Ensaios

A promoção e proteção dos direitos humanos por meio de clínicas jurídicas e sua relação com os movimentos sociais

Laura Betancur Restrepo

Conquistas e desafios no caso da objeção de consciência ao serviço militar obrigatório na Colômbia

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RESUMO

Este artigo aborda o caso da ação de constitucionalidade apresentada à Corte Constitucional da Colômbia que almejava incluir a objeção de consciência entre as causas de isenção do serviço militar obrigatório como exemplo de litígio estratégico entre clínicas jurídicas e movimentos sociais. São analisados discursos dos vários participantes, ?a fim de lançar novas luzes sobre a tradução jurídica de uma reivindicação social, buscando, em especial, a forma pela qual os discursos se relacionam, são interpretados e limitados. Busca-se demonstrar que, além dos benefícios em matéria jurídica, é relevante considerar outros aspectos e consequências menos evidentes para os movimentos sociais (como a dependência de intermediação do especialista/conhecedor que traduz as reivindicações do leigo/não conhecedor para uma linguagem técnico- jurídica), quando se considera a melhor estratégia para promover e proteger suas reivindicações.

Palavras-Chave

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1.  Introdução

Na Colômbia, desde a criação da Corte Constitucional (doravante a Corte) pela Constituição Política de 1991, é comum afirmar que a proteção dos direitos humanos fundamentais e dos avanços em matéria legislativa acerca desse tema tem ocorrido principalmente por meio de sentenças “marco”1 desse órgão de controle. Provavelmente, um dos efeitos produzidos por esse desejo de apresentar os casos mais controversos à Corte é evidenciado pela ascensão de diversas clínicas jurídicas. Estas incluem, em uma diversificada linha de ação, litígios estratégicos para alcançar alterações jurídicas concretas e se tornaram um foco importante da promoção e proteção jurídica dos direitos fundamentais. Por sua vez, distintos movimentos sociais buscam cada vez mais frequentemente aliar-se a alguma clínica jurídica para apresentar um litígio estruturado juridicamente que tenha maior probabilidade de ser acatado pela Corte.

Pois bem, uma forma de analisar a relação entre as clínicas jurídicas e os movimentos sociais é examinar os resultados jurídicos obtidos, para determinar se a Corte decide a favor ou contra e/ou se modifica ou não a lei em vigor de modo favorável ao direito fundamental invocado. Ou seja, analisando a relação entre o discurso no texto apresentado (a ação) e o discurso no resultado obtido (a sentença), supondo que as reivindicações dos movimentos sociais estejam contidas na ação apresentada à Corte. Outra forma menos frequente de analisar essa relação é examinar os discursos defendidos pelos movimentos sociais interessados e o discurso jurídico-estratégico produzido com o apoio da clínica jurídica. No presente estudo, concentro-me nessa relação e na “tradução” de discursos que ocorre ali, tomando como exemplo a ação apresentada à Corte Constitucional, que almejava incluir na lei que regulamenta a prestação de serviço militar obrigatório (SMO) a objeção de consciência como causa de isenção.

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2.  Objetivo e metodologia

Este artigo busca destacar a participação de discursos distintos em ação de constitucionalidade. Assim, pretende-se analisar os resultados constitucionais a partir de uma perspectiva que abranja mais que o produto da sentença, porque, com frequência, as decisões da Corte são analisadas somente a partir da forma como constrói seu argumento e a interpretação jurídica dada à ação. Deste modo, busca-se levar em conta, também, os discursos da ação, as intervenções de cidadãos, os movimentos sociais, as discussões dos magistrados e a Sentença C-728-09 (COLÔMBIA, 2009b). Tendo em vista que, muitas vezes, para chegar a decisões “marco” houve várias tentativas de ação anteriores que fracassaram inicialmente,2 deve-se prestar atenção aos tipos de discurso empregados pelos pleiteantes e observar em que medida eles influem para alcançar progressos efetivos em matéria de direitos fundamentais por meio de sentenças “reconceitualizadoras” (LÓPEZ, 2006, p. 165).

Além disso, busca-se também rastrear quais são os interesses e as motivações dos beneficiários da ação e como estão ou não presentes no discurso jurídico. Ou seja, ver até que ponto os conteúdos das reivindicações dos movimentos são, de fato, refletidos nas reivindicações da ação e contemplados na sentença da Corte. Algo particularmente relevante, dada a proliferação de ações provenientes de alianças entre movimentos sociais e clínicas jurídicas para avançar na promoção e proteção jurídico-constitucional dos direitos fundamentais. Será realizada, então, uma análise dos discursos dos diversos participantes em um caso concreto que possibilite lançar luz sobre os avanços e as limitações da tradução jurídica de uma reivindicação social, buscando, em especial, a forma pela qual os discursos se relacionam, são interpretados e limitados quando se utiliza estratégias conjuntas em uma aliança desse tipo. Isso seguindo de perto aspectos sociológicos e discursivos identificados por Bourdieu (2000 [1987]) e Conklin (1998).3

Começo com um breve histórico acerca da aliança entre clínica jurídica e movimento social nesse caso concreto para apresentar uma ação de constitucionalidade. Então, examino o texto da ação tal como foi apresentada, tentando detectar as reivindicações contidas, para, em seguida, compará-lo com as reivindicações dos atores envolvidos em sua criação. Para tanto, baseio-me, principalmente, em entrevistas com os atores envolvidos no processo4 e documentos informativos de cada uma das organizações. Isto feito, analiso a resposta da Corte ao longo do texto da Sentença C-728-09, com ênfase no tipo de discurso utilizado, na recepção ou rejeição dos discursos da ação e intervenções de cidadãos5 e, em seguida, tento rastrear quais reivindicações da ação e das intervenções foram consideradas pelos Magistrados e a forma como foram recebidas – tomando como base as atas de discussão das seções do Plenário da Corte, nas quais foi discutido o expediente da ação, e uma entrevista com um Magistrado Auxiliar da Corte.6 Por fim, faço algumas considerações teóricas acerca dos benefícios e das limitações que ocorrem nesse tipo de procedimento, onde atua um “intermediário especializado” que busca “traduzir” e transpor as lutas dos movimentos sociais para o plano jurídico.

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3.  Contexto

Entre 2007 e 2008, a CIVIS,7 como parte de seu trabalho na Colômbia, decidiu apoiar a Ação Coletiva de Objetores e Objetoras de Consciência (ACOOC).8 O apoio incluía treinamentos, assistência financeira, defesa, acompanhamento e a articulação com outras organizações ou instituições para fortalecer o trabalho realizado pelos jovens. Em 2008, como parte desse apoio, a CIVIS propiciou o contato entre a ACOOC e membros da Igreja Menonita da Colômbia9 com o Grupo de Direito de Interesse Público (G-DIP), clínica jurídica da Universidad de Los Andes (Bogotá, Colômbia),10 para pensar estratégias conjuntas que possibilitaram o avanço no reconhecimento legal da objeção de consciência, em especial para evitar que os objetores fossem forçados a prestar o serviço militar obrigatório (SMO).

O G-DIP propôs como estratégia questionar a constitucionalidade do artigo 27 da Lei n° 48, de 1993, perante a Corte Constitucional, por não incluir os objetores de consciência no grupo de pessoas que poderiam ser isentas da prestação de SMO.11 A ação foi elaborada por membros do G-DIP e do Observatório Constitucional (doravante Observatório) da Universidad de Los Andes, em parceria (discutida e aprovada) com a ACOOC e a CIVIS, financiados pela União Europeia. A ação foi interposta em março de 2009, em nome dos cidadãos Gina Cabarcas (membro do G-DIP), Daniel Bonilla (então diretor do G-DIP) e Antonio Barreto (Diretor do Observatório) e acompanhada por inúmeras intervenções de cidadãos.

Em 14 de outubro de 2009, a Corte Constitucional decidiu, em sua Sentença C-728-09, declarar a constitucionalidade da norma questionada, mas considerou que, de fato, a objeção de consciência é um direito fundamental derivado diretamente da liberdade de consciência, portanto, não requer regulamentação para ser protegido e pode ser amparado diretamente via ação tutelar. A Corte solicitou ao Congresso que legislasse acerca do tema.

Desde então, a aliança composta pelo G-DIP, a CIVIS e a ACOOC continua trabalhando em conjunto para preparar um projeto de lei a fim de regulamentar o direito à objeção de consciência no Congresso e enfatizar a evolução dos diferentes projetos que visam a regulamentação do tema.

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4.  Os discursos e as reivindicações no âmbito da estratégia jurídica adotada

Uma primeira questão que se coloca diz respeito a saber qual é a reivindicação do mérito dos pleiteantes no caso de apresentar uma ação como a da objeção de consciência e, em seguida, determinar até que ponto coincidem as reivindicações dos movimentos sociais e as das clínicas jurídicas e até que ponto essas reivindicações são suscetíveis de serem alcançadas por meio da ação de constitucionalidade relativa a uma norma. Posteriormente, surge a questão sobre onde se devem buscar essas reivindicações: no texto da ação? Nos argumentos dos advogados que a redigiram? Nas reivindicações dos movimentos sociais? De que forma a Corte entendeu e respondeu na sentença? O quê os Magistrados almejavam transmitir com sua resposta?

Não se trata de entender o texto (ação ou sentença) como algo objetivo, independente da intenção de seus autores (pleiteantes ou juízes), pois, aceitando a ideia de Foucault (1992 [1970]), o discurso não é um simples veículo (transparente, neutro, alheio) de uma ideia (externa, significativa, subjetiva). O discurso existe materialmente com e em sua própria enunciação, trata-se de um ato singular e subjetivo com força e poder próprios e nunca é algo objetivo ou verdadeiro. Porém, isso não impede que se busque distinguir os textos (sobretudo os de elaboração coletiva e com pretensões de neutralidade e verdade como uma ação ou uma sentença judicial) dos discursos, na tentativa de entender estes últimos, analisando não só as reivindicações tal como se encontram formuladas no próprio texto, mas também as reivindicações que parecem derivar dos interesses dos autores desses textos.

Ao distinguir assim as reivindicações, não se procura separar o discurso de seu autor, mas, sim, compreender o conteúdo (aparentemente neutro, lógico, descritivo) de um texto a partir de motivações e reivindicações carregadas de poder e intencionalidade que passam a brilhar em outros textos e discursos complementares. O que parece ser a reivindicação essencial da petição em um texto nem sempre coincide com os interesses e as motivações dos participantes. Essa maneira de analisar os diferentes discursos possibilita, por exemplo, ver com maior clareza até que ponto as reivindicações de um movimento social são incorporadas em um texto como o da ação de constitucionalidade (em que medida são afetadas nessa incorporação) e até que ponto um texto como o da sentença é receptivo a determinado discurso e pode/quer, realmente, atender as reivindicações nele incluídas.

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5.  Os discursos dos pleiteantes

5.1  As reivindicações segundo o texto da ação

A ação que levou à Sentença C-728-09 (doravante a ação) é tecnicamente complexa. Sua estratégia jurídica foi elaborada durante mais de um ano como parte das atividades do G-DIP e do Observatório e contou com a participação de alunos e professores da Universidad de Los Andes. Esse trabalho criterioso e cauteloso torna-se evidente durante a leitura do texto da ação. Sua estrutura, argumentação, redação e tecnicismo denotam um trabalho realizado eminentemente por juristas. A argumentação da ação é dividida em quatro pontos. Dois argumentos técnico-jurídicos destinados a provar processualmente que a Corte tem competência para se pronunciar sobre o mérito da ação12 e dois argumentos técnico-jurídicos com a reivindicação de mérito da ação, isto é, que o caso dos objetores foi omitido das causas legais de isenção de SMO, violando, desta maneira, diversos direitos fundamentais protegidos pela Constituição.13

A construção argumentativa sinaliza expressamente a necessidade de que o legislador inclua a objeção de consciência no âmbito das causas de isenção legal, isto é, formalmente, a reivindicação de mérito é a declaratória da exequibilidade condicional ou, subsidiariamente, a inexequibilidade do artigo 27. É essa reivindicação que atribui competência à Corte para se pronunciar e é sobre ela que são construídos os pontos argumentativos da ação. No entanto, a argumentação é baseada no pressuposto de que a objeção de consciência faz parte do núcleo essencial do direito fundamental à liberdade de consciência (argumento que até agora não havia sido acolhido pela Corte) e cujo reconhecimento é, em si, uma reivindicação da ação. Podemos, então, dizer que a reivindicação do direito à objeção de consciência faz parte das reivindicações da ação proposta pelo G-DIP (se não for a reivindicação essencial), pois é apenas na medida em que a objecção de consciência é compreendida e reconhecida como um direito fundamental que a omissão legislativa das isenções de SMO pode ser entendida como uma violação dos direitos assinalados e que a solicitação de exequibilidade condicional ou inexequibilidade tem cabimento.

A ação foi acompanhada por inúmeras intervenções de cidadãos que contaram com mais de 400 adesões. Várias delas têm um conteúdo que reforça ou aprofunda diversos argumentos técnicos e jurídicos da demanda, enquanto outras incorporam outros discursos que estão além do âmbito estritamente jurídico (motivações pessoais, convicções religiosas de alguns indivíduos ou evidência histórica de suas tradições).

5.2  As reivindicações do G-DIP e do Observatório

Para o G-DIP, esse foi um litígio estratégico construído em torno de como proteger e garantir a objeção de consciência; para isso vinculou-se ao Observatório por sua expertise em direito constitucional no intuito de idealizar uma estratégia jurídica com possibilidade de êxito. Juntos criaram o argumento jurídico mencionado anteriormente.

Pois bem, essa é a reivindicação jurídica, a estratégia construída que possibilita o acesso à Corte com uma ação concreta. Trata-se de um meio (entre outros possíveis) para alcançar um fim: o reconhecimento do direito à objecção de consciência para poder evitar o recrutamento forçado de jovens objetores ao SMO. Isso foi corroborado pelas entrevistas com Antonio Barreto (2012) e Daniel Bonilla (2012), que viam o resultado da sentença da Corte como um avanço, apesar do tribunal não ter acolhido as reivindicações formais da ação.14

Assim, podemos distinguir a reivindicação formal/técnica/jurídica da reivindicação essencial de mérito que motivou a utilizar determinado argumento para transmitir essa finalidade, o que pode modificar a forma de avaliar o sucesso ou não da ação. Se ela é percebida como um caminho para reconhecer a objeção de consciência como um direito fundamental, a estratégia (a construção complexa que conseguiu levar a Corte a se pronunciar acerca do tema) alcançou seu objetivo, mas ela não o alcançou se considerarmos a recusa da Corte ao pedido da ação para alterar a norma.

5.3  As reivindicações da ACOOC e da CIVIS

Julián Ovalle (2012), membro da ACOOC e elo entre o G-DIP, a ACOOC e a CIVIS, afirma que eles “sabiam” que a estratégia proposta pelo G-DIP se “limitava” a avançar juridicamente no reconhecimento da objecção de consciência. Nesse sentido, diz haver entendido a estratégia jurídica adotada, ainda que reconheça ter tido dificuldades para ler e compreender os argumentos técnicos da ação. No entanto, apesar de comemorar o reconhecimento pela Corte da objeção de consciência como um direito fundamental, disse que lhe “parecia extraordinário” incorporar a objeção de consciência no âmbito de uma norma que regulamenta o SMO e considerá-la uma causa de isenção deste.

É extraordinário porque, para ele, a objeção de consciência tem implicações mais amplas, que incluem uma posição contra “a militarização da sociedade e do Estado” (OVALLE, 2012) refletida na existência do SMO e na impossibilidade de opor-se a ele por motivos de consciência. Ele afirma saber que essa não era a pretensão da ação e que a ação “tinha” de ser assim, pois suas reivindicações antimilitaristas “não tinham cabimento” ali. Eles confiavam no que o G-DIP (como experts) fazia em termos jurídicos e o resultado pareceu-lhes “um trabalho acadêmico fantástico” (OVALLE, 2012). Assim, embora a reivindicação acerca da objeção de consciência tenha parecido incompleta para eles (não afetava a situação militarista) ou mesmo problemática (renúncia de uma regra que regula o SMO), consideravam que os peritos sabiam como proceder. No entanto, para eles, este é um passo em uma luta mais ampla. Para Ovalle, – ter reconhecido o direito fundamental à objecção de consciência significa “dar-lhe musculatura” (OVALLE, 2012) em sua luta. Um “músculo” extra, mas insuficiente.

Ao aceitar e avaliar a estratégia desenvolvida pelo G-DIP, diz que compartilhavam as reivindicações formais, e sabiam que, em essência (e de modo limitado), se buscava lutar pelo reconhecimento de um direito, mas que isso não abrangia todas as reivindicações da ACOOC. Para eles, era clara a distinção entre o que se buscava com a reivindicação (o que esperavam da Corte) e suas motivações adicionais, e, assim, concordaram que suas reivindicações fossem traduzidas para essa luta jurídica que deixava de lado outras reivindicações mais amplas. Nesse sentido, a tradução de um discurso para outro era vista como estrategicamente interessante para ambos (G-DIP e ACOOC), pois possibilitava avanços, apesar de terem sido parciais, em suas lutas pessoais mais amplas.15

No entanto, apesar de Ovalle ter dito que entenderam e aprovaram a estratégia jurídica, com suas limitações e com o risco de uma sentença desfavorável, há ocasiões em que isso não fica totalmente claro. Isso é perceptível, por exemplo, na forma como entende os resultados da sentença e as possibilidades de prosseguir com a aliança jurídica relativa ao projeto de lei que regulamenta o direito à objecção de consciência. Assim, para eles, não é aceitável que o objetor tenha de “provar” suas convicções, mesmo que a Corte exija expressamente que se “prove” a condição de objetor. Para o G-DIP, sem que isso implique que não haja mais nada a ser feito por outras vias, se se almeja ir ao Congresso com vistas a conferir efeito ao resultado da sentença, deve-se dar continuidade ao diálogo dentro dos limites que o discurso jurídico impõe e tentar avançar rumo ao Congresso dentro dos limites da sentença. Para a ACOOC, sua luta não se restringe ou se modifica segundo o que a Corte diz e nem pelo que diz o direito. A ação foi um passo dentre muitos outros para avançar em suas reivindicações e motivações sociais. A ideia é, então, que, se existe uma lei/um direito com a/o qual concordam, irão apoiá-la/o, caso contrário, não a/o apoiarão. Todavia, eles se encontram, de alguma forma, sujeitos a continuar a luta no âmbito jurídico (perante a Corte, agora o Congresso) enfrentando as consequências que derivem de lá. Ainda que não tenham de modificar suas convicções, decerto afetarão e modificarão suas prioridades.

Então, até que ponto a participação de especialistas deixa de ser “enriquecedora” ou “útil” e passa a ser “necessária” ou “indispensável”? É, de fato, livre essa escolha de deixar aos cuidados do especialista a tradução de uma reivindicação mais ampla que não tem cabimento no discurso jurídico? Como determinar em qual momento essa tradução desnaturaliza o objeto principal da luta social? Em suma, é desejável essa apropriação por parte do discurso jurídico dos problemas sociais e políticos?

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6.  O discurso da Corte Constitucional

6.1  As reivindicações segundo o texto da Sentença C-728-09

Em muitas sentenças, o resumo das reivindicações da ação ocupa apenas alguns parágrafos ou algumas páginas, porém, nesse caso, diversos argumentos são retomados e citados de modo amplo. Isso sugere que há receptividade ao discurso técnico-jurídico da ação. Diante das intervenções dos cidadãos, a Corte demonstra um interesse variado. No âmbito das intervenções que são retomadas em maior extensão e aquelas equivalentes à média encontram-se aquelas com argumentos jurídicos. Dentre as que incorporam argumentos não jurídicos (como as convicções sociais e políticas) incluem-se apenas as da ACOOC e três histórias de vida acerca dos membros da ACOOC elaboradas por estudantes de antropologia. As outras só são mencionadas brevemente e uma foi, inclusive, ignorada.

O texto sinaliza que o problema jurídico da ação é se o legislador incorreu em omissão legislativa relativa ao violar os direitos de igualdade, liberdade de consciência e liberdade de culto por não incluir os objetores de consciência. Ou seja, a alegação acolhida pela sentença é a reivindicação técnica e jurídica, formalmente demandada no texto da ação. Posteriormente, considera haver omissão legislativa absoluta, não relativa, e que o juiz não pode adicionar conteúdo à norma. Porém, afirma que o direito à objecção de consciência decorre diretamente da Constituição (que se pode eximir do SMO) e que, como um direito fundamental, pode ser protegida por meio de ação tutelar. Insta o Congresso Nacional a regulamentar o tema, mas impõe certas condições para reivindicar-se como objetor: a pessoa deve demonstrar, por manifestações externas, que suas convicções são profundas, fixas e sinceras.

Quatro Magistrados eximiram-se de votar por considerar que deveriam acolher as reivindicações da demanda. No entanto, a existência do direito fundamental da objeção de consciência e sua possibilidade de invocá-lo para isentar-se do SMO (reivindicação que denomino “essencial” ou de “mérito”) foram aceitas por unanimidade.

6.2  Reivindicações segundo as discussões acerca dos magistrados da Corte

As atas das discussões acerca da proposta da sentença revelam a forma como os magistrados perceberam os interesses ou reivindicações almejadas com a ação e os argumentos que foram considerados no momento de decidir. Essas controvérsias, interesses e divergências podem não ficar evidentes no texto da sentença, que se apresenta como “neutro”, mas que é o resultado de uma decisão e discussão que permeiam o resultado do texto e permitem ver com maior facilidade disputas de poder que, então, são apresentadas como verdades lógicas objetivas.

Nas palavras de Bourdieu, a sentença “condensa toda a ambiguidade do campo jurídico, trata-se de um compromisso político entre exigências irreconciliáveis que?, no entanto, é apresentada como uma síntese lógica entre teses antagônicas” (BOURDIEU, 2000 [1987], p. 185). Apesar de as atas de discussão serem documentos resumidos e tendenciosos, intermediários entre as discussões, as intenções particulares dos magistrados e as formulações utilizadas em público, nem por isso sua análise mostra-se menos interessante, uma vez que conferem outra perspectiva às motivações dos magistrados.

Coube à magistrada María Victoria Calle apresentar o projeto da proposta. Este retomava quase em sua totalidade as reivindicações da ação e declarava a constitucionalidade condicional por omissão legislativa relativa aos objetores de consciência. Nas atas, observam-se diversas discussões acerca de conteúdos técnicos da ação, particularmente quanto aos avanços amplos e vagos que poderiam derivar da declaratória de exequibilidade condicional e a possibilidade ou não de assimilar os objetores aos indígenas e as pessoas com deficiência (que acabou sendo o argumento pelo qual foram rejeitadas as reivindicações da ação). Porém, junto com esses aspectos técnicos, a discussão abrangeu outros temas que mostram que os magistrados não estavam percebendo as reivindicações do caso apenas por meio do texto da ação e nem a partir de uma análise técnico-jurídica.

Foi discutido o papel das intervenções dos cidadãos, a importância que devia ser atribuída a estas e as liberdades ou limitações de conteúdos considerados “políticos”. Assim, foi debatido se elas incluíam uma reivindicação adicional para a ação com conteúdos ofensivos em relação às Forças Armadas. Esses dois aspectos mostram-se interessantes porque houve inúmeras intervenções, todas variadas: algumas provenientes de centros ou organizações jurídicas e outras de movimentos sociais que lutam pela objecção de consciência e que explicaram seus motivos para se declarar objetores, incorporando, assim, um discurso adicional ao da ação. Alguns utilizaram elementos técnico-jurídicos (proteção do direito internacional ou vínculo entre a objeção de consciência e os direitos à liberdade de consciência e de culto) e outros utilizaram um discurso pessoal, narrando as motivações que os impedem de fazer parte de uma entidade armada.

Pois bem, os magistrados se referem às “intervenções de cidadãos” como um grupo assimilável. Para alguns, essas intervenções não devem ser incluídas de modo representativo em uma sentença da Corte Constitucional, sob o argumento de que “a Corte não deve entrar no jogo dessas organizações” (magistrado Pretelt) (COLOMBIA, 2009d, p. 10) e que “o juiz constitucional só pode ter discurso jurídico, não político” (magistrado Vargas) (COLOMBIA, 2009d, p. 11). A necessidade de “não entrar no jogo” significa que, para alguns Magistrados, isso faz parte da estratégia de um “litígio estratégico”, do qual devem desconfiar. De acordo com o magistrado Sierra, esse tipo de litígio:

utiliza as ações públicas previstas na Constituição para obter o reconhecimento de direitos, mas também para alcançar objetivos de caráter político, nesse caso, garantir que não haja nenhuma obrigação de vincular-se ao serviço militar […] e, em última análise, para que não haja exército
(COLOMBIA, 2009d, p. 11).

Ou seja, o magistrado Sierra lê como reivindicações do litígio argumentos que vão muito além do texto da ação, razão pela qual supomos que por “litígio” referem-se, então, à ação acompanhada pelas intervenções e que por “intervenções” referem-se apenas àquelas nas quais certos objetores explicam sua concepção da guerra e sua visão de que os exércitos aumentam a violência, deixando de lado todas as outras intervenções. Para o magistrado, os conteúdos das intervenções incluem reivindicações amplas que não se limitam a argumentos técnicos e jurídicos e, portanto, chama a atenção para que não haja engano: a Corte deve concentrar-se apenas no jurídico e não em outro tipo de discurso.

Da mesma forma, o magistrado Pretelt chama a atenção de seus colegas para não se deixarem enganar, porque:
50% das intervenções (56 de 115)16 correspondem a organizações às quais pertencem os pleiteantes – esvaziando todo o seu ódio contra o exército – o que reduz o peso que se almeja deduzir a partir de uma suposta participação cidadã. Afirmou que a Corte não deve entrar no jogo dessas organizações.
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(COLOMBIA, 2009d, p. 10).

O magistrado Pretelt não especifica a quais intervenções se refere, tampouco diz quem entende como demandantes. De acordo com a ação, os pleiteantes são os cidadãos Cabarcas, Barreto y Bonilla. Obviamente, uma rápida pesquisa mostraria que todos eles trabalhavam na Universidad de Los Andes, mas nenhum deles é membro das organizações que apresentaram uma intervenção cidadã. De fato, fazer campanha para obter intervenções fazia parte da estratégia empregada pelo G-DIP, mas este não é membro de nenhuma contestadora. Parece, então, referirem-se diretamente aos próprios objetores, autores de intervenções cidadãs e aliados de algumas das organizações internacionais que aderiram ou fizeram outras intervenções.

Entretanto, além de decidir em qual medida deveriam ser levadas em consideração as intervenções cidadãs, foi discutido se estavam sendo insultadas ou denegridas as Forças Armadas. Foi dito que as intervenções buscavam, na realidade, abolir o exército (magistrado Sierra) (COLOMBIA, 2009d, p. 11), que se equiparava as Forças Armadas à guerrilha (magistrado Pretelt) (COLOMBIA, 2009d, p. 10) e que apesar dos “cidadãos serem livres para expor suas teses, isso não os exime de poder inclinar-se a posições políticas” (magistrado Sierra) (COLOMBIA, 2009d, p. 13). Isso levou a magistrada relatora a terminar tratando de defender sua proposta esclarecendo que se destacava o papel e a função desempenhados pelas Forças Amadas na Colômbia (COLOMBIA, 2009d, p. 14).18

A assimilação dos pleiteantes com os autores das intervenções cidadãs, a leitura atribuída ao que supõem serem suas “verdadeiras reivindicações”, somada aos adjetivos empregados para descrever o “litígio estratégico” e o “jogo” no qual querem levar a Corte a “entrar”, demonstra a desconfiança e as reservas de vários dos Magistrados ao estudar esse expediente. Pode-se perguntar se a decisão adotada – segundo a qual aceitar a omissão legislativa relativa deixava uma porta aberta muito vaga, que se mostrava perigosa e incontrolável, está relacionada com um receio ou uma desconfiança mais concretos de entrar no jogo das organizações que denigrem as Forças Armadas e que buscam abolir os exércitos por meio de estratégias como o reconhecimento da objecção de consciência. Pois bem, a construção técnica “neutra” (BOURDIEU, 2000 [1987], p. 183), empregada no texto da sentença, não demonstra nenhum desses medos ou reivindicações em relação aos argumentos “políticos” das intervenções (nem a uma eventual “cumplicidade” dos pleiteantes).

Por fim, houve consenso de que o direito de formular a objeção é fundamental e, portanto, de aplicação imediata, protegido pela tutela. A proposta da magistrada Calle foi rejeitada (5 votos contra, 4 a favor) e foi aprovada (5 votos a favor, 4 contra) a proposta alternativa formulada pelo magistrado Mendoza de declarar exequível o artigo em questão e adicionar à parte dispositiva que se incita o Congresso para que “à luz das considerações dessa providência, regule o que concerne a objeção de consciência diante do serviço militar” (COLOMBIA, 2009d, p. 16).

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7.  Avanços e limitações da tradução jurídica de uma reivindicação social

O caso da ação de objeção de consciência constitui um exemplo dos tipos de alianças existentes entre os movimentos sociais que consideram que, para participar do plano jurídico, é necessário ou pelo menos propício, aliar-se a “especialistas” que lidam com a linguagem técnica e jurídica. Muitos desses “especialistas” têm, por sua vez, agendas políticas e sociais claras e gerenciam estrategicamente a linguagem técnico-jurídica para alcançar uma mudança ou avanço social e político. Clínicas jurídicas como o G-DIP incluem entre suas tarefas adiantar litígios de alto impacto com o claro objetivo de apoiar causas defendidas por grupos habitualmente marginalizados ou discriminados no campo jurídico. Agem como intermediários entre os movimentos sociais, que lutam por uma causa concreta que os afeta diretamente, e a instância jurídica (no caso, judicial) com o intuito de obter, no plano jurídico, um avanço, como o reconhecimento de um direito fundamental.

A relação entre o “especialista”, “profissional” ou “conhecedor” de certa linguagem técnica e o indivíduo alheio a esse conhecimento, que se apresenta como “cliente”, “aliado” ou “beneficiado” (mas, em todo caso, “não especialista” ou “leigo” em relação a essa perícia), sempre é complexa. Consciente de que clínicas como o G-DIP atuam com cuidado e reflexão e de que a realidade e o trabalho que ocorrem ali se tornam mais complexos do que este artigo é capaz de apresentar, podemos, no entanto, perguntar (indo além do caso concreto do G-DIP) até que ponto a luta no plano jurídico pode transmitir e, de fato, traduzir os interesses dos movimentos sociais com os quais atua (nesse caso, os da ACOOC) e permitir que avancem em sua própria luta pela objeção de consciência.

Isso, nos termos de Bourdieu (2000 [1987]), significa analisar a relação entre os “leigos” e os “profissionais”. Para o autor, essa relação traz consigo diversos problemas devido ao desequilíbrio de poder que gera, pois há uma concorrência pelo monopólio do acesso aos recursos jurídicos, que ajuda a aprofundar a separação social entre leigos e profissionais (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 160-161). Isso se torna particularmente claro na esfera judicial, onde a sentença é o resultado de uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 180). A separação entre a visão e a linguagem técnica, entre o discurso do especialista e o do leigo, produz a construção de outra realidade, que implica uma “desapropriação” para o cliente/leigo ao traduzi-la para a linguagem técnica. Isso se dá a partir da própria criação do espaço judicial, que deixa de fora aqueles que não estão preparados para participar do jogo, especialmente em matéria linguística, pois não possuem os conhecimentos técnicos necessários e, portanto, acabam sendo excluídos.

Quando os especialistas (advogados, juízes, conselheiros jurídicos etc.) formulam tecnicamente o que consideram ser o problema juridicamente relevante, as reivindicações adequadas de uma ação a partir de uma perspectiva jurídica, as normas aplicáveis ?ao caso etc., criam uma lacuna entre sua visão técnica/especializada do mundo e a visão leiga/vulgar que tem o cliente/beneficiário/não especialista. E essa separação constitui “uma relação de poder que estabelece dois sistemas diferentes de orçamento […], duas visões de mundo” (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 181-182). Nessa separação “se impõe um sistema de exigências cujo núcleo é a adoção de uma posição abrangente, particularmente evidente em matéria de linguagem” (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 181-182).

A desapropriação e a relação desigual de poder não se dão somente quando uma reivindicação “vulgar”, “não técnica” é traduzida para uma “jurídica”, “técnica”, mas sim a partir do momento que se vê essa tradução como necessária. Cria-se um espaço em que apenas a competência técnica (qualificada, manejada somente por especialistas) torna-se indispensável, enquanto que se desqualifica e exclui aqueles que não possuem as ferramentas técnicas, a linguagem apropriada para competir nela (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 181). Em toda essa construção da realidade social, os “especialistas” monopolizam uma lógica (do problema e da solução), que é completamente hermética e inacessível aos leigos, e “criam a necessidade de seus próprios serviços ao constituir como problemas jurídicos os problemas expressos em linguagem comum, pelo fato de que os traduzem para a língua do direito” (BOURDIEU, (2000 [1987], p. 189-190).19

Para Conklin (1998), o discurso jurídico dá-se entre “conhecedores” e “não conhecedores”; o autor entende o discurso jurídico como um discurso de segundo nível, no qual se transforma a experiência original do sujeito não conhecedor afetado (por um dano, um sofrimento vivido) em uma série de afirmações alheias que representam esses sentimentos de modo indireto, por meio de termos jurídicos. No ato de transformação em discurso jurídico, uma história se converte em “fatos” dispostos de modo abstrato e padronizado. Ocorre um trabalho de “intelectualização” que diz “representar” a experiência do outro, e que, na verdade, transforma o “significado” da história vivida em um objeto externo, expresso em termos técnicos que são familiares e intuitivos para a audiência diante da qual são apresentados, mas se distanciam do próprio sujeito afetado. Essa transformação e o distanciamento ocorrem independentemente da simpatia ou não que se tenha pelo sujeito afetado:

Posso simpatizar com a testemunha […]. Posso oferecer Kleenex […]. Porém, carregado com minha terminologia especial, a enunciação do meu cliente torna-se uma frase que eu ressituo em uma cadeia coerente de sinais que faz sentido para mim, como conhecedor profissional. […] Eu escolho aquela configuração que parece mais fidedigna. […]
A testemunha, assim, torna-se “um caso”.

(CONKLIN, 1998, p. 60, tradução livre)

Entretanto, além dessa transformação, uma vez que o não conhecedor tem acesso ao discurso jurídico e aos seus tecnicismos, daí em diante ele só pode representar seus sofrimentos/interesses/lutas por meio das representações elaboradas pelo conhecedor (CONKLIN, 1998, p. 53). Torna-se, assim, dependente da intermediação do conhecedor para transmitir suas próprias experiências nesse discurso. Com o discurso jurídico, a experiência de alguém se torna uma língua de sinais que compõem o que ele denomina “discurso de gênero secundário”,20 no qual a pessoa diretamente envolvida já não pode mais se comunicar em seu próprio idioma: “a pessoa lesada torna-se um não conhecedor, um estranho em relação ao discurso jurídico […]. O parecer legal ou julgamento ou argumento do profissional conhecedor funciona, então, como o local para o deslocamento de significados incorporados” (CONKLIN, 1998, p. 57, tradução livre).

Nesse sentido, no caso concreto da demanda de objecção de consciência, os especialistas (G-DIP e o Observatório) idealizaram uma estratégia jurídica para “traduzir” uma reivindicação comum (reconhecer o direito fundamental à objecção de consciência) no discurso jurídico. Embora pareça claro desde o início que essa parte da estratégia jurídica seria limitada a esse ponto de reconhecimento do direito, as consequências derivadas dali e as restrições impostas aos não especialistas depois de entrar no jogo a partir do plano não jurídico já não parecem tão claras. A “confiança” de que fala Julián Ovalle (2012), acerca do trabalho realizado pelo G-DIP diante da ação, é acompanhada pela indiferença contra a estratégia particular (argumento técnico) adotada. Não importa se se optou por falar da omissão legislativa ou não, ou se era questionado o artigo X ou Y. Tudo fazia parte de uma carta a mais para jogar dentro de uma luta ampla, uma maneira de entrar no discurso jurídico acompanhados por um “especialista”; o que importa para eles é “para que serve o resultado”, “o que podem fazer com isso” (OVALLE, 2012).21 No entanto, a necessidade de participar desse jogo dessa forma, de participar com um especialista que traduza (e que nessa tradução restrinjam-se as reivindicações) têm implicações concretas e futuras.

Não há dúvida quanto aos benefícios concretos. Obteve-se um avanço claro e certeiro, que, como diz Ovalle, “dão musculatura jurídica” à sua luta: a Corte modificou sua jurisprudência, aceitou a existência desse direito fundamental, sua possibilidade de invocação diante do SMO e sua proteção constitucional direta. Agora, têm um “direito” reconhecido que serve como ferramenta em sua luta. Isso, muito provavelmente, não teria sido possível sem a aliança. A “tradução” para uma linguagem jurídica, sem dúvida, possibilitou uma maior recepção da demanda por parte da Corte, ajudou a alcançar uma mudança social e política como uma decisão técnico-jurídica constitucional e incluiu aspectos substanciais de sua luta. Porém, de alguma forma, sua luta foi condensada e representada em argumentos e reivindicações jurídicas concretas dentro desse “discurso secundário”, no qual, para seguir participando, é necessário um especialista tradutor.

Como diz Bourdieu (2000 [1987], p. 189-190), a estratégia “tradutora” implica certa “desapropriação” por parte do “beneficiário”, que, agora, vê-se preso em um discurso que não gerencia e que o limita. A luta por meio do discurso jurídico acerca do tema do reconhecimento da objecção de consciência levou a Corte, por exemplo, não só a reconhecer a existência dos objetores como a incitar o Congresso para que o tema fosse regulamentado. Essas decisões impõem, agora, que os objetores continuem a luta dentro do campo jurídico.22

Cabe perguntar, então, se a distância com a qual Julián Ovalle percebe a luta da ACOOC contra as restrições derivadas da sentença e do processo regulatório que se apresenta diante do Congresso é, de fato, uma manifestação de independência do poder do discurso jurídico e a relação de necessidade do intermediário, ou melhor, uma manifestação de um discurso que o despojou, no qual foi relegado e que podem deixá-lo como mero receptor dos efeitos que são decididos em instâncias e discursos aos quais não tem acesso e que, inexoravelmente, terão efeitos e poder sobre ele e sua luta. Embora sejam muitos os benefícios dos avanços jurídicos, em matéria de proteção e promoção dos direitos fundamentais, também é relevante levar em conta esses aspectos e essas consequências, menos evidentes para os movimentos sociais, antes de considerar a melhor estratégia para promover e proteger suas reivindicações.

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Notas

1. Segundo López (2006, p. 141), “Uma linha jurisprudencial é uma questão ou um problema jurídico bem definido, sob o qual se cria espaço aberto a possíveis respostas […]. [É] uma estratégia conveniente para traçar as soluções que a jurisprudência encontrou para o problema e para reconhecer, se existir, um padrão de desenvolvimento das decisões”. Pois bem, em uma linha jurisprudencial pode haver diversos tipos de sentenças “marco”, ou seja, “sentenças que têm um peso estrutural fundamental dentro [da linha]” (LÓPEZ, 2006, p. 162).

2. Como ocorreu, entre outras, com ações sobre a descriminalização do aborto e o reconhecimento de diversos direitos dos casais do mesmo sexo.

3. É importante esclarecer que a interação e o trabalho conjunto entre clínicas jurídicas e movimentos sociais são bastante ricos e complexos e não se limitam aos aspectos aqui descritos. O objetivo deste artigo não é simplificá-los, mas trazer à tona alguns aspectos que podem mostrar-se problemáticos.

4. Entrevistamos Daniel Bonilla (2012), então diretor do G-DIP e coautor da ação, Manuel Iturralde (2012), diretor do G-DIP, Antonio Barreto, diretor do Observatório Constitucional e coautor da ação, Lukas Montoya (2012), pesquisador do G-DIP e responsável pelo tema da objeção de consciência, Julián Ovalle (2012), membro fundador da ACOOC, elo entre G-DIP-ACOOC-CIVIS a partir da ação e autor de uma das histórias de vida apresentadas como intervenção de cidadãos, e Tito Cortés (2012), membro da CIVIS e responsável pelo elo entre G-DIP-ACOOC-CIVIS.

5. Foi consultado o expediente D-7685 nos arquivos da Corte Constitucional com o texto integral da ação e as intervenções (COLOMBIA, 2009a).

6. Obtivemos cópia das atas de discussão da Sala Plena n. 53 e 54, de 7 e 14 de outubro de 2009, nas quais foi discutido o expediente D-7685 (COLOMBIA, 2009c, 2009d). Também entrevistamos Aquiles Arrieta (2012), Magistrado Auxiliar do despacho da Magistrada María Victoria Calle, responsável pela primeira apresentação desse expediente e coautora do Voto Divergente.

7. “A Civis é uma organização da cooperação internacional sueca […]. O principal objetivo […] é contribuir para a construção de uma Cultura de Paz sustentável por meio do apoio e fortalecimento de ações não violentas dos jovens e de suas iniciativas para aumentar a promoção e defesa dos direitos humanos”. Disponível em: http://civis.se. Último acesso em: Mar. 2013.

8. A ACOOC é um coletivo, com sede em Bogotá, que busca “o respeito pela liberdade de consciência e o direito de recusar-se a participar direta ou indiretamente da guerra”. Disponível em: http://objetoresbogota.org/que-es-acooc/acooc/. Último acesso em: Mar. 2013.

9. “A Igreja Cristã Menonita da Colômbia é uma igreja histórica de paz [que] tem promovido a não violência, a transformação de conflitos e a construção da paz” (COLOMBIA, 2009a, Expediente D-7685, Intervención de la Iglesia Cristiana Menonita de Colombia, p. 285).

10. O G-DIP “tem três objetivos fundamentais: primeiro, construir pontes entre a universidade e a sociedade; segundo, promover a renovação do ensino jurídico […]; e, terceiro, contribuir, por meio do uso do direito, para a solução de problemas estruturais da sociedade, em especial aqueles que afetam os grupos mais vulneráveis ??da nossa comunidade”. Dentro de suas linhas de trabalho se encontra o “litígio de alto impacto”. O litígio de alto impacto é uma modalidade de litígio estratégico que visa a contribuir para a solução de um problema social estrutural. Envolve, principalmente, a apresentação de ações públicas de inconstitucionalidade, ações de tutela e ações populares”. Extraído da página disponível na internet em: <http://gdip.uniandes.edu.co/index.php?modo=clinica>. Último acesso em: Nov. 2013. Este texto é centrado no litigio na Corte Constitucional.

11. O artigo 27 isenta do SMO em qualquer ocasião e sem pagamento de cota de compensação militar: “a. Os indivíduos com limitações físicas e sensoriais permanentes [; e] b. Os indígenas que residam em seu território e preservem sua integridade cultural, social e econômica” (COLOMBIA, 1993).

12. Não há coisa julgada e não há precedente jurisprudencial (ou que aplique pelo menos dois dos critérios para justificar a alteração de precedente).

13. São observados os requisitos de omissão legislativa e essa omissão legislativa causa a violação dos direitos fundamentais à igualdade (artigo 13), à liberdade de consciência (artigo 18) e à liberdade de cultos (artigo 19).

14. Para Barreto (2012) o extremo tecnicismo da ação foi uma estratégia deliberada, uma estratégia que se voltou contra eles, pois a Corte rejeitou a ação com uma resposta igualmente técnica. Porém, por fim, obtiveram um importante avanço (não esperado) na reivindicação do mérito, que era o reconhecimento do direito fundamental à objecção de consciência.

15. Como também ocorreu com ações sobre os direitos de casais do mesmo sexo: houve progresso com o apoio de “advogados, professores de direito e, em geral, um grupo de profissionais que atuaram como aliados e como participantes dessa estratégia. […] Atuam como intermediários e tradutores de ações sociais para a linguagem do direito constitucional” (ALBARRACÍN, 2011, p. 23).

16. É curioso que nas discussões o Magistrado Sierra fale de 115 intervenções de cidadãos e a Magistrada Calle fale de cerca de 400. No expediente constam 11 escritos independentes (além do conceito do Ministério da Defesa e da Procuradoria), muitos dos quais tiveram a adesão de um total de 440 organizações ou indivíduos. A sentença reitera e resume 10 escritos e indica o número de adesões a cada um deles.

17. Para o Magistrado Pinilla, “a Corte Constitucional não pode ser instrumento desse litígio estratégico […] abusivo” (COLOMBIA, 2009d, p. 12). O Magistrado Vargas (COLOMBIA, 2009d, p. 11) também defendeu uma redução das intervenções, enquanto os Magistrados Calle e Henao defenderam a importância das intervenções. A Magistrada Calle manifestou: “não é sempre que em um processo são apresentadas cerca de 400 [intervenções]. São exposições sérias e prudentes que tornaram possível aprofundar a discussão do tema (COLOMBIA, 2009d, p. 14).

18. O Magistrado Henao expressou seu “desacordo com as desqualificações das organizações que intervieram […]. Pessoalmente, não percebeu insultos ou ofensa às forças armadas, mas conceitos estritamente acadêmicos” (COLOMBIA, 2009d, p. 12).

19. “A constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais […]. A competência jurídica é um poder específico que possibilita controlar o acesso ao campo jurídico, pois pode determinar quais conflitos merecem nele entrar e a forma específica com a qual devem revestir-se para constituir debates propriamente jurídicos. Somente essa forma pode proporcionar os recursos necessários” (BOURDIEU, 2000 [1987], p. 191-192).

20. “Um gênero […] é certo modo de perceber o mundo. Trata-se de um fenômeno coletivo que organiza o enunciado e os textos. […] O discurso jurídico é um gênero secundário por conta de depender de forma parasitária dos gêneros primários [….]. Um gênero secundário reproduz novamente a experiência do outro. Ele recoloca um enunciado em cadeias de sinais que outros membros do gênero secundário reconhecerão” (CONKLIN, 1998, p. 55).

21. Nesse sentido, consideram o resultado da Corte positivo, mas insuficiente e que deixou nas mãos do Congresso uma tarefa perigosa.

22. Ovalle (2012), enquanto não considera pertinente modificar suas reivindicações para “fazer uma boa lei”, afirma que é “completamente necessário” continuar participando do discurso jurídico e, em especial, do legislativo.

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Referências

Bibliografia e outras fontes

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Arrieta, Aquiles. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, abril.

Barreto, Antonio. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, abril.

Bonilla, Daniel. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, mayo.

Bourdieu, Pierre. 2000 [1987]. Elementos para una sociología del campo jurídico. En: BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunther. La fuerza del derecho. Trad. Carlos Morales de Setién Revina. Bogotá: Siglo del Hombre Editores. p. 153-220.

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COLOMBIA 1991. Constitución Política. Gaceta Constitucional No. 116 de 20 de julio de 1991.

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CONKLIN, William E. 1998. The Phenomenology of Modern Legal Discourse. The Juridical Production and the Disclosure of Suffering. England: Ashgate-Darmouth.

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Foucault, Michel. 1992 [1970]. El Orden del Discurso. Trad. Alberto González Troyano. Buenos Aires: Tusquets.

GRUPO DE DERECHO DE INTERÉS PÚBLICO (G-DIP). Universidad de los Andes. Disponível em: http://gdip.uniandes.edu.co/. Último acesso em: Mar. 2013.

ITURRALDE, Manuel. 2012. Entrevista [concedida a Laura Betancur]. Bogotá, abril.

LÓPEZ MEDINA, Diego Eduardo, 2006. El derecho de los jueces. Obligatoriedad del precedente constitucional, análisis de sentencias y líneas jurisprudenciales y teoríadel derecho judicial. 2ª ed. Bogotá: Legis Editores.

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Jurisprudência

COLOMBIA. 2009a. Corte Constitucional. Expediente D-7685. Demanda e intervenciones.
______. 2009b. Corte Constitucional. 14 de octubre. Sentencia C-728-09. Disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2009/c-728-09.htm. Último acesso em: Mar. 2013.
______. 2009c. Corte Constitucional. 7 de octubre. Acta de discusión, Sala Plena, No. 53.
______. 2009d. Corte Constitucional. 14 de octubre. Acta de discusión, Sala Plena, No. 54.

Laura Betancur Restrepo

Laura Betancur Restrepo é advogada, filósofa e doutoranda em Direito na Universidad de Los Andes (Bogotá, Colômbia). Possui Diplôme Supérieur d’Université (DSU) em Direito Internacional Público pela Université Panthéon-Assas (Paris 2) e Diplôme d’Études Approfondies (DEA) em Direito Internacional e Organizações Internacionais pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1).

E-mail: l.betancur52@uniandes.edu.co

Original em espanhol. Traduzido por Evandro Freire.

Recebido em agosto de 2013. Aprovado em outubro de 2013.