Algumas incongruências entre políticas de drogas, saúde coletiva e direitos humanos no Brasil
Neste artigo, o autor traz uma perspectiva médica sobre políticas de drogas no Brasil e seus desafios. Dois dilemas ético-assistenciais oriundos do modelo atual de combate às drogas no país são tratados com mais detalhes. Em primeiro lugar, o autor aborda a real aplicação no Brasil das estratégias de redução de danos (RD) e sua tensão com o modelo calcado na abstinência. Depois, analisa o financiamento público de comunidades terapêuticas para o tratamento de usuários problemáticos de drogas fundadas na ideia de abstinência. O autor conclui ponderando sobre como esses dilemas contradizem e minam a política oficial de redução de danos.
Em março de 2012, doze entidades ligadas às Nações Unidas emitiram uma declaração conjunta criticando os centros de detenção e reabilitação compulsória para usuários de drogas.11. ILO et al., “Joint Statement: Compulsory Drug Detention and Rehabilitation Centres.” UNAIDS, mar. 2012, acesso em maio de 2015, http://www.unaids.org/sites/default/files/en/media/unaids/contentassets/documents/document/2012/JC2310_Joint%20Statement6March12FINAL_en.pdf. Apesar da enorme divergência do status regulatório de centros desse tipo, os relatos de abusos e de riscos sanitários de serviços inadequados para o tratamento de usuários de drogas são monotonamente semelhantes em todo o mundo, embora mais graves no Leste da Ásia, na Europa Oriental e na América Latina.
Entretanto, essa manifestação dos organismos internacionais pode ser considerada nada mais do que contraditória. A resposta pragmática, gestada pela atual estrutura proibicionista dos acordos globais – e reforçada pelo sistema de organismos internacionais – apequena qualquer tentativa de se encontrar saídas para o problema do uso de drogas que não sejam calcadas, de forma variada, na erradicação da demanda.22. Damon Barrett, “Security, Development and Human Rights: Normative, Legal and Policy Challenges for the International Drug Control System.” International Journal of Drug Policy 21, no. 2 (2010): 140–44; Luciana Boiteux, Luciana Peluzio Chernicharo and Camila Souza Alves, 2014. “Prohibition, Religious Freedom, and Human Rights: Regulating Traditional Drug Use,” in Prohibition, Religious Freedom, and Human Rights: Regulating Traditional Drug Use, ed. Beatriz Caiuby Labate and Clancy Cavnar, 1st ed. (Berlin/Heidelberg: Springer-Verlag, 2014), 1–23.
Com um inimigo claro a se combater – o uso de drogas ilícitas, independentemente das evidências de seu impacto na saúde pública –, não é uma operação difícil colocar as pessoas envolvidas nesse contexto – os que usam e/ou comercializam essas substâncias – também na posição de inimigos. Diversas questões exemplificam incongruências deste tipo entre política de drogas, saúde coletiva e direitos humanos. Entre elas podem ser citadas a internação forçada, a oposição à legalização da cânabis, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal e a resistência ao uso terapêutico de substâncias proscritas.
Entre outros temas igualmente importantes em uma discussão sobre direitos humanos e política de drogas de um ponto de vista de saúde, abordo aqui a questão do abuso de direitos e ausência de efetividade em centros de reabilitação para usuários de drogas. Neste texto, trato brevemente de dois dos dilemas ético-assistenciais oriundos do modelo atual de se lidar com o uso problemático de drogas e os apresento dentro do contexto contemporâneo brasileiro. Em primeiro lugar, analiso a real aplicação no Brasil das estratégias de redução de danos (RD) e sua tensão com o modelo calcado na abstinência. Depois, trato do financiamento público de comunidades terapêuticas para o tratamento de usuários problemáticos de drogas, que caminham na contramão da política oficial de redução de danos.
A redução de danos é uma estratégia pragmática em relação ao uso abusivo de drogas que não pressupõe a necessidade de abstinência. Ela é – ou deveria ser – voltada principalmente para pessoas que não querem ou não conseguem parar de usar drogas, e seu foco se volta principalmente para mitigar os impactos negativos desse consumo e promover a saúde do usuário. Nesse sentido, vale notar que há uma interessante literatura que discute a abordagem da redução de danos e sua interface com os direitos das pessoas que usam drogas.33. Helen Keane, “Critiques of harm reduction, morality and the promise of human rights.” International Journal of Drug Policy 14, no. 3 (2003): 227–32; Neil Hunt, “Public health or human rights?” International Journal of Drug Policy 16, no. 1 (2005): 5–7. O Brasil foi cenário, no fim do século XX, de ações pioneiras de redução de danos em relação ao uso de drogas injetáveis. Essas ações nasceram dos sanitaristas e ativistas ligados às áreas de HIV/AIDS e saúde mental. Elas não ocorreram sem polêmicas, com os seus responsáveis tendo que se haver com processos por apologia ao uso de drogas quando tentavam estabelecer, no fim da década de 1980, um programa de troca de seringas na cidade portuária de Santos, situada no Estado de São Paulo.
Com o tempo, as ações de redução de danos foram se estabelecendo, embora nem de longe fizessem parte do cenário usual das iniciativas brasileiras no campo das drogas. Ainda assim, ações de redução de danos se mantiveram, de forma isolada, em cidades brasileiras pontuais, como Salvador e Campinas. Embora a Política Nacional Antidrogas já tivesse oficializado as ações de redução de danos – ainda que de maneira tímida – em 2001, a estratégia se tornou oficialmente a principal abordagem brasileira para o uso problemático de substâncias por parte do Ministério da Saúde a partir de 2003,44. Letícia Vier Machado e Maria Lúcia Boarini, “Políticas sobre drogas no Brasil: A estratégia de redução de danos.” Psicologia: Ciência e Profissão 33, no. 3 (2013): 580–95. conforme o grupo político ligado historicamente aos defensores da redução de danos se estabeleceu no poder.
“Não se pode dizer que um espaço que trate basicamente de usuários em busca de abstinência possa ser considerado um local voltado à redução de danos”
Entretanto, apesar de política oficial, o conjunto de serviços financiado pelo Estado brasileiro para o tratamento do uso problemático de substâncias – os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) – ficou a reboque de outros dispositivos cujo modelo principal era o tratamento de transtornos mentais severos. No discurso oficial da saúde, a atenção primária – composta pela rede de profissionais nos centros de saúde que oferecem o primeiro atendimento à população – deveria também ser um local de atendimento para demandas ligadas ao uso de substâncias. Entretanto, as equipes de Saúde da Família (modelo no qual se centra a atenção primária brasileira) têm se considerado pouco capazes de cuidar de usuários que abusem de substâncias, em geral encaminhando-os para serviços especializados.55. Bruno J. B. Fontanella et al., “Os usuários de álcool, atenção primária à saúde e o que é ‘perdido na tradução.’” Interface -Comunicação, Saúde, Educação 15, no. 37(2011): 573–85.
Além de potenciais críticas vinculadas à relativa ineficiência do modelo CAPS para a “clientela AD”, já que este foi desenvolvido originalmente para atender as necessidades de reinserção social de pacientes com diagnósticos de psicoses, os CAPS AD têm uma missão paradoxal. Ao mesmo tempo em que seu funcionamento deve ser centrado no modelo de redução de danos – uma estratégia voltada principalmente para cenas de uso, e não à abstinência – seu público é, na maior parte das vezes, composto quase que exclusivamente por usuários que se encontram em estágios de seu problema em que a busca pessoal ocorre, muitas vezes, por abstinência do uso, como já foi demonstrado em outros países.66. Neil McKeganey et al., “What are drug users looking for when they contact drug services: Abstinence or harm reduction?” Drugs: Education, Prevention, and Policy 11, no. 5 (2004): 423–35.
Devemos lembrar que, embora os tratamentos centrados em abstinência possam também fazer parte do horizonte da redução de danos,77. G. Alan Marlatt, “Harm reduction: Come as you are.” Addictive Behaviors 21, no. 6 (1996): 779–88. não se pode dizer que um espaço que trate basicamente de usuários em busca de abstinência possa ser considerado um local voltado à redução de danos. Assim, a tensão decorrente da afiliação “oficial” a um modelo dentro de um cenário não tão adequado para sua aplicação não é algo a ser desprezado.
Por outro lado, até a emissão da portaria do Ministério da Saúde brasileiro que estabeleceu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em 2011,88. Brasil, Ministério da Saúde, Portaria 3.088 de 23 de dezembro de 2011, Brasília-DF, 2011. não havia formas de financiamento federal claras para ações de redução de danos. A partir da oficialização da RAPS, essas ações puderam pela primeira vez ser, de certa maneira, alocadas em um dispositivo chamado Consultório na Rua, um programa de atenção primária à saúde da população de rua que, contudo, traz fortes componentes de redução de danos ao uso de drogas em sua prática.
Ainda assim, apesar da oficialidade, a redução de danos está longe de ser uma política consolidada no Brasil. A profissão de redutor de danos jamais chegou a ser regulamentada e as ações no território que não sejam cobertas pelo Consultório na Rua são financiadas unicamente por iniciativas locais. Serviços que não exijam abstinência dos usuários são exceção, não há salas destinadas ao uso seguro de drogas, e programas inovadores como o De Braços Abertos (iniciado em 2014), que provê moradia, alimentação e trabalho a usuários problemáticos de crack na cidade de São Paulo sem exigir abstinência em troca, são exceções honrosas, mas pontuais.
Tem havido um recente crescimento das forças políticas conservadoras no país, que muitas vezes têm relações com grupos religiosos e estão intimamente associadas aos modelos de tratamento centrados na abstinência. Isso tem dificultado a compreensão das potencialidades e indicações da redução de danos e não tem facilitado o progresso e a expansão dessa abordagem, apesar de seguir determinada oficialmente como a política oficial do Estado brasileiro.
O Brasil teve um vertiginoso crescimento no número de seus CAPS AD: de zero em 2002 a mais de quatrocentos na atualidade.99. Brasil. Datasus. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, acesso em junho de 2015, http://cnes.datasus.gov.br/. Apesar disso configurar um investimento que precisa ser reconhecido, o país ainda é claramente deficitário na atenção às demandas geradas por usuários do sistema de saúde que procuram tratamento para o uso problemático de drogas.
Certamente, a figura mais tradicional no cenário de cuidados para essas pessoas, no país, é composto pelas comunidades terapêuticas (CTs). O modelo de recuperação de usuários de drogas proposto pelas CTs brasileiras é semelhante ao de inspiração americana, e mescla o modelo da comunidade terapêutica, que serviu como um dos pilares para o movimento de reforma da atenção à saúde mental, com elementos dos programas de doze passos dos Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA).1010. Laura Fracasso, “As mudanças no processo de criação das comunidades terapêuticas,” in Capacitação para comunidades terapêuticas: curso para líderes, voluntários, profissionais e gestores de comunidades terapêuticas, ed. Florence Kerr-Corrêa e Vitore A. Z. Maximiano (Brasília-DF: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2013), 37–45. Nesses programas há diversos pressupostos, mas destaco aqui o princípio de que o uso problemático de drogas é, para todas as pessoas, uma doença crônica e incurável, e uma oportunidade para desenvolver a espiritualidade. Ambas as noções são essenciais para a estrutura do modo de ser das comunidades terapêuticas, e a segunda traça uma identificação com grupos que, diante de um vácuo quase absoluto deixado pelo Estado até o século XXI, investiram nestes tipos de centro de tratamento: evangélicos, católicos e espíritas.
As CTs brasileiras são extremamente heterogêneas, e as estimativas quanto ao número delas no Brasil são elusivas.1111. Pablo A. Kurlander Perrone, “A comunidade terapêutica para recuperação da dependência do álcool e outras drogas no Brasil: mão ou contramão da reforma psiquiátrica?” Ciência & Saúde Coletiva 19, no. 2 (2014): 569–80. Um dos problemas é o uso extremamente flexível do termo, algo que algumas das federações de CTs manifestam interesse de combater. A rigor, uma CT deve ser centrada na convivência voluntária e não envolve a administração de tratamento medicamentoso. Visto dessa forma, faria sentido o que muitas dessas comunidades pleiteiam: não serem consideradas serviços de saúde. No entanto, a experiência mostra que há diversos serviços – especialmente de natureza privada – que não respeitam esses critérios e ainda assim se denominam CTs.
“A possibilidade de qualquer coerção, ainda que muito sutil, na direção da doutrina de uma determinada religião é, no mínimo, questionável em uma ação financiada pelo Estado, ainda mais em um cenário onde há sérias denúncias”
Dois problemas complexos que ainda não foram satisfatoriamente resolvidos pelo Estado brasileiro são a regulamentação e o financiamento desses serviços. Contrário ao que solicitam as CTs organizadas em federações, na portaria do Ministério da Saúde brasileiro que estabeleceu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) as CTs são incluídas como dispositivos da rede de saúde, o que exigiria que elas operassem em conformidade com a regulação em vigor no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), que, como já dissemos, inclui as estratégias de redução de danos, algo que as comunidades terapêuticas rejeitam de forma veemente. Recentemente foi emitida uma resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) com o objetivo de tentar ordenar o emaranhado das CTs.1212. Brasil, Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, Resolução CONAD n. 01/2015. Brasília-DF, 2015. Críticas severas foram levantadas por diversos atores sociais nos campos sanitário e de direitos humanos brasileiros por entenderem que a resolução estabelece mecanismos regulatórios excessivamente frouxos em espaços onde há risco de trabalho escravo, entre outras violações a direitos humanos, e doutrinação religiosa como forma de tratamento sob o financiamento estatal.
Não obstante a regulação ainda instável, o financiamento às CTs já está acontecendo em instâncias municipais, estaduais e até federais, via Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), o que é potencialmente problemático em um Estado que se define constitucionalmente como laico. A existência de instituições de cunho religioso que usem suas doutrinas como forma de tratamento não é, em si, um problema, se elas forem um recurso filantrópico sem verbas estatais, destinado unicamente ao cuidado de suas comunidades de fé. Em um contexto de saúde pública, no entanto, isso significa o financiamento público do proselitismo para qualquer cidadão brasileiro. Agnósticos, ateus e pessoas que professassem fés minoritárias não teriam opção pública senão serem submetidos ao tratamento de um determinado matiz religioso caso fossem encaminhados a uma CT confessional.
Embora o componente da espiritualidade possa, em teoria, ter um efeito positivo nos cuidados de quem faz uso problemático de substâncias, a possibilidade de qualquer coerção, ainda que muito sutil, na direção da doutrina de uma determinada religião é, no mínimo, questionável em uma ação financiada pelo Estado, ainda mais em um cenário onde há sérias denúncias.
“Atualmente, no Brasil, não há clareza de que a defesa dos direitos das pessoas que usam drogas seja, na prática, uma prioridade”
Um relatório sobre violações aos direitos humanos em serviço de tratamento para usuários problemáticos de drogas, realizado pelo Conselho Federal de Psicologia brasileiro, apontou até onde podem chegar esses abusos.1313. Conselho Federal de Psicologia, Relatório da 4a Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. 2a ed. (Brasília-DF: Conselho Federal de Psicologia, 2011), acesso em maio de 2015, http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/03/2a_Edixo_relatorio_inspecao_VERSxO_FINAL.pdf. É difícil quantificar quantas comunidades estão nas situações graves apontadas – cárcere privado, trabalho análogo à escravidão, desassistência sanitária, entre outras –, mas mesmo supondo que elas sejam excepcionais, isso exigiria do Estado brasileiro o estabelecimento de regras rígidas e fiscalização intensa, uma vez que as forças políticas simpáticas às CTs parece não permitir que – salvo raras exceções no país – serviços laicos e atrelados à RAPS sejam suficientemente constituídos para aqueles que necessitem e desejem o acolhimento transitório em serviços residenciais. Estes dispositivos, as chamadas Unidades de Acolhimento, existem, mas de uma forma geral se estabeleceram de forma incipiente.
Como até mesmo este breve relato é capaz de apontar, podemos perceber que as respostas ditas oficiais nas políticas de drogas configuram um campo em plena disputa. Mesmo após doze anos da manutenção de um grupo político supostamente associado à defesa da RD, do fortalecimento do SUS e dos direitos humanos, essa defesa não tem força suficiente para vencer a matriz de pensamento conservador que se afina à ética da “guerra às drogas” que se encontra incrustada no ideário de uma nação que é cotidianamente bombardeada com ocorrências de violência, e torna a discussão sobre o que é política oficial e o que é o campo da execução pragmática destas políticas um terreno eivado de contradições.
Mais grave do que isso, a defesa firme dos direitos humanos também é minada por essas contradições. Atualmente, no Brasil, não há clareza de que a defesa dos direitos das pessoas que usam drogas seja, na prática, uma prioridade. Da mesma forma, a noção de que haja necessidade de uma fiscalização firme e de um questionamento do modelo das CTs como serviços públicos está em evidente estado de tensão. Por conta desse cenário, portanto, é relevante que as entidades comprometidas com os direitos humanos nesse país estejam atentas, presentes e atualizadas, pois certamente precisarão estar prontas a contribuir e reduzir danos que nascem desses paradoxos.