e outras mensagens on-line. Finalmente, o autor define grupos específicos que devem pressionar o governo dos EUA para pôr fim a essa vigilância indiscriminada.

Palavras-Chave

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A compreensão popular do conceito de privacidade mudou muito desde as revelações de Edward Snowden em 2013 sobre os programas de espionagem global indiscriminados dos EUA. Antes de Snowden, poucos no campo dos direitos humanos sabiam o que significava metadados. A privacidade das comunicações eletrônicas era um assunto praticamente  inexistente nos círculos de direitos humanos. Desde então, as coisas mudaram rapidamente. Quando os crescentes poderes de vigilância do governo dos EUA vieram à público tornou-se cada vez mais claro que algo tinha que ser feito para virar o jogo e coibir os abusos na vigilância, construindo mecanismos de responsabilização reais.

A partir de uma perspectiva histórica, a Lei da Liberdade dos EUA (USA Freedom Act, no original em inglês), promulgada em 2 de junho de 2015, marca a primeira vez desde o 11 de setembro em que os poderes de vigilância do governo dos EUA foram reduzidos. Trata-se de um marco histórico, na medida em que a lei acabou com a coleta em massa de registros telefônicos de cidadãos americanos – e muitos não americanos – que vinha sendo feita pela Agência de Segurança Nacional (National Security Agency – NSA, no original) desde 2001. Além disso, a lei oferece a sensação de supervisão. A Lei prevê a representação dos interesses da privacidade no Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira (Foreign Intelligence Surveillance Court, no original). Em última análise, ela limita a capacidade do governo de armazenar informações telefônicas de metadados de cidadãos norte-americanos.

Ainda assim, a Lei não vai muito longe. Nós, da American Civil Liberties Union (ACLU) chamamos a atenção para o que será a próxima grande batalha contra a vigilância em massa: contestar o recolhimento igualmente generalizado de e-mails de cidadãos americanos, incluindo sua correspondência com estrangeiros. Este recolhimento em massa de e-mails – mantido pela Lei da Liberdade dos EUA – prova que ainda temos um longo caminho a percorrer antes que a privacidade seja plenamente respeitada. Informações recentes da mídia demonstram a magnitude do problema. Este mês, o New York Times e a ProPublica revelaram que, entre 2003 e 2013, a AT&T forneceu à NSA o acesso a bilhões de e-mails que cruzaram seu sistema de rede nos EUA.

Há duas leis que permanecem em vigor, que permitem este tipo de vigilância em massa de e-mails – a Seção 702 da Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira (Foreign Intelligence Surveillance – FISA, no original), de 1978 e a Ordem Executiva 12333, de 1981. Elas são ainda mais invasivas do que a Seção 215 da Lei Patriota (Patriot Act, no original), que chega ao fim com a Lei da Liberdade dos EUA. A Seção 215 gravou metadados – listas de registros dos telefonemas recebidos e feitos – mas não o conteúdo de áudio das chamadas telefônicas em si. Em contrapartida, estes dois dispositivos similares permitem coletar conteúdo de comunicações reais – incluindo e-mails, mensagens instantâneas e mensagens em mídias sociais – sem mandados individuais.

A Seção 702 da FISA prevê a obtenção de conteúdo, dentro dos EUA, de pessoas que estão fora dos EUA. Em 2013, havia cerca de 90.000 alvos com este perfil. Na medida em que a correspondência de cidadãos norte-americanos é incluída em tal investigação, esse conteúdo também é retido pela NSA. Em 2011 cerca de 250 milhões de mensagens foram coletadas com base na Seção 702, em sua maioria vindas de prestadores de serviços, tais como Google, Microsoft e Yahoo.

Foto por Stephen Melkisethian / CC BY-NC-SA 2.0

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Enquanto isso, a Ordem Executiva 12.333 diz respeito especificamente à coleta em massa de conteúdo a partir de bancos de dados localizados fora dos EUA. Embora o dispositivo, mais uma vez, seja teoricamente destinado a estrangeiros, as comunicações de cidadãos norte-americanos são coletadas caso façam parte de uma comunicação com um estrangeiro que esteja sendo investigado.

Como podemos pressionar o governo norte-americano para mudar tais práticas alarmantes de vigilância de e-mails? Primeiramente, é fundamental envolver as empresas de tecnologia – as cinco principais empresas de tecnologia dos Estados Unidos têm uma receita combinada de mais de meio trilhão de dólares norte-americanos e, portanto, tem forte representação nos corredores de Washington. E o governo só é capaz de acessar esses dados com a aquiescência dessas empresas. Cada vez mais, estamos vendo o setor privado tomar medidas afirmativas, a fim de fechar as “portas dos fundos” da vigilância criadas pela NSA. Além disso, os líderes em tecnologia estão começando a se envolver com organizações ligadas às liberdades civis como a ACLU e com o governo em torno do debate sobre privacidade. Certamente, o lobby da tecnologia foi um motor importante para a reforma que contribuiu para a aprovação da Lei da Liberdade dos EUA, incluindo a formação da chamada coalizão para a Reforma da Vigilância do Governo.

As empresas reconhecem que, ao fazer nada sobre o acesso por parte do governo dos dados de seus clientes, estarão prejudicando seus próprios resultados. Elas reconhecem que seria um erro pensar que, uma vez que a geração do milênio não se incomoda em compartilhar suas vidas pessoais – fotos, opiniões e histórias – on-line, eles também não se incomodariam caso o governo tivesse acesso aos seus dados sem sua permissão. Pelo contrário: esta geração exige que as empresas de tecnologia respeitem sua privacidade e parem de entregar dados para o governo. E as empresas de tecnologia estão começando a ouvir.

A pressão também precisa vir de fora dos EUA. Ela deve vir dos líderes dos países que eram espionados, como o Brasil, a França e muitos outros. E isso deve partir de cidadãos não americanos que se recusam a aceitar que a eles seja oferecido um padrão mais baixo de privacidade do que aos seus pares dos EUA. É ilógico – especialmente no contexto da World Wide Web – que os EUA ofereçam em maior grau direitos de privacidade para seus próprios cidadãos do que para estrangeiros. No mundo virtual, tal divisão não faz sentido em termos práticos. Por exemplo, ao enviar um e-mail a um cidadão americano em solo americano, se o nosso e-mail atravessar um centro de dados no exterior, este tornar-se-á mais suscetível à vigilância do governo e à intercepção. Ao não desafiar esse padrão diferenciado de proteção de privacidade corremos o risco de trair o próprio poder da World Wide Web e a ideia de que este recurso seja realmente único em todo o mundo – e não um que funcione diferentemente em cada país. Da mesma forma, oferecer proteção de privacidade superior apenas para cidadãos norte-americanos sugere que as empresas de tecnologia teriam de tratar os clientes de forma diferente com base em sua nacionalidade. Juntos, temos que reformular os direitos de privacidade não apenas como uma questão interna de direitos civis, mas no âmbito da luta mais ampla dos direitos humanos internacionais.

Por conseguinte, a Lei da Liberdade dos EUA marca um momento crucial no nascimento de um novo movimento pelos direitos humanos na Internet, do qual Snowden pode ser considerado o pai fundador. Exceto talvez pela China, o governo dos EUA é o que possui a maior capacidade técnica de realizar vigilância. A geração da Internet, em conjunto com grupos da sociedade civil e do setor privado devem exigir a revisão constante da legislação de vigilância dos EUA, nomeadamente a revogação da Seção 702 e da Ordem Executiva 12.333. Abster-se dessa ação levará os EUA a se tornarem a principal referência na definição dos parâmetros globais em matéria de vigilância e permitirá que continuem a minar a privacidade na Internet. Como Snowden disse recentemente, “Argumentar que você não se importa com o direito à privacidade, pois tem nada a esconder é a mesma coisa que dizer que você não se importa com a liberdade de expressão porque tem nada a dizer.”

Anthony D. Romero - EUA

Anthony D. Romero é o diretor executivo da American Civil Liberties Union (ACLU). Nascido em Nova York de pais porto-riquenhos, Romero graduou-se em Stanford e Princeton. É membro da Ordem dos Advogados de Nova York e foi membro de vários conselhos de organizações sem fins lucrativos.

Recebido em julho de 2015.

Original em inglês.