Primeiras observações sobre uma experiência na cidade autônoma de Buenos Aires
O objetivo deste artigo é apresentar uma experiência concreta de política pública de segurança que está sendo implementada na Cidade Autônoma de Buenos Aires (Argentina): o Plano Nacional de Participação Comunitária em Segurança (PNPCS), lançado em abril de 2011 pelo Ministério da Segurança do país. O plano tem como um de seus objetivos principais a difusão de um novo paradigma de “segurança democrática”. Proponho-me a analisar alguns dos conflitos que surgiram na implementação desse plano, focalizando duas questões: a) as resistências à mudança na relação entre a polícia e a comunidade; e b) as resistências derivadas do confronto entre a agenda do Ministério e as agendas de organizações da sociedade civil. Argumento que ambas as questões remetem ao encontro conflitante entre o novo paradigma de “segurança democrática” e o que denominarei de “cultura política vicinal” de participação em segurança.
O objetivo deste artigo é apresentar uma experiência concreta de política pública de segurança que está sendo implementada na Cidade Autônoma de Buenos Aires (Argentina). Essa experiência permite refletir sobre o papel da participação cidadã e do Estado na difusão de uma nova concepção de “segurança democrática”. Em dezembro de 2010, em um contexto deteriorado por um processo de ocupação de terras na cidade de Buenos Aires que havia sido violentamente reprimido,1 criou-se o Ministério de Segurança da Nação. Desde os primeiros anúncios e atividades (realizadas para destravar e resolver pacificamente as ocupações de terras mencionadas), a nova gestão manifestou a vontade de propor objetivos e instrumentos baseados em critérios estabelecidos por uma noção de “segurança democrática”. Um dos elementos de mudança é a implementação sistematizada da participação cidadã2 por meio do Plano Nacional de Participação Comunitária em Segurança (PNPCS), lançado oficialmente em abril de 2011. Este plano foi projetado para funcionar como uma instância de gestão de informação e de aplicação de práticas de prevenção, mas também como um veículo de difusão do novo paradigma de “segurança democrática” que deveria substituir, com o tempo, outras noções de cunho repressivo, centradas nas soluções penais e na criminalização da pobreza. A implementação do PNPCS resultou em alguns êxitos interessantes, bem como no surgimento de conflitos, obstáculos e desafios próprios do início de um processo que é pensado como parte de uma mudança cultural.
O método escolhido para a análise e exposição dessa experiência supõe que o objetivo do trabalho sobre políticas públicas não seja somente a sua enunciação, mas também a descrição do contexto e a análise da implementação. Os dados para trabalhar este último aspecto provêm do trabalho de campo e da aproximação dos atores que venho realizando dentro de minha pesquisa de doutorado.3 A estrutura do artigo é a seguinte: em primeiro lugar, tentarei expor alguns dados necessários para compreender a complexidade do contexto no qual é implementada a política pública analisada. Em seguida, trabalharei sobre a definição da noção de “segurança democrática” adotada pelo Ministério de Segurança da Nação na descrição dos dispositivos de participação projetados para difundi-la e também sobre algumas das mudanças e os resultados que já podem ser observados depois dos primeiros seis meses de funcionamento do PNPCS. Por fim, proponho-me a analisar alguns dos conflitos que surgiram durante a implementação, enfatizando duas questões: a) as resistências à mudança na relação entre a polícia e os cidadãos; e b) as resistências decorrentes do confronto entre a agenda do Ministério e as agendas de organizações da sociedade civil. Argumento que ambas as questões remetem ao encontro conflitante entre o novo paradigma de “segurança democrática” e o que chamarei de “cultura política vicinal” de participação em segurança.
O contexto no qual essa nova gestão propõe uma estratégia territorial de participação e mudança cultural é complexo. Na Argentina, durante os últimos quinze anos, os discursos de “demagogia punitiva” estiveram na ordem do dia na comunicação política, nos meios de comunicação de massas e nas receitas de alguns “especialistas” (CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES, 2004; KESSLER, 2009; SOZZO, 2005). Por outro lado, o carácter errático e pendular das políticas postas em prática por diferentes instâncias do Estado (nacional, provinciais, municipais) no que diz respeito à participação cidadã provocou fenômenos de frustração e, no melhor dos casos, de auto-organização ou de autonomização das experiências participativas. Esses dois fatores (ampla circulação de discursos de demagogia punitiva, presença escassa e frustrante do Estado) contribuíram para o surgimento do que chamarei de uma “cultura política vicinal” em relação à segurança que será caracterizada mais adiante, mas da qual é pertinente já mencionar que é marcada por interpretações fortemente influenciadas por representações de senso comum de cunho repressivo no que diz respeito à definição das agendas da segurança cidadã. Simultaneamente, as atividades do Acordo de Segurança Democrática, estabelecido em 2009 e ao qual me referirei mais adiante, constituíram um contrapeso aos discursos repressivos na esfera pública e ofereceram o fundamento do novo paradigma de “segurança democrática” assumido pelo ministério. Desse modo, a entrada em ação desse novo paradigma produz inevitavelmente um conflito entre culturas políticas que apresenta dinâmicas muito interessantes para serem analisadas do ponto de vista dos desafios concretos que a difusão de uma concepção de “segurança democrática” deve enfrentar.
O outro dado contextual fundamental tem a ver com o estatuto legal e político da Cidade Autônoma de Buenos Aires. Esta cidade é, desde 1880, a capital da República Argentina. Durante quase todo o século XX esteve sujeita a um regime de “federalização” que implicava que suas autoridades executivas não fossem eleitas pelos habitantes, mas designadas pelo Presidente da República. Entre as várias consequências dessa ausência de autonomia, interessa aqui destacar uma em especial: a impossibilidade de contar com uma força policial própria e específica. Esse lugar era ocupado pela Polícia Federal Argentina. Em 1996, a cidade torna-se finalmente autônoma e suas autoridades são, pela primeira vez, eleitas pelos cidadãos. A Constituição da cidade sancionada naquele mesmo ano afirmava, em seu artigo 34, que “A segurança pública é um dever próprio e irrenunciável do Estado e é oferecida com equidade a todos os habitantes”, e fixava a centralidade da participação cidadã nas estratégias de prevenção do delito, sustentando que “O Governo da Cidade colabora com a segurança cidadã desenvolvendo estratégias e políticas multidisciplinares de prevenção do delito e da violência, projetando e facilitando os canais de participação comunitária”. Apesar dessas declarações de boas intenções, as políticas de segurança na cidade foram marcadas pela impossibilidade de chegar a um acordo com o governo nacional para transferir a Polícia Federal ao âmbito do governo da cidade. O fato de não contar com uma polícia própria, junto com a falta de decisão política de todas as instâncias estatais para sustentar as experiências de participação, provocou fenômenos cíclicos nos quais conviviam, às vezes em um mesmo território, de maneira justaposta e desarticulada, diversas iniciativas de participação cidadã em segurança: “Conselhos de Segurança de Bairro” organizados pelo Governo da Cidade em 1998; “Conselhos de Participação Comunitária” organizados pela própria Polícia Federal e pelo Governo Nacional em 1998; “Plano Piloto” organizado pela Direção Nacional de Política Criminal, dependente do Ministério de Justiça da Nação, no bairro de Saavedra, entre 1997 e 2000. Esses momentos se alternavam com outros períodos de ausência total de iniciativas de participação em segurança. Entre 2003 e 2006, chegou-se a um acordo entre os governos local e nacional, e durante esse período funcionaram com certa regularidade as assembleias vicinais do Plano Nacional de Prevenção do Delito (PNPD) (CIAFARDINI, 2006; LANDAU, 2008). Foi nesse contexto que o Legislativo da cidade sancionou em 2005 a Lei 1.689, que organiza e regula o funcionamento do Conselho de Segurança e Prevenção do Delito e que, em seu Artigo 11, consagra a participação comunitária em segurança como um direito dos habitantes da cidade e um dever do Estado. Apesar de ter conseguido esse reconhecimento legal enquanto direito, com o abandono do Plano Nacional de Prevenção do Delito, a participação comunitária entrou em um novo limbo depois de 2006. Em 2008, a posse de uma gestão de caráter conservador levou à criação de uma nova força policial (a Polícia Metropolitana), mas não à transferência das forças federais. Desse modo, desde 2009 convivem na cidade duas forças policiais: uma que responde ao Governo Nacional e uma força nova que responde ao Governo da Cidade.
No momento em que o Ministério de Segurança da Nação projeta e executa o novo Plano Nacional de Participação Comunitária em Segurança, o território escolhido para começar sua implementação (ou seja, a Cidade Autônoma de Buenos Aires) se encontra governado, como já dissemos, por uma gestão de posição ideológica oposta à do Governo Nacional. O Governo da Cidade mostra uma concepção de segurança desagregada e contraditória em seus discursos, mais orientada para o aumento da vigilância e da repressão em suas práticas concretas. Assim, foram vetadas iniciativas de organização da participação cidadã,4 ao mesmo tempo em que se defendeu publicamente o endurecimento das leis e do Código de Contravenções como modos de “reduzir a insegurança” (MINISTERIO DE SEGURIDAD DE LA CIUDAD DE BUENOS AIRES, 2010). Os maiores esforços da gestão do Governo da Cidade se centraram na multiplicação das câmaras de segurança em espaços públicos e na organização de uma força policial (a Polícia Metropolitana), supostamente pensada como uma “polícia de proximidade”, mas que já protagonizou vários escândalos em relação a casos de espionagem, e para a qual não se criou nenhuma instância de controle civil ou de auditoria externa (CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES, 2008). Dessa forma, o contexto dá conta da chegada de uma política pública de participação cidadã que busca promover uma concepção de segurança democrática em um território no qual a segurança deve ser cogerida com outra instância estatal que defende uma concepção vinculada à demagogia punitiva e que fez todo o possível até agora para obstaculizar a implementação de dispositivos de participação.
Em 2009, um número considerável de especialistas, pesquisadores, ativistas e políticos da Argentina assinou o Acordo de Segurança Democrática (ASD). Seu documento fundamental sistematiza o que se entende por “segurança democrática” como novo paradigma. Trata-se de conseguir que o Estado assuma a criação de instituições de segurança “comprometidas com valores democráticos e com a rejeição de políticas demagógicas e improvisadas”, da mano dura e da delegação da segurança nas polícias. Entre os delineamentos que uma política de segurança democrática deve seguir se encontram:
A criação de uma polícia eficaz na prevenção, de alto profissionalismo e devidamente remunerada; uma justiça penal que investigue e julgue em tempo oportuno aqueles que infringem a lei, garanta a plena observância das regras do devido processo e da defesa em juízo, e um sistema penitenciário que assegure condições dignas de encarceramento e de execução da pena com sentido de ressocialização.
(ACUERDO DE SEGURIDAD DEMOCRÁTICA, 2009, p. 2).
Também se prescreve a decisão política de promover uma gestão democrática das instituições de segurança, a desativação das redes de delitos, a gestão policial não violenta nos espaços públicos e a manutenção de condições dignas para o cumprimento de penas orientadas à ressocialização. É relevante para o tema aqui tratado a relação sugerida entre a “segurança democrática”, entendida como uma concepção ampla e integral da segurança que busca reduzir “a violência em todas suas formas”, e a participação cidadã. A questão da participação cidadã não aparece tematizada explicitamente, embora se aluda a ela quando se afirma, por um lado, que “o projeto e a implementação de políticas democráticas devem surgir de diagnósticos baseados em informação veraz e acessível ao público” e que as forças policiais, por outro lado, devem estar integradas com a “comunidade e os governos locais na prevenção social da violência e do delito” e controladas por instâncias de caráter externo e civil.
Em junho de 2010, os integrantes do ASD apresentaram sua proposta à presidente argentina. Seis meses depois, quando a crise do Parque Indo-americano deixou novamente claro o esgotamento do modelo de segurança baseado no autogoverno das forças policiais, ocorreu a criação de um novo Ministério de Segurança da Nação cuja concepção de segurança está baseada nas recomendações do ASD. Vários especialistas convocados a integrar essa nova gestão provêm de organizações que assinaram o ASD ou que defendem concepções muito similares. No que diz respeito à participação cidadã, criou-se dentro da Secretaria de Políticas de Prevenção e Relações com a Comunidade uma Direção Nacional de Participação Comunitária, sob a chefia de Martha Arriola, uma especialista de ampla trajetória em questões de participação cidadã em segurança5 e uma das impulsionadoras do ASD. Assim, o PNPCS, oficialmente lançado em 4 de abril de 2011, se propõe a ter como missão “contribuir para promover o desenvolvimento do novo paradigma de segurança pública na comunidade”, um paradigma que é descrito como “de gestão de conflitos”, em oposição a um “paradigma de ordem” já esgotado que “reduz o conflito sempre a expressões negativas e se traduz em respostas meramente repressivas”, tendo em vista “sua manifesta incompatibilidade com a ordem constitucional e democrática”. (MINISTERIO DE SEGURIDAD DE LA NACIÓN, 2011a).
Na resolução 296/11 do Ministério, que cria as mesas de bairro como esfera de participação, está dito que
O Ministério de Segurança da Nação promove o desenvolvimento de um modelo de segurança democrática que implica realizar ações que incidam na dimensão cultural da sociedade para as quais a participação popular constitui uma das estratégias centrais.
(MINISTERIO DE SEGURIDAD DE LA NACIÓN, 2011e).
Na mesma resolução, a participação também é recuperada de uma perspectiva de direitos humanos, fazendo-se referência a várias regulamentações e declarações internacionais na matéria.6 Desse modo, a participação cidadã e o novo paradigma de “segurança democrática” ficam indissoluvelmente associados. Contudo, se em uma de suas dimensões a participação cidadã pode ser concebida como um direito, por outro lado é inegável que ela também pode ser abordada como uma técnica de governo passível de ser articulada em dispositivos orientados conforme diferentes objetivos. Nesse caso, é preciso aprofundar-se no projeto dos dispositivos para verificar que a participação é efetivamente concebida, em um horizonte de médio a longo prazo, como uma experiência de mudança cultural fundamental para difundir e tornar sustentável no tempo uma nova concepção de “segurança democrática”; mas também surge, ao ser projetada de um modo específico, como um instrumento de governo orientado para cumprir o objetivo de recuperar o controle civil da segurança. Nesse último sentido, o dado essencial é, obviamente, a vontade expressa dessa nova gestão de terminar com anos de um autogoverno policial que é produto não somente das resistências corporativas ao controle externo, mas do desentendimento do Estado, e da sociedade em geral, em relação ao tema (SAÍN, 2008). Essa recuperação do governo civil da segurança é um dos lineamentos centrais da concepção de “segurança democrática”.
O novo paradigma aparece traduzido em uma série de dimensões concretas no PNPCS. Em primeiro lugar, amplia-se o alcance da concepção de “segurança” e já não se fala simplesmente de prevenção do delito, mas de “prevenção comunitária da violência”. Isso implica a inclusão de outras formas de conflito além do delito, a ênfase nas estratégias multiagenciais e a integração por meio de recursos econômicos, mas também simbólicos e identitários, como a cultura, a arte e o esporte. Em segundo lugar, modificam-se as práticas de prevenção e a relação com as forças policiais. A prevenção situacional, que havia sido um dos eixos fundamentais das experiências de participação cidadã até o momento na cidade de Buenos Aires, é incluída como um componente a mais do programa de prevenção comunitária, e embora se contemple a possibilidade de pôr em prática ações de diminuição de oportunidades e aumento do risco para potenciais ofensores, o que se enfatiza é antes a apropriação e uso de espaços públicos por parte da comunidade. Daí que o título do programa de prevenção e controle comunitário seja “Ganhar a rua”. A polícia, por outro lado, deve passar a ser objeto de controle e avaliação constante por parte dos organismos de participação. Em terceiro lugar, a aposta na mudança cultural supõe a formação dos participantes, não somente em questões de segurança e prevenção, mas em participação, em análise sociopolítica etc. Essas dimensões estão presentes nos dois dispositivos de participação projetados para implementar o plano: as mesas de bairro e as escolas de participação. Ambas as instâncias encontram seus antecedentes imediatos nos Foros Vicinais de Segurança e nas escolas de participação implementadas nas já mencionadas gestões de León Carlos Arslanian à frente do Ministério de Segurança da Província de Buenos Aires.
As mesas de bairro constituem o primeiro dispositivo projetado para a abordagem territorial da participação comunitária. São espaços constituídos principalmente por organizações ou entidades não governamentais que desenvolvem suas tarefas em um bairro determinado, reunidas e coordenadas por funcionários do Ministério para efetuar diagnósticos, participar na criação de planos locais de segurança, promover ações de prevenção e de integração comunitária. O trabalho das mesas implica a adoção de algumas das ferramentas metodológicas já aprovadas na experiência dos Foros Vicinais de Segurança da Província de Buenos Aires (como a elaboração do “mapa vicinal de prevenção da violência”) que buscam gerar uma massa de informações de origem não policial disponível para a condução política da segurança e tornar presente de forma permanente no território representantes dessa condução, interrompendo ou mediando o circuito de informação estabelecido entre a polícia e certos setores da comunidade afins com as práticas de autogoverno policial. Mas em relação aos Foros Vicinais, há algumas mudanças dignas de nota no projeto desse novo dispositivo das mesas de bairro, modificações que parecem ter origem em uma avaliação crítica de alguns aspectos da experiência anterior em nível provincial. As principais diferenças estão nos seguintes pontos:
a) Maior abertura da participação. Nos Foros Vicinais, só podiam participar organizações com estrutura formal e personalidade jurídica, o que deixou sem possibilidade de participação toda uma gama de organizações surgidas a partir da crise de 2001-2002. As mesas de bairro flexibilizam essa condição ao exigir que sejam somente organizações de “reconhecida trajetória” no âmbito do bairro. Por outro lado, abre-se pela primeira vez a possibilidade de participação dos partidos políticos, que estavam explicitamente excluídos dos Foros. Na prática, a flexibilização é ainda maior, já que são aceitos nas mesas “vizinhos soltos” que não estão enquadrados em organizações, embora em todos os casos se tenda a recomendar que os “vizinhos soltos” se organizem.7
b) O âmbito de ação dos Foros Vicinais coincidia com o de cada delegacia da Polícia da Província. Nessa nova experiência, o âmbito de ação, em princípio, não é a delegacia, mas o “bairro”, noção que leva em conta “as características sociais e culturais que fazem com que as pessoas se sintam parte de um espaço comum, com identidades, horizontes e problemas compartilhados” (MINISTERIO DE SEGURIDAD DE LA NACIÓN, 2011c). Depois, as diferentes mesas de bairro deverão articular-se em mesas zonais, as quais coincidem, estas sim, com a jurisdição de cada uma das delegacias da Cidade de Buenos Aires. Essa modificação adapta o dispositivo à geografia institucional da Cidade, diferente da Província.
O segundo dispositivo criado para a implementação do PNPCS são as escolas de participação comunitária em segurança. Elas foram propostas como elementos de uma abordagem antes “transversal” do que territorial, e pensadas como espaços nos quais se pode debater em torno do modelo geral de segurança que se quer construir, mais do que sobre problemáticas especificamente locais. O conteúdo dos programas de estudo configura um percurso pela concepção de “segurança democrática” que o Ministério se propõe a difundir. Seus módulos abordam a descrição e explicação dos fundamentos do PNPCS; a “análise sociopolítica da realidade atual”; os diferentes modelos de segurança pública; a integração e a prevenção comunitária da violência; as vinculações entre segurança, hábitat, questões de gênero, prevenção de vícios etc.
A implementação concreta desses dispositivos começou, de maneira experimental, no início de 2011 nos bairros de Fátima e Ramón Carrillo, de Villa Soldati, no sudoeste da cidade. O critério a partir do qual se selecionou essa zona para realizar a experiência-piloto foi o da presença de comunidades vulneráveis, mas é preciso levar em conta também que essa foi a zona na qual ocorreram os conflitos pela ocupação do Parque Indo-americano e sua posterior repressão. A realidade extremadamente conflituosa da relação entre os moradores e a Polícia Federal destacada nessa mesa piloto foi um dos dados fundamentais para a confecção do Plano Unidade Cinturão Sul, lançado no final de junho de 2011, que mobilizou 2.500 agentes de Gendarmaria e Prefeitura Naval no sul da cidade. Segundo uma pesquisa realizada pelo próprio Ministério no bairro de Ramón Carrillo, 89% dos pesquisados afirmaram que melhorou a quantidade de efetivos policiais e a qualidade da resposta diante de emergências (MINISTERIO DE SEGURIDAD DE LA NACIÓN, 2011b). Depois dessa primeira experiência, em abril de 2011 foi lançado oficialmente o Plano. Nos primeiros seis meses de implementação, formaram-se aproximadamente trinta mesas de bairro das quais participam cerca de 450 organizações. Essas mesas se encontram em fases diferentes de progresso. Os próprios coordenadores das mesas costumam reconhecer dois momentos: um de “formação” e outro de “abertura” da mesa. Esta diferenciação não é pequena porque, como se verá mais adiante, tem relação com o carácter homogêneo ou heterogêneo que cada uma das mesas apresenta. Desses espaços de participação surgiu uma massa de informações que funcionou como insumo específico para o projeto de mobilização das forças de segurança em grande escala, alimentando a implementação não somente do já mencionado Plano Unidade Cinturão Sul, como também de outros planos, como o Plano de Segurança Urbana e o Plano de Controle de Acessos da Cidade Autônoma de Buenos Aires.
Outro avanço importante, em relação aos objetivos do Plano, tem a ver com a abertura a atores que não haviam sido anteriormente envolvidos em experiências participativas de segurança: agremiações políticas, organizações de base, organismos de direitos humanos etc. Essa decisão tem evidentemente uma leitura dupla. Por um lado, trata-se de uma decisão pragmática que possibilitou constituir uma série de mesas de bairro a partir da presença de uma maioria de organizações políticas e sociais afins com a gestão do Ministério, o que implica a vantagem de contar com atores comprometidos com a sustentação do espaço (questão central para o início de qualquer processo participativo), mas também a desvantagem, que se verá mais adiante, de poder ser percebido por certos setores como um espaço sectário ou “politizado”. Por outro lado, a presença desses novos atores permitiu introduzir questões novas associadas aos direitos humanos, iniciativas culturais de integração comunitária e prevenção social da violência, temas tradicionalmente ausentes da agenda da segurança cidadã. Essas modificações incluem questões simbólicas, mas que possuem valor na medida em que favorecem uma articulação entre as agendas de segurança cidadã e de direitos humanos (historicamente separadas na Argentina), como, por exemplo, o fato de que a mesa que articula organizações dos bairros de Floresta Sur e Parque Avellaneda tenha sua sede no edifício no qual funcionou, durante a última ditadura militar (1976-1983) um centro clandestino de detenção e extermínio de pessoas denominado “El Olimpo”. A constatação de que algumas das mesas têm suas sedes em locais vinculados a agremiações políticas também indica que a projetada abertura para novos atores está acontecendo. Outras iniciativas adotadas têm um impacto direto sobre o espaço urbano e a qualidade de vida. Os participantes da mesa dos bairros de Flores e Parque Chacabuco, por exemplo, identificaram um espaço abandonado e pouco confiável na entrada de uma estação do metrô, intervieram nele e o transformaram em um anfiteatro (batizado de “La Negra Sosa”, em homenagem à cantora Mercedes Sosa, falecida em outubro de 2009), inaugurado em 17 de outubro de 2011. Essa ampliação da agenda da segurança cidadã foi notória em muitas mesas e, sobretudo, nas cinco escolas de participação realizadas desde junho de 2011, nas quais aconteceu um fenômeno interessante de intercâmbio entre organizações sociais, especialistas e pesquisadores do âmbito acadêmico. Em setembro, foram entregues diplomas aos primeiros 83 egressos dessas escolas de participação.
Por outro lado, como se verá na próxima seção, a difusão do novo paradigma de “segurança democrática” encontrou também, nos primeiros seis meses de implementação do Plano, uma série de resistências, obstáculos e desafios que derivam, em grande medida, da presença de uma multiplicidade de atores no campo da participação em segurança, muitos dos quais podem ser vinculados a uma “cultura política vicinal” da participação em segurança fortemente ancorada em noções caudatárias de um senso comum autoritário.
Falar de um “campo da participação em segurança” implica reconhecer que a política pública que promove a participação cidadã não foi implementada em um vácuo ou em um terreno virgem. Pelo contrário, quinze anos de problematização da segurança cidadã como um dos temas centrais das agendas públicas, políticas e midiáticas deixaram um sedimento de experiências, de modos de mobilização, organização e reclamação e de marcos interpretativos para dar sentido às crises cíclicas de governo na área da segurança. Um papel central nesse fenômeno é cumprido pelas diferentes instâncias do Estado que de 1997 até agora ativaram e abandonaram sucessivos processos participativos de diferentes índoles. Quando o Estado abandona esses processos, muitos dos cidadãos que deles participavam dão por terminada a experiência e, com grande frustração, voltam-se novamente para a esfera privada. Mas outros persistem, e ocorrem formas autônomas de organização e reclamação, muitas das quais, por não contar com canais de interlocução com as autoridades, assumem agendas e objetivos próprios. E nesse campo, dizer “próprios” não significa dizer “espontâneos” ou “autênticos”, mas, quase sempre, objetivos fortemente marcados pelo senso comum e pelos discursos que circulam pelos meios de comunicação de massa, insuflados por lobistas e empreendedores morais de todo tipo. O “campo da participação em segurança” é composto então por atores, associações e organizações de diversas índoles, estatais e não estatais, muitas das quais podem ser consideradas “resíduos” de experiências participativas outrora patrocinadas pelo Estado e hoje abandonadas. Essas organizações competem pela apropriação de uma variedade de recursos materiais e simbólicos.
É nesse “campo” que emerge o que chamo de “cultura política vicinal” da participação em segurança. Trata-se de uma série de tramas de significação, marcos interpretativos, recursos discursivos, saberes práticos etc. adotados e assumidos com certa regularidade por uma série de atores sociais que se denominam “vizinhos”. O termo aqui não denota somente a condição de “habitantes” de uma zona determinada, mas além disso, ativa uma significação política historicamente consolidada posta em jogo para marcar um limite com um “outro”: “os políticos”, “os militantes”, “os funcionários” etc.8 É possível enumerar uma série de traços bastante estáveis dessa “cultura vicinal”. Em primeiro lugar, como já mencionamos, a exibição constante do repúdio “aos políticos” e funcionários, e a reiterada invocação do caráter supostamente apolítico das reclamações e das organizações construídas, questões que se cristalizam no lugar comum que sustenta que “a insegurança não é de esquerda nem de direita, não tem ideologia”. Em segundo lugar, o caráter espasmódico das reivindicações, cujas mobilizações numerosas, instigadas por casos pontuais altamente noticiáveis, alternam-se com níveis baixíssimos de participação, quando esta requer um compromisso constante, e com o carácter efêmero de muitas das organizações. Em terceiro lugar, a circulação e adoção de alguns diagnósticos sobre a “insegurança” (baseados na criminalização da pobreza, dos imigrantes, dos viciados em drogas, dos jovens) que deslizam quase naturalmente para as opções repressivas como únicas soluções imagináveis. Em quarto lugar, a exigência de soluções imediatas para as reclamações apresentadas cuja virulência aumenta em forma inversamente proporcional aos resultados concretos (nulos ou exíguos) obtidos pelas políticas públicas de segurança até agora. Essa exigência é acompanhada pela insistência na “maior presença policial” como principal solução para a “insegurança”. Em algumas experiências um pouco mais formalizadas, chegou-se a constituir redes vicinais que adotam práticas de prevenção situacional, sempre com o risco latente de produzir, a partir delas, fenômenos de segregação socioespacial. Em quinto lugar, circula nessa “cultura” uma concepção da participação segundo a qual ela não está vinculada a um direito ou a um dever dos cidadãos, mas inscrita numa tradição que identifica a participação com a denúncia ou a reclamação, e a percebe como uma solução transitória para uma situação específica na qual, diante da incapacidade ou ineficácia estatais, os cidadãos devem se encarregar do que o Estado não faz, em concordância com alguns postulados do neoliberalismo. As organizações de vizinhos costumam afirmar coisas como “nós não deveríamos existir”, o que se combina, paradoxalmente ou nem tanto, com um peticionismo que entrega nas mãos do Estado a solução de todos os problemas (SOZZO, 2000; PEGORARO, 2001; CROCCIA, 2003; TUFRÓ, 2007). Em suma, o repudio à política, a exigência de soluções que devem ser imediatas, o caráter efêmero de todo compromisso e a suposição de que o Estado é o único responsável pela questão da segurança são fatores que alimentam uma resistência à construção de espaços mais ou menos formais de participação orientados pelo Estado que se sustentem ao longo do tempo. Para muitos, “institucionalização” equivale a “politização”. A chegada do PNPCS ao território da Cidade de Buenos Aires supõe o encontro conflituoso entre a noção de “segurança democrática” e a “cultura política vicinal” da participação que se manipula segundo os critérios acima expostos.
Diante do que foi dito, não é estranho que a abertura aos atores políticos defendida pela gestão do Ministério tenha sido percebida por outros setores como um pecado original de “politização” das mesas de bairro. Por outro lado, como já dissemos, embora várias mesas de bairro tenham formado espaços heterogêneos, muitas outras – em especial, as escolas de participação – se constituíram basicamente a partir de organizações politicamente afins à gestão do Governo Nacional, favorecendo uma percepção de certo sectarismo que é caracterizada simplesmente como “politização” pela “cultura política vicinal” de muitos setores da comunidade. Esse encontro conflituoso é o que pode servir, então, como ponto de partida para analisar os desafios da difusão pelo Estado da concepção de “segurança democrática”. Apresentaremos a seguir essa análise, abordando duas das questões que põem em cena as resistências ao novo paradigma: por um lado, os modos de conceber a relação cidadãos-polícia; de outro, os conflitos para definir as prioridades, os objetivos e os métodos das agendas locais de segurança.
Mencionamos anteriormente que algumas experiências participativas já abandonadas haviam deixado “sedimentos” mais ou menos ativos. Entre elas, estão os chamados Conselhos de Prevenção Comunitária (CPC), que funcionam desde o final dos anos 1990 em algumas das delegacias da Cidade de Buenos Aires. Desde o início, esses Conselhos canalizaram, sob um novo marco de “participação cidadã”, laços tradicionais que a força policial estabelece com setores delimitados e específicos da comunidade, selecionados segundo “os princípios de notoriedade e reconhecimento social a partir dos quais o saber policial classifica a ‘gente decente’”, os quais, em geral, supõem “uma relação prévia e pessoal com o delegado” (EILBAUM, 2004, p. 190). Parece que a lógica de funcionamento dos CPC se resumia ao seguinte: em torno do delegado forma-se um grupo de “gente decente” do bairro que funciona basicamente como amplificador do discurso policial, reproduzindo desde as questões menores (a difusão de conselhos práticos para prevenir delitos, dos telefones da delegacia e dos patrulheiros etc.) até as mais importantes, isto é, a reivindicação de mais recursos econômicos, logísticos e humanos, a difusão de posturas ideológicas repressivas em relação às políticas de segurança etc. O modo concreto de relação entre os funcionários policiais e os integrantes dos CPC se resume na metáfora do “cobertor curto”, procedimento argumentativo que pessoalmente pude observar em quase todas as reuniões de CPC em que estive presente. A metáfora faz referência a uma suposta escassez de recursos que impede dar resposta a todas as reivindicações, porque “se cobrimos um lado, descobre-se o outro”. O “cobertor curto” é complementado por queixas sobre a suposta benignidade das leis para com os delinquentes, e desta combinação surge o diagnóstico mais escutado nesses espaços: “a polícia tem as mãos atadas”. Os integrantes do CPC são depois encarregados de difundir para a comunidade esses discursos policiais. A metáfora do “cobertor curto” produz três efeitos principais: a) constrói a força policial como um “bem escasso” pelo qual é preciso estabelecer uma disputa, reproduzindo assim “vizinhos peticionantes” cuja ideia de participação consiste em fazer ouvir sua voz mais forte que a dos outros grupos, para assim garantir sua cota de proteção policial, sem importar uma visão de conjunto; b) concentrar no governo da vez, e sobretudo “nos políticos”, toda a responsabilidade pelo mau funcionamento policial e pela “insegurança”; c) confirmar que uma “maior presença policial” é a solução para a “insegurança”, slogan adotado como reivindicação em quase todas as mobilizações vicinais realizadas em torno dessa questão. Por todos esses motivos é que os CPC foram considerados pelos especialistas como exemplos de “má práxis em participação” (CIAFARDINI, 2006), já que estão organizados e coordenados por aqueles que deveriam ser controlados, isto é, as forças policiais.
No território da Cidade de Buenos Aires, os CPC convivem com as novas mesas de bairro. Até o momento, o Ministério de Segurança da Nação não exigiu que deixem de funcionar. Procurou-se negociar com eles e, em alguns casos, adicioná-los às mesas de bairro. Mas acontece que a filosofia que sustenta esse novo programa participativo é incompatível com os modos de funcionamento dos CPC. A nova ideia do Ministério consiste em romper o circuito que comunica diretamente e sem mediações a condução policial com determinados representantes da comunidade local, para estabelecer um novo circuito: comunidade organizada-condução política da polícia (ou seja, o Ministério). Esse circuito permite convocar a polícia sempre que seja necessário, mas sempre através da mediação política dos funcionários ministeriais. “Romper” esse circuito preexistente significa não somente abrir novos espaços de intercâmbio, como, às vezes, interromper literalmente certos padrões de interação e conversação para evitar que esses novos espaços restabeleçam e reproduzam os velhos padrões de intercâmbio entre representantes “notáveis” da comunidade e uma polícia autogovernada. Fui testemunha de uma dessas interrupções em uma mesa de bairro: uma pessoa fez uma denúncia pública e pontual, e o delegado, enquanto anotava em sua caderneta, lhe disse “venha ver-me amanhã na delegacia e falamos disso com mais detalhes”. Uma alta funcionária do Ministério que estava presente nesse dia interrompeu de imediato a conversação para solicitar que tanto a denúncia do vizinho como a resposta e o compromisso do delegado se fizessem publicamente, na mesa de bairro, e que ficassem anotadas nas atas públicas da mesa.
Essa nova lógica de funcionamento da relação entre vizinhos e policiais, com a mediação agora da condução política, desperta resistências dos integrantes dos CPC por diversas razões. Em primeiro lugar, como amplificadores do discurso policial, esses setores são aqueles que afirmam que a polícia não pode ser controlada ou avaliada pelos cidadãos (um dos eixos centrais da proposta das mesas de bairro). Desse modo, parecem constituir-se, no âmbito da participação cidadã, em porta-vozes de certos descontentamentos das forças policiais diante do que consideram intromissões nos saberes (a mobilização das forças) ou nos direitos adquiridos (a avaliação do serviço e as decisões sobre promoções e ascensões) da Polícia Federal. Além disso, se a informação já não é manipulada pessoalmente entre o delegado e o referente vicinal, mas deve tornar-se pública no marco da mesa, muitas dessas organizações perdem seus capitais simbólicos, já que a posição privilegiada em relação à informação policial é o que as legitima frente a outros setores da comunidade, e a informação sobre segurança é uma mercadoria muito valorizada nos âmbitos locais.
No discurso de lançamento do Plano Nacional de Participação Comunitária em Segurança, a ministra Nilda Garré defendeu, entre outros, o objetivo de batalhar“contra o fundamentalismo de manter viva uma cultura institucional cultivadora do segredo”(MINISTERIO DE SEGURIDAD DE LA NACIÓN, 2011d). Tornar a informação pública tem como objetivo principal garantir o controle do desempenho policial por parte da comunidade, mas tem como efeito secundário diluir o capital desses atores a que faço alusão. Daí a resistência e o obstáculo à geração de novos espaços e à implementação de novas metodologias de organização que postulem uma ideia de participação muito diferente da defendida pelos CPC ou outras organizações afins, como as “Associações de Amigos das Delegacias”, encarregadas de arrecadar fundos para a polícia entre os comerciantes de cada zona. Essas organizações, de um lado, resistem a se integrar às mesas de bairro, esgrimindo o argumento da “politização” das mesas. Por outro lado, persistem em suas atividades em forma paralela às mesas. O seguinte diálogo, presenciado em uma das escolas de participação comunitária, põe em destaque a reclamação de um integrante da mesa de bairro de Parque Patrícios em relação a essa questão:
Vizinho – Algumas organizações querem saber quais são os detalhes, os recursos de cada delegacia, e quando não se chega a essa informação, a participação se desalenta. Te digo o que dizem os vizinhos: está ótimo [o projeto das mesas de bairro], mas os do Ministério vêm buscar a informação que não têm da delegacia, mas o que nós pedimos, aí encontramos um limite. Em Parque Patrícios funciona o CPC. Hoje há mais informação extraoficial do CPC que do delegado.
Funcionário do Ministério – O delegado deve ir à mesa a informar. É a única forma de que isso funcione. Os recursos são públicos. É importante na hora de fazer um plano local saber com quais recursos se conta.
Vizinho – Porque esses grupos que são os CPC, os Amigos da Delegacia, tipo cooperadora, se juntam de maneira extraoficial, e isso substitui a oficial.
Nessa reclamação podem-se ler vários sintomas do conflito que delineio. Em primeiro lugar, o participante da mesa percebe uma certa impotência do Ministério, expressa na ideia de que este busca nas mesas de bairro a informação que não pode obter das delegacias. Isso não está muito distante da realidade: embora eu desconheça o grau em que a instituição policial sonega (ou não) informação ao Ministério, está claro que nas mesas de bairro se busca informação que complemente, contrabalance e funcione como instância de controle da informação “oficial” produzida nas delegacias. Mas por outro lado, as delegacias sonegam informações às mesas de bairro. E em troca, continuam funcionando as organizações “amigas” da polícia, agora com caráter extraoficial (posto que, se supõe, a mesa de bairro é a instância oficial). Mas tendo em vista que as instâncias “extraoficiais” continuam recebendo uma informação que as instâncias oficiais não recebem, o extraoficial “substitui o oficial”, e, aos olhos dos participantes, as mesas de bairro se esvaziam de boa parte de seu conteúdo. Então, se o Ministério não consegue fazer circular de forma pública essa informação, aqueles que a possuem têm a possibilidade de reproduzir, mesmo com a existência desses novos espaços participativos, as assimetrias em relação à circulação de informação que são constitutivas da produção de uma casta de representantes “vicinais” que costumam entrar em disputa com os funcionários estatais (LANDAU, 2008). Nesse caso, o que está em disputa não é somente a legitimidade das organizações frente à comunidade local, mas dois modelos de relação entre comunidade e polícia, um dos quais reproduz as práticas de autogoverno policial, enquanto que o outro aposta no controle civil como parte do governo político da segurança. O lugar do “vizinho peticionante” que se limita a reclamar maior presença policial em sua quadra, que aceita as explicações policiais baseadas na falta de recursos e que conclui que a culpa é “dos políticos” (posição típica da “cultura política vicinal”) deve ser substituído por um cidadão ativo no controle do serviço policial e conectado com a condução política da força, posição coerente com um paradigma de “segurança democrática”. Nesse ponto, surgem as resistências.
Os conflitos para definir o que é a “segurança” não são meramente conceituais ou semânticos, pois põem em jogo esquemas interpretativos e recursos argumentativos que orientam a ação, a seleção de prioridades, a escolha de alvos de intervenção etc. Nesse sentido, outra resistência importante que a concepção de “segurança democrática” defendida pelo Ministério encontrou foi a acusação de “politização” articulada por diversos setores. Em primeiro lugar, é preciso destacar quais foram os pontos do processo participativo contra os quais foi possível montar este tipo de acusação. O Ministério de Segurança da Nação defende que a “heterogeneidade” (supõe-se que se referem à heterogeneidade dos participantes) é, ao mesmo tempo, um valor, uma conquista e uma característica das mesas de bairro (MINISTERIO DE SEGURIDAD DE LA NACIÓN, 2011b). Não obstante, é preciso reconhecer certas complexidades nessa “heterogeneidade”. Em primeiro lugar, o processo de implementação em muitas das mesas de bairro parece configurar-se a partir de duas etapas, que os coordenadores das mesas definem como “momento de formação” e “momento de abertura” das mesas. No primeiro momento, por questões pragmáticas, se privilegia a convocação de organizações sociais e políticas afins ao projeto do Ministério. A maior parte das mesas ainda se encontraria nesse primeiro momento, para depois passar a uma fase de “abertura” para organizações de outro tipo. A decisão de começar dessa maneira respondeu a questões pragmáticas: é preciso que os níveis de conflituosidade sejam mínimos para poder iniciar e consolidar um espaço participativo. No entanto, o custo da decisão é que outros setores (especialmente aqueles envolvidos na “cultura política vicinal” da participação em segurança) percebem as mesas nascentes como espaços “politizados”, “oficialistas” etc. Essa avaliação, em geral, leva à decisão de não participar das mesas. Com base nesses mesmos argumentos montam-se estratégias ainda mais reacionárias, como a de um funcionário do Governo da Cidade de Buenos Aires que interrompeu uma mesa no bairro de Versailles e acusou o Governo Nacional de querer criar, a partir das mesas, “comitês de defesa da revolução”9 para controlar a polícia e de querer que “isso seja como Cuba em 61”. Essas posições extremas são felizmente marginais, mas fazem parte dos discursos que circulam em torno das mesas de bairro com o fim de desacreditá-las.
As mesas constituídas segundo a lógica desses dois momentos (“formação” e “abertura”) são as que apresentam um panorama ideologicamente mais homogêneo entre seus participantes. São também as mais eficazes na hora de traduzir os postulados do novo paradigma de “segurança democrática” em iniciativas concretas. A versão oficial do Ministério diz que, em outras zonas da cidade de Buenos Aires, as mesas se formaram por uma “demanda espontânea” relacionada com o fato de que se registraram graves problemas de segurança nessas zonas que motivaram a demanda. Nos casos desse tipo que pude conhecer, mais que a uma “demanda espontânea” dos atores locais, a criação da mesa de bairro respondeu a um oferecimento do Ministério para tentar organizar e canalizar situações de protesto e agitação. Por fim, há outros casos “mistos”, como o de Liniers, que analisarei a seguir, nos quais conviveram a convocação das organizações politicamente afins com a presença de “vizinhos” previamente mobilizados para reivindicar “mais segurança”. Esses dois últimos tipos de casos são aqueles nos quais as mesas apresentaram uma maior heterogeneidade ideológica entre os participantes e uma maior distância entre as concepções de segurança defendidas pelos participantes (ou alguns deles) e a proposta de “segurança democrática” do Ministério, o que deu lugar a conflitos pela definição dos objetivos e das metodologias que se deviam adotar, aparecendo resistências ou contestações aos instrumentos e às lógicas de funcionamento propostas pelo Ministério. Estas situações conflitantes não são negativas em si mesmas, muito pelo contrário. O problema está em que, embora o conflito seja efetivamente um fenômeno desejável em todo processo democrático e participativo, para que ele seja produtivo e enriquecedor é preciso, por assim dizer, dar-lhe um marco, poder encaminhá-lo, e isso constitui um desafio tanto para o Estado como para as organizações sociais. Quando o conflito não encontra uma via no âmbito participativo, ocorrem secessões, separações que dão conta da impossibilidade da coexistência de visões diferentes em um mesmo espaço. Dessa forma, o processo participativo se empobrece.
Pude presenciar um exemplo dessa lógica na mesa de bairro de Liniers, situado no oeste da cidade de Buenos Aires. Nessa zona existia, no momento em que foi lançado o PNPCS, uma situação de conflito relacionada com episódios delituosos que mantinha mobilizados alguns grupos de habitantes. No início de 2011, o assassinato de um taxista no bairro acendeu a faísca necessária para a realização de uma série de manifestações de rua que reclamavam “mais segurança”. Essas mobilizações provocaram uma articulação entre organizações preexistentes e outras que se constituíram no calor do protesto, criando-se uma comissão de “Vizinhos Autoconvocados de Liniers”. Esse espaço se dedicou a coletar testemunhos de imprensa e denúncias de vítimas de diversos delitos acontecidos na zona nos últimos dois anos. Chamaram esse informe de “Mapa do Delito” e o apresentaram aos Ministérios de Segurança da Nação e da Cidade. Esperavam de parte dos funcionários uma resposta oficial, e também que o informe desse lugar a ações concretas no território. Não receberam resposta, e as ações realizadas foram consideradas lentas e insuficientes. De todo modo, o contato serviu para visibilizar o grupo e dessa maneira foram convidados a participar do lançamento da mesa de bairro de Liniers, em 2 de junho de 2011. Essa mesa era integrada por organizações heterogêneas, e com o transcorrer da primeira reunião percebi claramente uma linha divisória entre os participantes, divisão que eles mesmos também perceberam. Um integrante do grupo de “vizinhos autoconvocados” descreve o fato da seguinte maneira:
O que se notava é que havia muitos militantes kirchneristas,10 de diferentes agremiações, mas ideologicamente dentro desse marco, e depois os vizinhos que vinham participando. A coisa estava assim claramente dividida, até na forma de sentar-se…
(L, integrante dos Vizinhos Autoconvocados de Liniers).
Essa linha divisória entre “vizinhos” e “militantes”, que retoma esquemas de classificação próprios da “cultura política vicinal”, causou algumas tensões menores na primeira reunião, como quando um dos “vizinhos autoconvocados” sugeriu que havia uma relação entre o grau de periculosidade de certa rua do bairro e a presença da comunidade boliviana nessa zona. Nesse momento, outros participantes da mesa (“militantes” segundo a classificação dos “vizinhos”) intervieram de imediato, repudiando as alusões discriminatórias do “vizinho”. Mas naquela primeira reunião, o principal conflito surgiu em relação à outra questão. Enquanto o grupo de “vizinhos autoconvocados” queria respostas imediatas para as denúncias apresentadas no informe por eles escrito dois meses antes, os funcionários do Ministério propunham seguir uma metodologia de trabalho específica, que incluía a execução coletiva de um “mapa de prevenção da violência”. As agrupações vicinais mencionadas interpretavam que não havia um reconhecimento do trabalho por elas realizado, e que “o mapa do delito já tinha sido feito por eles”. Os representantes do Ministério insistiam que a informação coletada era “valiosa”, mas que tecnicamente não constituía um “mapa do delito”. No entanto, não conseguiam comunicar claramente por que o informe vicinal não podia ser a base para o programa de diagnóstico e controle de gestão que propõem as mesas de bairro,11 nem o porquê da necessidade de adotar uma metodologia unificada com a das outras mesas. Em meio a essas discussões quase técnicas entre os representantes do Ministério e os “vizinhos autoconvocados”, e sem poder participar delas, havia um grupo de integrantes de organizações políticas e de direitos humanos, afins ao projeto do Governo Nacional, mas que nunca haviam trabalhado sobre questões de segurança cidadã.
Na segunda reunião da mesa de bairro, duas semanas depois, a tensão entre os dois grupos claramente diferenciados explodiu por uma questão aparentemente menor e anedótica. Alguns participantes pertencentes a esse grupo que já mencionei de militantes políticos e sociais sem experiência em questões de segurança expuseram a necessidade de que os “vizinhos autoconvocados”, com maior experiência e antecedentes na questão, se colocassem de alguma maneira no mesmo nível de conhecimentos da temática que tinha o resto dos participantes para poder iniciar o processo em igualdade de condições. “Assim como eu sou militante política, vocês são militantes da segurança”, afirmou uma mulher. Os “vizinhos autoconvocados” interpretaram que era um absurdo ter de “baixar o nível”; tratava-se antes que o resto subisse o nível e se pusesse à altura deles. Mas, sobretudo, a classificação “militantes da segurança” foi percebida como um insulto por parte daqueles que constantemente fazem alarde do caráter “não político” de sua atividade. Ademais, asseguravam que foram acusados de “desestabilizadores” pelos militantes oficialistas presentes na mesa.12 Ofendidos, os “vizinhos autoconvocados” deixaram de concorrer à mesa de bairro. Somente uma de suas integrantes continuou participando. Dessa forma, curtos-circuitos na comunicação e dificuldades para compatibilizar agendas contribuíram para criar um conflito cujo resultado foi a deserção de um dos setores interessados na segurança do bairro. Como relata outro integrante da organização de “vizinhos autoconvocados”:
Os vizinhos receberam ataques dos mesmos militantes kirchneristas, de insultos, insultos de “você é militante da segurança, quer desestabilizar o governo”, que é preciso suportar e superar isso. Mas, além disso, o que os vizinhos viam é que não viam avanços. Os vizinhos-vizinhos, ou seja, que um vizinho que esteve quatro meses, vizinhos que vêm trabalhando há muitos meses, lhes faziam marcar em um círculo em vermelho, quando lhes havíamos entregado um mapa em 6 de abril, ou seja, dois meses antes de que chegassem, os vizinhos disseram “eu quero respostas ao que entreguei”.
(M, integrante de Vizinhos Autoconvocados de Liniers).
O conflito, então, atravessa dois níveis que se confundem permanentemente. Por um lado, a ferida na sensibilidade “apolítica” dos “vizinhos autoconvocados” é uma consequência da linha de tensão que se manifestou nas reuniões entre aqueles que, sem ter antecedentes em questões vinculadas à segurança cidadã, tinham experiência de militância política e apoiavam o projeto de “segurança cidadã” proposto pelo Ministério de Segurança da Nação, e aqueles que, pelo contrário, vangloriando-se de prescindir da política e da ideologia, tinham um caminho percorrido nas reivindicações vicinais por “mais segurança”. No entanto, esta linha de tensão pôde surgir porque outra disputa se instalou na mesa. Essa outra disputa não tinha a ver com questões de classificação e sensibilidades políticas (ou “apolíticas”), mas com a disputa entre os funcionários do Ministério e os “vizinhos autoconvocados” para definir a estruturação do espaço participativo, as metodologias a aplicar e a agenda mesma da mesa de bairro. O que é um “mapa do delito” e o que não é? Por que é preciso adotar uma metodologia proposta pelo Ministério, quando o grupo de “vizinhos autoconvocados” já fez o trabalho de assinalar os problemas do bairro? Por que, em lugar de começar outro diagnóstico, não se avança com soluções imediatas para os problemas já apresentados? Estas são as questões que estavam em jogo do ponto de vista dos “vizinhos autoconvocados”. A ideia proposta pelo Ministério de adotar uma metodologia de participação que permita tornar sustentável o espaço participativo no tempo não era congruente com os objetivos, os modos de funcionamento e, em última instância, me permito afirmar, com a “cultura política” na qual se inscrevem os “vizinhos autoconvocados”. Na prática, então, a mesa de bairro de Liniers não conseguiu até agora se converter em um espaço que possa alojar e conectar as três experiências: a dos “vizinhos autoconvocados”, a dos militantes políticos e sociais e a dos funcionários do Ministério com sua proposta metodológica.
A experiência iniciada em abril de 2011 pelo Ministério de Segurança da Nação supõe em muitos aspectos uma aposta esperada por todos aqueles setores comprometidos com a difusão de uma concepção democrática da segurança cidadã. A recuperação da participação cidadã aparece neste contexto não somente como uma técnica de governo que aponta para a retomada do controle civil sobre as forças de segurança, mas como o início de um processo de mudança cultural a médio e longo prazo, o qual exigirá obviamente a renovação permanente do apoio político para sustentar os processos participativos até poder instituí-los como política de Estado.
Tratei de mostrar que a decisão de implementar uma estratégia territorial para difundir o novo paradigma de “segurança democrática” implicou intervir em um contexto complexo, no qual, além das resistências previsíveis de parte de forças policiais acostumadas ao autogoverno, aparecem outros atores políticos importantes que são hostis ou indiferentes ao novo paradigma (o Governo da Cidade de Buenos Aires), e também setores da comunidade organizados que têm suas próprias concepções da segurança cidadã, muitas vezes marcadas por axiomas repressivos e incompatíveis com a plena vigência dos direitos humanos. Nesse ponto acontecem os atritos e conflitos descritos na segunda metade deste artigo. Fica claro que a participação não remete somente a uma técnica de governo ou a um recurso retórico, mas também a um espaço de conflito e negociação entre determinadas instâncias de governo (agências do Estado nacional, provincial, municipal; agências policiais etc.) e um setor interpelado (“a comunidade”, “os vizinhos”) que não existe como unidade, mas como um conjunto aberto de grupos e interesses em conflito, atravessados por culturas políticas e problemáticas locais muito diferentes. As organizações de “autoconvocados”, os sedimentos residuais de outras experiências participativas e as polícias (Federal e Metropolitana) se constituem em atores do que poderíamos descrever como um “campo” da participação em segurança, no qual sem dúvida há capitais diversos em jogo (BOURDIEU, 1995). Nesse campo entram agora novos atores: o Ministério de Segurança da Nação e as agremiações políticas e sociais que, até agora, estavam à margem dessas discussões. Essa entrada provoca uma dinâmica conflituosa que continua aberta. Os conflitos descritos neste artigo supõem um recorte temporal, uma “fotografia” de um processo que, na verdade, é dinâmico, no qual os modos de vinculação entre os atores se modificam, em parte também como consequência do próprio processo participativo. O PNPCS foi lançado recentemente e, portanto, estas observações são provisórias, mas acredito que servem para refletir sobre alguns dos problemas práticos que os processos de mudança cultural promovidos pelo Estado devem enfrentar.
A nova experiência participativa promovida pelo Ministério de Segurança da Nação começa com alguns axiomas muito promissores, mas também com a necessidade de articular com atores preexistentes nos complexos campos locais da participação. Duas tensões parecem se desenhar nesse cenário. Do ponto de vista do Estado, aparece o desafio de ser, ao mesmo tempo, esfera articuladora e ator. Trata-se de ser aquele que garante o espaço onde possam surgir e se sustentar conflitos enriquecedores e, ao mesmo tempo, constituir-se em um difusor de ideias, de um projeto próprio de participação e de sociedade. Isso implica trabalhar em um delicado equilíbrio que elabore modos de interpelação que levem em conta as percepções e sensibilidades daqueles que vêm cultivando há alguns anos uma sistemática desconfiança em relação ao Estado em geral e como garantidor da segurança cidadã em particular, ao mesmo tempo em que o concebem como a única instância capaz de solucionar todos os problemas.
Por outro lado, para todos aqueles atores interessados em um compromisso com a participação entendida como uma mudança cultural democratizadora, tanto do Estado como das organizações, coloca-se a tensão entre a participação como dinâmica de governo que requer tempo e perseverança; a urgência para exibir resultados (“eficiência”); e os conflitos que emergem cada vez que se constroem espaços que, em maior ou menor medida, supõem uma cessão de cotas de poder por parte de instâncias de governo que depois não possam controlar (CIAFARDINI, 2006). Não é casual que as mesas mais “eficientes” na hora de adotar e difundir o novo paradigma pareçam ser, até aqui, as que apresentam um panorama mais homogêneo entre seus participantes. Neste sentido, a consecução da participação como parte de uma mudança na cultura política e como condição da difusão do novo paradigma de “segurança democrática” pode se chocar, como já aconteceu em experiências anteriores, com a necessidade prática de desativar uma determinada situação potencialmente explosiva. O desafio de sustentar os espaços, apesar dessas urgências, constitui o conteúdo concreto do que se denomina “decisão política”.
1. O Parque Indo-americano, situado no extremo sudoeste da Cidade de Buenos Aires, foi tomado no início de dezembro de 2010. Uma primeira e violenta expulsão (por parte da Polícia Federal e da Polícia Metropolitana) e posteriores confrontos armados deixaram um saldo de três mortos e vários feridos. A complexa trama de interesses econômicos, políticos e criminosos por trás desses episódios ainda precisa ser estudada exaustivamente. Para uma primeira abordagem, ver Centro de Estudios Legales y Sociales – CELS (2011).
2. A categoria utilizada pelo Ministério de Segurança da Nação é “participação comunitária”. A apelação à “comunidade” em assuntos de segurança foi criticada como vaga, polissêmica e inclusive arriscada quando se desliza para um autoritarismo moral (CRAWFORD, 2002) ou quando faz referência a um espaço supostamente “natural” em oposição ao caráter construído e artificial dos espaços políticos (ROSE, 2001). Neste caso, a noção de “comunidade” faz referência à concepção de “comunidade organizada”, própria do ideário político do peronismo: não se trata de laços “naturais”, mas de organizações sociais politicamente construídas.
3. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET) e realizada para obtenção do Doutorado em Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires. O título provisório da tese é “Inseguridad, cultura política y producción de subjetividad. La construcción del vecino en la comunicación pública de la seguridad ciudadana. Área Metropolitana de Buenos Aires, 1997-2011”.
4. Em novembro de 2008 foi sancionada uma nova lei de segurança pública da cidade. Essa lei cria a Polícia Metropolitana e estabelece, em sintonia com a lei anterior de 2005, que a “participação comunitária” é um direito dos cidadãos e um dever do Estado. Mas indica também quais serão as instâncias concretas para canalizar essa participação: os Foros de Segurança Pública. Esses Foros foram criados pela Lei 3.267 sancionada em novembro de 2009. Dois artigos desta lei (o 3º e o 7º) incluíam entre as atribuições dos Foros a de participar no “projeto e elaboração do Plano de Segurança Pública”. O Chefe de Governo da Cidade, engenheiro Mauricio Macri, vetou essa lei em janeiro de 2010 por considerar que o projeto e a elaboração do Plano são prerrogativas exclusivas do Poder Executivo. Desse modo, os Foros foram esvaziados de grande parte de seu conteúdo. Além disso, quase dois anos depois, ainda não foram constituídos.
5. A licenciada Martha Arriola participou das duas gestões de León Carlos Arslanian à frente do Ministério de Segurança da Província de Buenos Aires (1998- 1999 e 2004-2007) e foi a criadora e principal propulsora dos Foros de Segurança, até o momento uma das poucas experiências sérias e sistemáticas de participação cidadã em segurança na Argentina. Em 1999 e em 2008, depois de cada uma das gestões de Arslanian, os Foros deixaram de receber ajuda estatal e apoio político, viram-se deixados à própria sorte e hoje funcionam uns poucos de maneira insular e autônoma. Muitos dos instrumentos desenvolvidos para os Foros foram retomados para a experiência atual das mesas de bairro na Cidade de Buenos Aires descritas neste artigo.
6. Em relação à participação cidadã como direito que deve ser garantido pelo Estado, a resolução 296 faz referência ao Artigo 23 da Convenção Americana de Direitos Humanos, ao Artigo 20 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, ao Artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao Artigo 25 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, à Declaração Universal sobre Direitos da Criança e ao Artigo 4 da Convenção de Belém do Pará.
7. Nessa ênfase nas organizações preexistentes e na recomendação para que se organizem aqueles que não o estão fica clara a questão da “comunidade organizada” mencionada anteriormente. Por outro lado, essa opção ideológica tem uma dimensão pragmática muito clara: é muito difícil sustentar no tempo os processos participativos se neles não estão envolvidos núcleos organizados que garantam uma estabilidade de participantes. A esse respeito, ver Landau (2008).
8. A tradição política que faz do “vizinho” uma figura supostamente apolítica e sem qualquer interesse faccioso remonta, no mínimo, às Sociedades de Fomento surgidas durante a desordenada expansão do tecido urbano da Cidade de Buenos Aires, nas décadas de 1920 e 1930 (DE PRIVITELLIO, 2003). O “vizinho” se exibia publicamente como um sujeito interessado unicamente na obtenção de melhorias materiais para seu próprio bairro, sem interessar-se, supostamente, por questões de política partidária ou de índole ideológica.
9. Em referência, obviamente, aos Comitês de Defesa da Revolução criados na década de 1960 pelo regime de Fidel Castro, estrutura capilar que combina funções de difusão doutrinária com práticas de ação social, de vigilância civil e de controle político.
10. Ou seja, afins ao Governo Nacional encabeçado pela Dra. Cristina Fernández de Kirchner.
11. Entre outras questões, o informe de quase 160 páginas confeccionado pelos “vizinhos autoconvocados” não oferecia uma referência territorial precisa em um período de tempo delimitado dos episódios delituosos registrados, nem elaborava padrões de tempo e espaço de perpetração de delitos, padrões de condutas de prevenção etc., traços constitutivos da técnica do “mapa de prevenção”. Tampouco incluía outras questões que entram na definição de “prevenção da violência”, própria do paradigma de “segurança democrática” utilizado pelo Ministério de Segurança da Nação, como os problemas de espaço público, os conflitos sociais etc. Suas fontes eram principalmente artigos da imprensa. Apesar disso, oferecia informações precisas sobre a localização e funcionamento de diversos prostíbulos, dados que foram utilizados para efetuar algumas ações policiais, mas não todas que os “vizinhos” autores do informe exigiam.
12. Estive presente nesse dia (16 de junho de 2011) à reunião da mesa de bairro, e embora tenha escutado perfeitamente o apelativo “militantes da segurança” proferido por uma senhora que participava da mesa, em nenhum momento cheguei a perceber que se acusasse os “vizinhos autoconvocados” de desestabilizadores. Eles afirmam que foram alvos dessa acusação.
Bibliografia e outras fontes
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